São Paulo, domingo, 12 de novembro de 2000

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+ brasil 501 d.C.
O Brasil começou em 1500, é luso, católico e cordial; o país pode ser também isso, mas é também o contrário; por que nosso mito fundador em 1500 e não na Independência, na abdicação, na Abolição?
A memória nacional em luta contra a história

José Murilo de Carvalho

Já quase na ressaca dos 500 anos, a participação em dois simpósios, um semi-oficial no Rio de Janeiro, outro acadêmico em Sevilha (Espanha), me leva a uma última visita ao assunto. O tema central das discussões em torno dos 500 anos foi o da identidade nacional e de sua construção. Nesse campo, os dois autores mais citados nos encontros acadêmicos foram provavelmente Benedict Anderson e Ernest Renan (1823-1892), o primeiro em seu livro "Comunidades Imaginadas - Reflexões sobre a Origem e Difusão do Nacionalismo", de 1983, o segundo em sua famosa conferência de 1882, "Que É uma Nação?". Anderson desenvolveu a idéia de que nações são comunidades imaginadas, isto é, construídas graças a um variado arsenal de técnicas desenvolvidas amplamente no século 19.

Ajuste da memória
Incluíam-se no arsenal a elaboração de mitos de origem, a busca de documentos antigos e de ancestrais comuns, a criação de heróis, a imposição de uma única língua, o uso da paisagem como marca de identidade, os museus etnográficos, as exposições internacionais, o folclore, o romance histórico à maneira de Walter Scott (1771-1832), a ópera, os monumentos. Tal construção equivale ao que hoje se convencionou chamar de memória nacional, em oposição ao que seria história nacional. A memória é a história ajustada às necessidades da construção da identidade nacional. Renan já antecipara tal idéia em sua conferência, ao dizer que a criação de uma nação exigia o esquecimento e até mesmo o erro histórico. A unidade nacional se constrói quase sempre, é ainda ele quem fala, mediante o uso de muita violência. Foi assim na França, onde a união do Norte e do Sul se fez após um século de extermínio e terror. No caso brasileiro, basta citar as revoltas do Primeiro Reinado e da Regência, algumas de violência inaudita como a Cabanagem, para ilustrar a tese. As violências têm que ser esquecidas ou interpretadas de maneira a não impedir o sentimento de unidade, a permitir, para usar outro jargão de hoje, a produção de uma narrativa coerente, uma escritura, da nação. É por isso, prossegue Renan, que o progresso dos estudos históricos constitui um perigo para a nacionalidade, na medida em que os historiadores podem insistir em lembrar aspectos incômodos, em desmascarar excessos de esquecimentos e de erros. Não foi esse o caso da maioria dos historiadores do século 19, aí incluídos os brasileiros, pois quase todos estavam dedicados à tarefa de construir a memória de seus respectivos Estados-nação. Mas o importante é notar que Renan já percebera a distinção entre história e memória e indicara a tensão existente entre as duas. Não parou aí a perspicácia do grande publicista. A conferência, destinada a combater a concepção alemã de nação baseada na raça, incluía outra dimensão do fenômeno nacional que não pode ser separada do exercício de construção da memória. Além de partilhar um passado de experiências comuns, mesmo "memorizadas", a existência de um povo, de uma nação, exige o consentimento atual, a adesão, no presente, a valores e propósitos comuns.

Plebiscito de todos os dias
A existência de uma nação, resumia Renan na expressão que ficou famosa, é um plebiscito de todos os dias, é a vontade comum de seus habitantes. Nessa visão, que endosso, a convivência difícil e tensa entre as duas dimensões, a invenção e a participação, é que viabiliza uma identidade nacional efetiva. O excesso de esquecimento e erro leva à perda de eficácia da narrativa nacional, ao esvaziamento do imaginário nacional e, eventualmente, ao enfraquecimento ou mesmo crise da identidade. Nessa hipótese, coloca-se como exigência a reformulação do imaginário, a reescrita da memória de acordo com a vontade dos cidadãos. Renan serve para pensar os 500 anos. Nos seminários acadêmicos independentes pode-se dizer que predominou a preocupação em expor e criticar a dimensão imaginária do evento. Mas nas iniciativas oficiais, semi-oficiais e oficiosas, ou mesmo naquelas promovidas pela mídia, a Rede Globo à frente, exatamente as que atingiram o grande público, o predomínio da dimensão imaginária, como era de esperar, foi absoluto. Tratou-se o tempo todo de construir ou reforçar determinados traços de identidade nacional que exigem doses maciças de esquecimento. A Mostra do Redescobrimento é exceção, pois apresenta em seus vários módulos, sobretudo os dedicados aos índios, aos negros, ao cangaço, um imaginário nacional com doses aceitáveis de esquecimento. O mesmo não se deu com as celebrações oficiais de Porto Seguro. Nessas, a ênfase exclusiva dada ao episódio da viagem de Cabral e à carta do escrivão Caminha revelou a tentativa de consolidar determinado mito de origem com suas várias implicações. As implicações têm a ver sobretudo com o reforço de três componentes de nossa nação imaginada: a identidade lusa, a identidade católica e a identidade cordial. Não é fora de propósito ver no episódio de 1500, como relatado pelo documento de Caminha, tais elementos. Tratava-se de conquistadores portugueses, houve missa católica e o contato com os nativos foi pacífico. O truque da imaginação está em transformá-lo em mito fundador e definidor da natureza de nossa identidade: o Brasil começou em 1500, é luso, católico e cordial. O país pode ser também isso, mas é também o contrário disso. Por que na conquista em 1500 e não na Independência em 1822, na abdicação em 1831, na Abolição em 1888? A população de origem lusa é apenas parcela da população branca. No Sul do país ela é minoria. O catolicismo é uma entre as muitas religiões nacionais e perde terreno constantemente. A cordialidade já foi há muito denunciada como mistificação. Ela sem dúvida não se exerceu em relação aos indígenas e aos africanos.

De fora do mito
Ficam de fora do mito assim criado todos esses contingentes de brasileiros e dele discrepa a natureza das relações sociais que presidiram à história do país. Há esquecimento demais e há muito erro. Uma cerimônia com memória menos seletiva teria incluído na festa os que pagaram o preço de nossa história, como índios e sem-terra (barrados pela polícia baiana), teria, idealmente, reconhecido as violências e injustiças cometidas contra esses excluídos, teria incorporado outras religiões, teria convidado presidentes de outros países que contribuíram para a formação do Brasil, como Itália, Alemanha, Angola, Nigéria, Moçambique etc. O plebiscito nacional de hoje exigia essa alteração da memória.
O plebiscito falou exatamente pela voz dos que foram deixados de fora da festa, os índios e os sem-terra, tomando os últimos, sociologicamente, como os descendentes dos escravos africanos. O protesto, embaraçoso para os organizadores, teve o sentido positivo de apontar as falhas da memória construída que se tentou reiterar, seu distanciamento da realidade social do Brasil de hoje, seu divórcio dos sentimentos de parte importante do país. Mostrou a necessidade de reescrever a narrativa nacional.
No seminário de Sevilha, Fernando Novais exprimiu um pensamento atrevido que uso com alguma liberdade: as duas grandes mudanças políticas por que passou o país, a Independência e a República, teriam sido mau negócio para os colonizados internos, os índios, os escravos africanos e seus descendentes.
Quer dizer, as duas mudanças serviram ao reforço do domínio do senhoriato interno. Uma consequência desse fato foi a dificuldade criada para o desenvolvimento de uma identidade nacional.
O senhoriato dividia-se entre a identidade européia que excluía os colonizados e a identidade americana só possível graças a uma visão romântica do índio. José Bonifácio (1763-1838) já percebera com nitidez que a escravidão negra e a exclusão dos índios impediam a constituição de uma nação no novo país.
Sem comunidade, vivências, sentimentos e propósitos, a identidade nacional passou a ser imaginada por intelectuais, aí incluídos historiadores, com muito esquecimento, muito erro e muita fuga, ao mesmo tempo em que a ação política mantinha a colonização interna ao não promover a educação popular e não reformar a estrutura agrária. A colonização interna retrata-se ainda hoje nos índices de desigualdade social. Houve muito esquecimento no mito de uma história pacífica, houve erro na idéia de democracia racial, houve fuga na exaltação da natureza como principal motivo de orgulho nacional. Muita imaginação e pouco plebiscito.
O desastre das celebrações oficiais e as críticas que elas despertaram mostram que é hora de mais plebiscito, é hora de falarem os Brasis de todos os quadrantes sociais.
As vozes serão desafinadas e o coral será cacofônico. E haverá, sem dúvida, reação dos que só admitem uma idéia de Brasil, aquela que eles mesmos criaram e que gostariam de impor numa reedição cultural do ame-o ou deixe-o. Mas, se a nação não se imagina a partir dessa diversidade, posto que cacofônica, ela jamais se firmará em bases sólidas, na medida em que pode haver solidez nesses domínios. Os mitos cairão por terra, reduzidos às simples mistificações que são.


José Murilo de Carvalho é professor titular do departamento de história da Universidade Federal do Rio de Janeiro, autor de "A Construção da Ordem - Teatro das Sombras" (Relume-Dumará) e "Pontos e Bordados" (Ed. da UFMG), entre outros. Ele escreve mensalmente na seção "Brasil 501 d.C.", do Mais!.


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