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+ brasil 501 d.C.
O Brasil começou
em 1500, é luso, católico e cordial; o país pode ser também isso, mas é também o contrário; por que nosso mito fundador em 1500 e não na Independência,
na abdicação,
na Abolição?
A memória nacional em luta contra a história
José Murilo de Carvalho
Já quase na ressaca dos 500 anos, a
participação em dois simpósios, um
semi-oficial no Rio de Janeiro, outro
acadêmico em Sevilha (Espanha), me
leva a uma última visita ao assunto.
O tema central das discussões em torno dos 500 anos foi o da identidade nacional e de sua construção. Nesse campo,
os dois autores mais citados nos encontros acadêmicos foram provavelmente
Benedict Anderson e Ernest Renan
(1823-1892), o primeiro em seu livro
"Comunidades Imaginadas - Reflexões
sobre a Origem e Difusão do Nacionalismo", de 1983, o segundo em sua famosa
conferência de 1882, "Que É uma Nação?". Anderson desenvolveu a idéia de
que nações são comunidades imaginadas, isto é, construídas graças a um variado arsenal de técnicas desenvolvidas amplamente no século 19.
Ajuste da memória
Incluíam-se no
arsenal a elaboração de mitos de origem,
a busca de documentos antigos e de ancestrais comuns, a criação de heróis, a
imposição de uma única língua, o uso da
paisagem como marca de identidade, os
museus etnográficos, as exposições internacionais, o folclore, o romance histórico à maneira de Walter Scott (1771-1832), a ópera, os monumentos. Tal
construção equivale ao que hoje se convencionou chamar de memória nacional, em oposição ao que seria história nacional. A memória é a história ajustada
às necessidades da construção da identidade nacional.
Renan já antecipara tal idéia em sua
conferência, ao dizer que a criação de
uma nação exigia o esquecimento e até
mesmo o erro histórico. A unidade nacional se constrói quase sempre, é ainda
ele quem fala, mediante o uso de muita
violência. Foi assim na França, onde a
união do Norte e do Sul se fez após um
século de extermínio e terror. No caso
brasileiro, basta citar as revoltas do Primeiro Reinado e da Regência, algumas
de violência inaudita como a Cabanagem, para ilustrar a tese. As violências
têm que ser esquecidas ou interpretadas
de maneira a não impedir o sentimento
de unidade, a permitir, para usar outro
jargão de hoje, a produção de uma narrativa coerente, uma escritura, da nação.
É por isso, prossegue Renan, que o progresso dos estudos históricos constitui
um perigo para a nacionalidade, na medida em que os historiadores podem insistir em lembrar aspectos incômodos,
em desmascarar excessos de esquecimentos e de erros. Não foi esse o caso da
maioria dos historiadores do século 19, aí
incluídos os brasileiros, pois quase todos
estavam dedicados à tarefa de construir a
memória de seus respectivos Estados-nação. Mas o importante é notar que Renan já percebera a distinção entre história e memória e indicara a tensão existente entre as duas.
Não parou aí a perspicácia do grande
publicista. A conferência, destinada a
combater a concepção alemã de nação
baseada na raça, incluía outra dimensão
do fenômeno nacional que não pode ser
separada do exercício de construção da
memória. Além de partilhar um passado
de experiências comuns, mesmo "memorizadas", a existência de um povo, de
uma nação, exige o consentimento atual,
a adesão, no presente, a valores e propósitos comuns.
Plebiscito de todos os dias
A existência de uma nação, resumia Renan na
expressão que ficou famosa, é um plebiscito de todos os dias, é a vontade comum
de seus habitantes. Nessa visão, que endosso, a convivência difícil e tensa entre
as duas dimensões, a invenção e a participação, é que viabiliza uma identidade
nacional efetiva. O excesso de esquecimento e erro leva à perda de eficácia da
narrativa nacional, ao esvaziamento do
imaginário nacional e, eventualmente,
ao enfraquecimento ou mesmo crise da
identidade. Nessa hipótese, coloca-se como exigência a reformulação do imaginário, a reescrita da memória de acordo
com a vontade dos cidadãos.
Renan serve para pensar os 500 anos.
Nos seminários acadêmicos independentes pode-se dizer que predominou a
preocupação em expor e criticar a dimensão imaginária do evento. Mas nas
iniciativas oficiais, semi-oficiais e oficiosas, ou mesmo naquelas promovidas pela mídia, a Rede Globo à frente, exatamente as que atingiram o grande público, o predomínio da dimensão imaginária, como era de esperar, foi absoluto.
Tratou-se o tempo todo de construir
ou reforçar determinados traços de identidade nacional que exigem doses maciças de esquecimento. A Mostra do Redescobrimento é exceção, pois apresenta
em seus vários módulos, sobretudo os
dedicados aos índios, aos negros, ao cangaço, um imaginário nacional com doses
aceitáveis de esquecimento. O mesmo
não se deu com as celebrações oficiais de
Porto Seguro. Nessas, a ênfase exclusiva
dada ao episódio da viagem de Cabral e à
carta do escrivão Caminha revelou a tentativa de consolidar determinado mito
de origem com suas várias implicações.
As implicações têm a ver sobretudo
com o reforço de três componentes de
nossa nação imaginada: a identidade lusa, a identidade católica e a identidade
cordial. Não é fora de propósito ver no
episódio de 1500, como relatado pelo documento de Caminha, tais elementos.
Tratava-se de conquistadores portugueses, houve missa católica e o contato com
os nativos foi pacífico.
O truque da imaginação está em transformá-lo em mito fundador e definidor
da natureza de nossa identidade: o Brasil
começou em 1500, é luso, católico e cordial. O país pode ser também isso, mas é
também o contrário disso. Por que na
conquista em 1500 e não na Independência em 1822, na abdicação em 1831, na
Abolição em 1888? A população de origem lusa é apenas parcela da população
branca. No Sul do país ela é minoria. O
catolicismo é uma entre as muitas religiões nacionais e perde terreno constantemente. A cordialidade já foi há muito
denunciada como mistificação. Ela sem
dúvida não se exerceu em relação aos indígenas e aos africanos.
De fora do mito
Ficam de fora do
mito assim criado todos esses contingentes de brasileiros e dele discrepa a natureza das relações sociais que presidiram à
história do país. Há esquecimento demais e há muito erro. Uma cerimônia
com memória menos seletiva teria incluído na festa os que pagaram o preço
de nossa história, como índios e sem-terra (barrados pela polícia baiana), teria,
idealmente, reconhecido as violências e
injustiças cometidas contra esses excluídos, teria incorporado outras religiões,
teria convidado presidentes de outros
países que contribuíram para a formação do Brasil, como Itália, Alemanha,
Angola, Nigéria, Moçambique etc. O plebiscito nacional de hoje exigia essa alteração da memória.
O plebiscito falou exatamente pela voz
dos que foram deixados de fora da festa,
os índios e os sem-terra, tomando os últimos, sociologicamente, como os descendentes dos escravos africanos. O protesto, embaraçoso para os organizadores, teve o sentido positivo de apontar as
falhas da memória construída que se
tentou reiterar, seu distanciamento da
realidade social do Brasil de hoje, seu divórcio dos sentimentos de parte importante do país. Mostrou a necessidade de
reescrever a narrativa nacional.
No seminário de Sevilha, Fernando
Novais exprimiu um pensamento atrevido que uso com alguma liberdade: as
duas grandes mudanças políticas por
que passou o país, a Independência e a
República, teriam sido mau negócio para
os colonizados internos, os índios, os escravos africanos e seus descendentes.
Quer dizer, as duas mudanças serviram ao reforço do domínio do senhoriato interno. Uma consequência desse fato
foi a dificuldade criada para o desenvolvimento de uma identidade nacional.
O senhoriato dividia-se entre a identidade européia que excluía os colonizados e a identidade americana só possível
graças a uma visão romântica do índio.
José Bonifácio (1763-1838) já percebera
com nitidez que a escravidão negra e a
exclusão dos índios impediam a constituição de uma nação no novo país.
Sem comunidade, vivências, sentimentos e propósitos, a identidade nacional passou a ser imaginada por intelectuais, aí incluídos historiadores, com
muito esquecimento, muito erro e muita
fuga, ao mesmo tempo em que a ação
política mantinha a colonização interna
ao não promover a educação popular e
não reformar a estrutura agrária. A colonização interna retrata-se ainda hoje nos
índices de desigualdade social. Houve
muito esquecimento no mito de uma
história pacífica, houve erro na idéia de
democracia racial, houve fuga na exaltação da natureza como principal motivo
de orgulho nacional. Muita imaginação e
pouco plebiscito.
O desastre das celebrações oficiais e as
críticas que elas despertaram mostram
que é hora de mais plebiscito, é hora de
falarem os Brasis de todos os quadrantes
sociais.
As vozes serão desafinadas e o coral será cacofônico. E haverá, sem dúvida, reação dos que só admitem uma idéia de
Brasil, aquela que eles mesmos criaram e
que gostariam de impor numa reedição
cultural do ame-o ou deixe-o. Mas, se a
nação não se imagina a partir dessa diversidade, posto que cacofônica, ela jamais se firmará em bases sólidas, na medida em que pode haver solidez nesses
domínios. Os mitos cairão por terra, reduzidos às simples mistificações que são.
José Murilo de Carvalho é professor titular do
departamento de história da Universidade Federal
do Rio de Janeiro, autor de "A Construção da Ordem - Teatro das Sombras" (Relume-Dumará) e
"Pontos e Bordados" (Ed. da UFMG), entre outros.
Ele escreve mensalmente na seção "Brasil 501
d.C.", do Mais!.
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