São Paulo, domingo, 12 de novembro de 2000

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ABRAM
Nathalie Sarraute

Palavras, seres vivos perfeitamente autônomos, são os protagonistas de cada um desses dramas.
Logo que vêm palavras de fora, uma divisória se instala. Somente as palavras capazes de receber polidamente os visitantes ficam desse lado. Todas as outras vão embora e, para maior segurança, são fechadas atrás da divisória.
Mas a divisória é transparente e as excluídas observam através dela.
Por momentos, o que elas vêem lhes dá vontade de intervir, elas não aguentam mais, elas chamam... Abram.
- Pronto, instalaram a divisória...
- E nós, como sempre, empurradas para este lado. Não dá mais para sair.
- Claro. Não somos apresentáveis. Então, logo que vem gente...
- Não somos como as outras, do outro lado, que têm de ficar. Elas são tão bem-comportadas, tão disciplinadas...
- E hábeis... Merecem confiança.
- Não são como nós, verdadeiras cachorras loucas.
- Só nos resta ter paciência. Felizmente podemos ver através. Ajuda a passar o tempo.
- E o que a gente vê pode ser, às vezes, bem engraçado...
- Oh, o que é isso? Parece um barulho de pancadas.
- Sim, como marteladas, cada vez mais fortes... Você deve estar vendo de onde vêm. Você se meteu na frente de todas.
- Diga o que é ou então se afaste um pouco, deixe a gente ver...
- Ora essa... É uma verdadeira invasão... completamente inesperada...
- Uma invasão de quê?
- Esperem, vocês me impedem de ouvir... É isso, são inverdades. Nenhuma palavra verdadeira.
- E essas palavras têm uma força...
- Se têm! São produtos inteiramente fabricados, modelos aprovados... cada vez mais resistentes. Difíceis de lascar, de trincar... são tão duras...
- Quando a gente consegue derrubá-las, elas se levantam e lá estão de novo, como se nada tivesse acontecido.
- É todo aquele chumbo que puseram no fundo delas... Ah, elas têm um bom lastro.
- Estão chegando cada vez mais numerosas... E batem...
- Contra o quê?
- É como uma divisória de metal. Como uma parede blindada...
- Está ali diante delas, elas não sabem o que é... Outras palavras deviam vir ao seu encontro, como convém.
- Como se faz em toda parte. Para recebê-las dignamente, para cercá-las, para que elas se sintam à vontade.
- Poderiam até mesmo combatê-las, com todo o respeito. Organizar justas, torneios... é excitante.
- Mas não vem ninguém. Só se ouvem uns mugidos abafados... como gemidos...
- Então, elas batem, elas insistem... com golpes cada vez mais fortes, cada vez mais rijos...
- Podem bater à vontade, as palavras que deveriam sair estão bem presas... É uma verdadeira fortaleza.
- Uma fortaleza? Que fortaleza? Vocês sabem o que é?
- Não...
- Pois eu sei. Já conheço. Isso se chama: "A palavra dada".
- Coitadas, um belo dia elas se deixaram agarrar. Se elas soubessem aonde isso as podia levar... Prisão perpétua. Votos perpétuos.
- Você acha que, se elas soubessem, teriam recusado?
- Acho difícil. Ninguém resiste... Um belo dia, alguém lhes diz: "Vou contar a você. Mas prometa nunca dizer a ninguém... Você me dá a sua palavra? -Claro, ora essa". E pronto: elas estão presas na "palavra dada".
- Oh! Olhem! Dá para ver alguma coisa... mas vê-se mal... saiu da "palavra dada", avança, se arrastando, em direção à divisória, em nossa direção... uma forma trêmula...
- Uma fugitiva... Estão ouvindo? Ela bate de leve... é um cochicho... "As inverdades nos estão atacando, elas batem com toda a força... não aguentamos mais... venham nos socorrer... saiam... vou abrir para vocês... que a verdade saia..." Ora, é tudo o que queremos... do nosso lado, as verdades, mesmo as mais difíceis de dizer, circulam livremente... e só de ver essa aí presa, apertada desse jeito... começava a nos incomodar...
- Só que, vejam, ela ficou com medo, só entreabriu um pouco e logo fechou, e saiu correndo à toda velocidade, como se nada tivesse acontecido, voltou a se refugiar na "palavra dada".
- Mas alguma coisa conseguiu escapar pela fenda... "Entretanto", que se achava junto à saída, saltitando, como sempre, de impaciência... Pronta para se jogar... "Entretanto" conseguiu passar... "Entretanto"? Todas as inverdades se imobilizam, pasmas...
- E agora se lançam em direção de "Entretanto", para pressioná-la... "Entretanto"? O que é isso? Como "Entretanto"? "Entretanto" o quê? Por que "Entretanto"? De onde veio?
- Não podemos abandonar "Entretanto" lá fora, sozinha... Por Deus, fuja de novo da "palavra dada", só mais uma vez, só um instante, saia, abra mais, não tema, você vai poder voltar para a sua "palavra dada" e não sair mais de lá, ficar em segurança, mas agora venha, abra, você vai ver, não vai se arrepender...
- Estão ouvindo essa algazarra na "palavra dada"? Um verdadeiro pânico, uma agitação geral, estão batendo nas paredes, não tenham medo... depressa, venham abrir!
- Não adianta, ninguém sai... elas estão mais presas do que nunca...
- Então paciência, temos de abrir nós mesmas, forçar deste lado... Você precisa sair...
- Sim, você aí, que estava vadiando... é preciso voltar ao serviço... Vamos, venha, vamos abrir, avance como você sabe fazer...
- Vestida com suas melhores roupas, sua roupa de festa... Vá lá... Com ar solene, imbuída de sua importância, você dá prêmios aos mais merecedores, dá condecorações... "É um segredo"...
- Desça em direção aos eleitos... Uma aparição celestial envolta em nuvens... "É um segredo"...
- Você é uma ninfa assustada andando na ponta dos pés, com um dedo sobre os lábios, murmurando... "É um segredo"...
- Ou então basta você oferecer aos convidados uma iguaria suculenta... "É um segredo"... Quem não quer? É claro que todos querem. Já vêm vindo...
- Agora é a sua vez... "Venham"... tom firme, intransigente... "Mas vocês me dão a sua palavra?" E todas a dão, sem hesitar... Quem recusaria? E pronto. O truque funcionou.
- Cada inverdade se tornou uma verdade presa na "palavra dada".
- Parece que não vem mais nenhuma. Tudo indica que agora não há mais do que "palavras dadas". Um vasto espaço coberto de pequenas casamatas. Se voássemos por cima delas, veríamos algo como um imenso campo de couves-flores.
- Ora vejam, o que é aquilo, aquelas duas lá? Não parecem inverdades? Elas têm aquele ar seguro de si, rígido...
- Sim, duro... são "duras de roer".
- Mas agora chega. Não queremos mais. Não aguentamos mais... É preciso detê-las... Vamos, vocês aí, empurrem, abram, vão até elas e assim que elas tentarem se mexer, fechem a passagem, vão... "Vocês não deviam tocar nesse assunto"... Estão vendo? Elas param... Agora é a sua vez, depressa, trate de estar à altura, com seu melhor aspecto, com o tom que convém, todas as entonações, vamos, em frente... "É um segredo"... "Um segredo?"... Elas vão ficar imóveis, pasmas. E depois, como sempre, virão até você... "Um segredo?"
- Elas estão parando, de fato, mas, é estranho, elas não se aproximam...
- Oh, vejam, elas estão dando meia-volta, devem ter percebido que erraram de rumo, estão indo para outro lado...
- Ah! Ela está voltando... "É um segredo" voltou...
- E em que estado!
- É, em que estado... Vocês ousam me olhar com esse ar chocado... Não viram como fui tratada?... Graças a vocês... sempre me empurrando... "Vá, vá lá, capriche"... Foi o que eu fiz... E não venham me dizer que não estavam olhando, vocês viram como uma daquelas inverdades me examinou e depois disse... e com que desprezo: "Isso, um segredo? Mas quem ela pensa que é? Dá para reconhecer imediatamente, sabemos o que ela é: é "um segredo de polichinelo'".
- Não vai demorar muito... Devem ser as últimas palavras antes de desligar... Parece que a divisória começa a se mover...
- Que idéia, colocar essa divisória... Prender a gente por tão pouco... Não havia o menor risco...
- Mas você esqueceu? Aconteceu conosco, no desenrolar de uma conversa como essa, das mais convencionais, rodadas há tanto tempo, bem experimentadas...
- Ah, é mesmo, quando só Deus sabe porque, uma de nós, tomada de um acesso de fúria, empurrou de repente a divisória e conseguiu abrir...
- Ela apareceu do outro lado como um demônio... Uma louca fugida do hospício...
- E então, você se lembra, um tédio mortal nos tinha mergulhado aos poucos num entorpecimento... Jazíamos como que inanimadas, e ela havia recuperado força suficiente para se levantar, passar para o outro lado e aí, cada vez mais excitada, ela quis se agitar um pouco mais...
- E que agito! De acordar até um morto... Aquilo nos reanimou a todas...
- E ela que se transformou, de repente, num grãozinho de sal, tinha deslizado para o outro lado e conseguido se insinuar nas engrenagens...
- E então aquele rangido... Mas o que é isso? Mas como? Mas de onde?... Que constrangimento... Ninguém sabia onde se meter...
- Sim, dá para entender. Mesmo apesar de todas as precauções... Conosco, nunca se sabe...
- Enfim, em todo caso, daquela vez ninguém tinha saído daqui... Nenhuma demente... Nem o menor grão de sal...
- Não, nada... Mas então, o que aconteceu?
- "Até logo" veio acabar, o fone foi reposto no gancho... e veio aquele silêncio...
- O que se chama "um silêncio consternado".
- Uma consternação tão imensa, tão pesada que nenhuma palavra conseguiria levantar...
- Logo vamos saber de tudo...
- Mas não me empurre desse jeito, não está vendo que não há mais divisória?... Que impaciência...
- É que é tão incrível, espantoso...
- "Até logo"... é ela mesma, mal podemos reconhecê-la, ela tem um ar acuado, toda encolhida.
- Como se temesse levar uma surra...
- E elas, à sua volta, a espremem, a empurram, parece que vão mesmo bater...
- "Até logo"? mas como é possível? Ela, a mais fiel servidora... a mais fina, a mais estimada...
- Mesmo quando lhe acontece de alçar o tom, sua simples presença é uma garantia de decência...
- No momento em que a porta, empurrada com toda a força, vai bater, "Até logo" retém, adia um pouco a batida, amortece um pouquinho a pancada...
- Um pouco antes de que o fone, pousado finalmente, faça ouvir seu clique mortal, "Até logo" vem amenizar a aproximação do último instante.
- Quando ameaça se desencadear um conflito impiedoso, que pode levar a brutalidades excessivamente bárbaras, "Até logo" é a última esperança de que, apesar de tudo, não sairemos de um mundo civilizado no qual, pelo menos, serão respeitadas as regras da guerra.
- E também, às vezes, quando chegam os momentos em que a separação é inevitável, aqueles duros e áridos momentos... "Até logo" começa a soltar algo como um vapor suave e morno.
- "Até logo" os recobre de uma bruma fina...
- "Até logo" os umidifica com promessas carinhosas...
- Então "Até logo" merece coisa melhor, merece o direito de defesa...
- Sim, explique-me, o que aconteceu? Por que você se precipitou... Quando não era a sua vez... Você não podia ter esperado?... Foi horrível, o que você fez...
- Sim, aqueles que estavam segurando o fone podem dizer...
- Pois bem, muito tempo antes de chegar o momento em que a conversa normalmente, decentemente termina, de repente, aparece "Até logo"... Estupor do outro lado da linha... Um pequeno instante de silêncio e depois um "Até logo" responde como um eco...
- Oh, não, não podia ser um eco.
- É verdade, era um "Até logo" gelado...
- Sim... como uma pequena estalactite...
- Parece até que a pontinha, "logo", tinha se desprendido, tinha caído, pulverizada... Não havia mais "logo", apenas um "A...", um "Ah!" de surpresa escandalizada antes de o fone ser pousado, do outro lado...
- Sem jeito de consertar as coisas...
- Então, você percebe? O que é que deu em você? Não vá dizer que tinha esquecido todas as palavras que deviam passar antes de você...
- Mas elas não se apresentavam... Então, como um ator de teatro, quando aquele que devia falar antes dele esqueceu o texto, teve "um branco", continua...
- Um branco? Mas que história é essa? Por acaso nós estávamos em branco? Não, estávamos todas lá...
- Todas lá?
- Sim, estávamos lá, prontinhas... "Lembranças à senhora sua mãe"... "E espero que vocês tenham bom tempo"... "E bom descanso"... "E boa estada"... "E boa viagem"... "E a Joana está lhe mandando um abraço"... "E obrigado por ter chamado"... E "Me telefone".
- Enfim, todas... Até mesmo nós, que geralmente passamos logo antes de você... e até mesmo, desculpe dizer, mas em certos casos nossa presença faz com que você não seja indispensável...
- Sim, é verdade, elas estavam lá, "Até mais" e "Até breve", as duas gêmeas intercambiáveis...
- Enfim, das duas, "Até breve" é um pouco mais vigorosa...
- E você saltou, cortou o barato de todas...
- Mas afinal, onde vocês estavam?
- Estávamos esperando um instante... queríamos dar um tempinho... Não havia pressa, pareceríamos projetadas à nossa revelia, por um aparelho automático.
- Não. Confesse que foi você que se distraiu. Ou cochilou, depois acordou num sobressalto e, meio adormecida, se jogou... Vamos, confesse...
- Não. Não tenho nada a confessar.
- Ora, para que forçá-la? De qualquer modo, agora sabemos que ela é absolutamente imprevisível. Nada confiável...
- "Até logo", fazer uma coisa dessa conosco! Quem imaginaria?
- Enfim, tanto pior, não há nada a fazer... Não podemos mais correr tal risco...
- Então, você está aqui conosco. Mas é espantoso. "Até logo" expulsa para este lado. Você deve estar se sentindo esquisita.
- É verdade, é a primeira vez que isso me acontece.
- Era justamente naquele momento, quando havia visitas, que você fazia seu trabalho. É difícil imaginar como eles vão se virar sem você...
- Ora, não se preocupem... Há uma coisa que se diz, e que às vezes é falsa, mas desta vez é o caso de dizer: ninguém é insubstituível.
- Sim, mas afinal, sem "Até logo"...
- Oh, não acreditem nisso... eles podem muito bem se virar... com "Até mais" e "Tchau", que continuam lá. Ou com outras que farão igualmente o serviço...
- Mas não fique com esse ar deprimido... Não tome a coisa dessa maneira. Pense que é uma aposentadoria bem merecida, depois de tantos anos.
- Depois de um trabalho tão assíduo. Você nunca abandonou o seu posto. Sempre fiel. Dedicada...
- Ah, isso é. O que me prejudicou foi, pelo contrário, um excesso de zelo...
- Então, relaxe agora. Aproveite essa irresponsabilidade, essa liberdade...
- Se pelo menos vocês estivessem dizendo a verdade... Mas eu sei que não vão deixar barato... Esperem até que a noite chegue... a noite mais profunda... o despertar depois de um primeiro sono... e depois a insônia... Vocês vão ver. Vão me chamar. Vão precisar de mim.
- Precisar de você quando não houver mais visitas?
- Não para fazer meu trabalho de antes, isso acabou...
- Mas então para quê?
- Isso eu contarei na próxima vez, quando estivermos de novo entre nós, fechadas todas juntas...
- Então, aconteceu como você havia previsto?
- Exatamente: foi apenas um pouco mais demorado, mais penoso...
- Oh, conte...
- Foi preciso assistir, primeiro, a toda a reconstituição...
- O quê? Da conversa toda? Antes da sua intervenção?
- Não, não toda... Somente ao seu ponto de partida, um ponto muito importante: a chamada vinha do lado de lá...
- E daí?
- E daí que, como aquela conversa tinha começado do lado de lá, só um "Até logo" de lá, não um "Até logo" de cá, podia encerrá-la, vocês sabem muito bem. É uma regra de cortesia. E vocês compreendem então que, para mim, era uma circunstância agravante.
- Mas você não sabia...
- Eu fingi que não. Mas como fazer crer que eu não tinha ouvido o telefone tocar? Eles riram... Então você ficou totalmente surda? Você não acompanhou o fim da conversa. Não ouviu tocar o telefone. Não ouviu responderem alô. Estão vendo, começou bem... Mas era apenas o começo. Depois, foi preciso escutar as últimas palavras antes de minha chegada... E vocês precisavam ouvir o tom desolado em que aquelas palavras eram repetidas... com que suspiros de pena... Ah, bastaria tão pouca coisa para que a conversa terminasse bem, como convém...
- Mas de todo modo, já que não foi do lado de lá que veio o "Até logo" final...
- Sim, claro, mas, enfim, poderia não ter sido tão terrível... uma pequena infração às regras... Mas o verdadeiro delito, fui eu que o cometi. Então, era preciso ver até que ponto esse delito era grave. Irreparável... examiná-lo de novo muito atentamente... Eu devia voltar e refazer tudo, exatamente do modo como havia acontecido...
- O mesmo "Até logo"? Mas como? Como você conseguiria?
- Pois bem, eu não conseguia. Eu recomeçava, me esforçava para me repetir...
"Até logo"... Não, não era você. Você não tinha esse tom seco, breve demais... Não, assim também não... Recomece... E eu recomeçava...
"Até logo"... Gentil demais, desta vez, quase meloso... Então, recomece...
"Até logo"... S... sim... Era assim, assim, mais ou menos... Mas, apesar de tudo, havia em você algo um pouco mais caloroso... Retome...
"Até logo"... Ah, mas está caloroso demais... não dá para acreditar... Você está tentando me tranquilizar... Está mentindo... vá embora... E depois me chamavam de volta... Não tente mais esconder a verdade... Tenho coragem suficiente para encará-la... volte, por favor, seja impiedosa...
"Até logo"... Ah, sim, é isso aí, foi assim que você fez... Você avançou como uma besta... E depois não, não me obedeça, você não pode ter sido tão desagradável, você nunca é, por que você teria sido, justamente daquela vez? Não havia nenhuma razão, não é, em geral você é amável... Oh, volte, tranquilize-me...
"Até logo"... ah é isso... é assim que você era... um "Até logo" para não botar defeito... Só que você se precipitou... Mas aí, que se pode fazer? É preciso resignar-se com isso.
- E então, a coisa terminou? Você não vai ser mais chamada?
- Vai depender das noites... isso pode recomeçar...
- Reconstituições que podem se prolongar até o amanhecer?
- Não, assim também não. O cansaço, depois o sono, virão libertar-me... Eu poderei voltar para junto de vocês. Mas, já disse, não vou perder por esperar...
- Haverá ainda muitas noites brancas?
- Oh, não sei... Posso ser substituída por outras...
- Que outras?
- Há tantas... Impossível prever de onde virão e quando... Elas são inúmeras... Então, pouco a pouco serei substituída... Serei esquecida...
- Você vai poder reassumir as suas funções?
- Oh, talvez dentro de algum tempo. Um tempo bastante longo... Mas nunca ficarei tranquila... A qualquer momento "Até logo" poderá produzir ressonâncias... elas me farão reaparecer tal qual eu era quando cometi meu delito...
- Portanto, tranquilidade nunca mais...
- Oh, mas quem sabe? Um belo dia... e então, que paz... Eu retomarei meu lugar entre as mais estimadas, as mais úteis das que ficam sempre do outro lado. Com todos os meus direitos restabelecidos. Cumprindo perfeitamente meus deveres... Oh, só de pensar nisso...
- Mas como? Como é possível que isso lhe aconteça?
- Como? Ora, imagine que um belo dia o telefone toque... e que a mesma voz... sim, a mesma voz, na outra ponta da linha, como se não houvesse nada, como se aquele maldito "Até logo" nunca tivesse existido... como se nada tivesse jamais acontecido... sim, imagine que a mesma voz, no tom mais natural, mais inocente e simpático possível... como se tudo não tivesse passado de um sonho mau... a mesma voz, só ela pode, só dela depende minha libertação, minha reabilitação total e definitiva, que aquela mesma voz venha um dia me trazer isto: "Olá"... simplesmente, normalmente... "Olá". Sim, "Olá, como vai?".
(...)
- Abram! Abram!
- Mas o que deu em vocês? A gente podia combinar...
- Não há nem um minuto a perder, precisamos sair... imediatamente... É um caso de omissão de socorro a pessoa em perigo.
- Que perigo? Você exagera...
- Exagero? Mas vocês não sentem o que está se espalhando do outro lado?... É como um vapor quente, sufocante...
- Sim, são palavras sobre as quais se diz que "elas esquentam a conversa"... Vejam como as santas se enxugam...
- Mas o que você está dizendo, elas não ousam se enxugar, seria indelicado, elas nem se mexem.
- Elas vão abrir quando virem as que estão aqui, reunidas, prontas para sair...
- Primeiro: "Não sou de sua opinião"... Existe meio mais prudente, mais precavido para dissipar esse vapor asfixiante?
- Prudente, mas não o bastante... elas se recusam a abrir, elas se enxugam o mais discretamente possível... para que ninguém veja...
- Tentem contornar: "Não sou de sua opinião" é, de fato, muito brutal... Poderíamos colocar antes dela "Desculpe"...
- "Desculpe!", isso é tudo o que você encontrou? Mas que engenhosidade...
- "Desculpe" poderia ser seguido de "mas"... e até mesmo de "nisso"... "mas nisso", que mostraria que só se trata de um ponto, sim, limitado... senão a concordância seria perfeita... "Desculpe, mas nisso"... Vamos, batam... Abram.
- Estão vendo, elas não abrem. Entretanto o vapor se torna mais espesso, do lado delas. O ar vai ficar irrespirável...
- Então venha cá você, "totalmente", venha colocar-se com as outras... "Desculpe, mas não sou totalmente"... Ah! e "acho"... quer vir também? Bom... O conjunto ficará bem aceitável: "Desculpe, mas acho que não sou totalmente de sua opinião"...
- Abram, agora... Não, elas não querem...
- Esperem, se pusermos "esta" no lugar de "sua", "esta opinião", levaria a crer que o que faz sufocar, o que se torna espesso, o que polui o ar, está frequentemente espalhado em outros lugares, onde não provoca nenhum efeito nocivo, apenas uma opinião entre outras. Vamos, todas juntas, tentemos... "Desculpe, mas acho que não sou totalmente desta opinião" ... você, sim, "esta"... apoie mais forte... Abram!
- Não, não há o que fazer, elas preferem sufocar, enxugar suavemente os corrimentos cada vez mais quentes de vapor, que cada vez se condensa mais...
- Elas têm tanto medo... Deus sabe a que isso, até mesmo isso, as poderia levar... a que corpos repugnantes... mortais... elas seriam estranguladas...
- Mas você se esquece de que são umas santas! O que elas mais temem é matar o outro...
- O que está acontecendo? Parece que a divisória...
- Por que o espanto? Você não está vendo o que foi levado para o outro lado?
- Sim, não dá para acreditar... "Raça", sim, "Raça" entrou precedida... de "as pessoas"... "As pessoas dessa raça." Nem mais, nem menos.
- Nós bem sabíamos que, se fomos todas expulsas, é porque aquilo que estava acontecendo era algo de que se diz "não há santo que aguente".
- E as que ficaram aguentaram tudo, como umas "santas de pau oco"...
- Mas, agora, "as pessoas dessa raça", não apenas não há santo que aguente, mas também isso é coisa de "fazer danar um santo", e dito e feito, vejam as santas danadas que se precipitam, que estão abrindo... para que nós todas, fechadas deste lado, e as mais malignas de nós, entremos sem compostura e façamos uma farra...
- Mas o que é isso?
- Mas como é possível? Ela nunca se mostrou do outro lado...
- Quando foi que ela se introduziu lá? Como?
- Talvez ela já estivesse lá há muito tempo, imóvel, cochilando num canto, engordando na inação... sem que ninguém desconfiasse de sua presença...
- Ou talvez a brusca abertura da divisória inteira tenha criado um vácuo de ar, e ela, que estava fora, se sentiu aspirada, puxada...
- De qualquer modo, ela está chegando...
- À sua aproximação, todas, mesmo as mais ferinas, as mais picantes, se alinham respeitosamente abrindo alas... E entre essas alas, lentamente, ela avança...
- Ela tem um andar gingado, arrastado...
- Ela estica seus membros enormes, como que inchados, ela não tem pressa...
- Ela dá um tempo para saborear melhor...
- E eis que ela despenca sobre o estoque em que se amontoava, em desordem, tudo o que as santas suportaram e que as transformaram em santas danadas, ela esmaga tudo, ela transforma tudo num monte de cacos, de dejetos, ela se apóia em cima com todo o seu peso... Seu peso de enorme palavrão, o maior palavrão de todos os palavrões.


Trechos de "Ouvrez", de NATHALIE SARRAUTE, em tradução de LEYLA PERRONE-MOISÉS.


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