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Em "Memórias do Subsolo", o escritor russo fixa formas
e idéias que aprimoraria nos seus grandes romances,
como "Crime e Castigo" e "Os Irmãos Karamazov"
Dostoiévski concentrado
Otavio Frias Filho
Diretor de Redação
O relançamento de um livro importante é sempre oportuno, mas há outras razões para comemorar a iniciativa da Editora 34 de reeditar
"Memórias do Subsolo", de Dostoiévski
(1821-1881). É uma nova oportunidade para apreciar a
célebre tradução que Boris Schnaiderman fez do russo,
seu idioma natal, publicada pela primeira vez em 1961.
Além disso, o leitor jovem ou principiante encontra,
nesse pequeno volume (148 págs.), a novela que é considerada o "prefácio" dos grandes romances que viriam a
seguir: "Crime e Castigo" (1866), "O Idiota" (1869), "Os
Possessos" (1871) e "Os Irmãos Karamazov" (1880).
"Memórias do Subsolo" é de 1864. Foi neste texto que
Dostoiévski fixou seu programa como escritor e pensador moral, e nele está contida a melhor síntese do que
viria a seguir.
Dostoiévski não é um autor para leitores livrescos,
que em geral abominam seus exageros dramáticos; jovens e principiantes formam seu público ideal, capaz de
desenvolver uma intensa empatia com os dois níveis
em que se pode decompor sua prosa. O nível mais imediato ou narrativo é feito de tramas complicadas, melodramáticas e detetivescas. O fio condutor dos acontecimentos é o relato de algum crime terrível, reconstituído
em obsessivo detalhe. Como nas histórias policiais, o
crime pode ocorrer a título de catarse final, depois de o
autor haver esticado as cordas do suspense até sua máxima tensão ("Os Possessos"); outras vezes, ele acontece no começo ou no meio da trama, para que acompanhemos o inquérito contra um inocente ("Karamazov") ou um culpado ("Crime e Castigo").
Em redor desse episódio central, Dostoiévski amontoa funcionários arruinados, prostitutas arrependidas,
estudantes depressivos, uma humanidade pequena e
miserável que mora em cortiços e perambula pelas ruas
e tavernas, frequentando as diversas subtramas de seus
romances. Apesar de todo o poder descritivo de Dostoiévski e da originalidade com que ele retorce seus
enredos, há um aspecto de pieguice nessa atmosfera saturada de vodca barata e sentimentalismo. Os vilões
psicopatas ou epilépticos de Dostoiévski, seus indefectíveis órfãos e viúvas e mocinhas prontos a sacrificar tudo
por um nobre ideal -existe algo de estereotipado, de
convencional e até desleixado nessas composições. Tais
falhas num grande escritor sempre foram devidamente
exploradas contra Dostoiévski, mas o terão ajudado a se
converter num autor popular, apto a "prender a atenção" do leitor mais refratário e a formar um amplo
círculo de aficionados, que ainda hoje o lêem e relêem
num estado febril semelhante ao que mantém seus personagens numa névoa de lucidez e delírio.
André Gide afirmou que Dostoiévski seria o maior
dos romancistas mesmo que sua obra se limitasse a esse
nível narrativo, sem lhe acrescentar as "profundezas filosóficas" que o envolvem. Pois subjacente ou superposta ao melodrama policial, articulada com ele pela
motivação de criminosos que viveram situações extremas ou limítrofes, está uma camada de dilemas morais
aptos a representar a própria condição humana confrontada com a morte, a dor, o mal e a descrença.
A literatura de Dostoiévski é uma temerária fusão do
gênero "policial" com a especulação metafísica. Seu sistema moral é muito claro e pode ser figurado por uma
forma circular em que os extremos de abjeção e pureza,
de maldade e de altruísmo se tocam. Ele despreza os estágios intermediários em que se acomoda o filisteísmo
da maioria dos seres humanos para concentrar seu interesse nos casos extremos -mórbidos, místicos ou delinquenciais-, tomados como bilhete para a transcendência e a iluminação.
Vladimir Nabokov, o mais temível inimigo de Dostoiévski, a quem chamou de escritor "bastante medíocre", satirizava o modo como seus personagens abrem
caminho até Jesus a golpes de pecado.
Além de autor de um dos romances mais famosos do
século 20, Nabokov é um crítico brilhante, engraçado e
idiossincrático, e nenhuma devoção a Dostoiévski se assentará sobre base firme se não tiver passado pela prova
da leitura de seu ensaio sobre o detestado antecessor.
Sem prejuízo da sátira, essa geografia circular da moral
não é, porém, invenção de Dostoiévski. Ela é essencial,
salvo engano, ao cerne da doutrina cristã, que gira em
torno da tríade pecado, arrependimento e perdão. A parábola do filho pródigo deixa muito claro que, na hierarquia da salvação e na gratidão divina, o leal cumpridor de seus deveres está abaixo do réprobo sinceramente arrependido. (O próprio Jesus, que frequentava festas
nas quais o vinho corria a rodo, escolheu a dedo companhias bastante suspeitas.) A doutrina
tem correspondência em mecanismos
psicológicos: somente a prática de uma
falta grave desencadeia as tremendas forças de remorso requeridas pela verdadeira conversão religiosa, além de estabelecer tamanho rompimento -a prisão, a
perda dos bens, o exílio- com as circunstâncias prévias e "normais" que o
sujeito é lançado a uma "nova" vida, na qual "renasce".
Narrativa e metafísica
A fim de ressaltar o caráter "didático" de "Memórias do Subsolo", vale ter em
conta que a novela se divide em duas partes, nas quais
os dois níveis -o narrativo e o metafísico- estão separados como se por efeito de uma diálise.
Na primeira parte, o narrador apresenta suas "idéias"
sobre o universo. Movido pelo ressentimento profundo
que lhe provoca o abismo entre seus autoproclamados
méritos intelectuais e o pobre reconhecimento que lhes
dedica o mundo, o narrador insulta seus semelhantes
para melhor insultar a si mesmo, que não é capaz de se
opor a eles. Seu raciocínio é pérfido, especioso e paradoxal, e ele se deixa arrastar com gosto pelos exageros
em que sua sanha destrutiva pode encontrar livre curso;
no ambulatório psiquiátrico que Nabokov imaginou
para alojar os personagens de Dostoiévski, esse narrador estaria na enfermaria dos paranóicos.
Não contente em triturar pessoas e episódios com o
propósito de extrair deles o máximo rendimento em
matéria de ridículo, em exibir toda a vida em seu redor
sob o manto da ignomínia, o narrador termina por atingir as verdades e esperanças mais consolidadas de sua
época. Vai ficando claro que Dostoiévski pretende, por
meio desse ventríloquo indigno, criticar nada menos
que toda a civilização burguesa, com seus requintes de
ciência e cultura, seus sentimentos elevados e sua autoconfiança na aurora de uma humanidade feliz e realizada. O verdadeiro inimigo é o iluminismo do século 18 e
as diversas correntes de reforma social que se desenvolveram, a partir dele, no século seguinte.
O rico debate político e social que permeia a literatura
russa entre mais ou menos 1820 e 1900 opunha, grosso
modo, ocidentalizantes e eslavófilos.
Ambos partiam do pressuposto comum de que o
atraso relativo da Rússia em relação à Europa era o
principal problema histórico do país (qualquer semelhança com o Brasil não é mera coincidência...). Enquanto os primeiros preconizavam a adoção de fórmulas européias, variações mais ou menos
combinadas de liberalismo e socialismo,
os eslavófilos acreditavam identificar, na
tradição da Rússia "profunda", forças
capazes de elevar sua sociedade a um
ponto não apenas equivalente, mas situado mais adiante do progresso histórico europeu. Não se tratava propriamente
de uma querela entre esquerda e direita,
pois essas forças tradicionais poderiam ser, no campo
eslavófilo, tanto o czarismo e a Igreja Ortodoxa, como a
estrutura comunal da organização campesina na Rússia, resquício potencialmente revolucionário de formações históricas obsoletas.
Dostoiévski flertou com o socialismo na juventude,
razão pela qual foi preso, condenado à morte e teve a
sentença comutada para trabalhos forçados na Sibéria,
fato que só lhe foi revelado depois de a polícia encenar
os preparativos de sua execução por fuzilamento. No
exílio, o escritor "aderiu a seus carcereiros", conforme a
dura expressão de Freud no ensaio psicanalítico sobre o
romancista, tornando-se adepto do czar, da igreja e da
tradição -em suma, um reacionário.
Mal camuflados como literatura, os motivos dessa
guinada estão expostos na digressão metafísica do narrador das "Memórias". Ele apregoa que o esclarecimento científico é incapaz de dar origem não apenas à felicidade, mas ao autodomínio do homem sobre si mesmo.
Se a maior influência literária de Dostoiévski foi, talvez,
Dickens, o autor que está por trás de suas idéias é o
Rousseau romântico que descria do progresso da ciência e da técnica.
Mesmo se esclarecido sobre seu próprio interesse e a
conveniência de conciliá-lo com o interesse dos outros,
o homem quer ser irracional, louco e absurdo. Para a
metafísica de Dostoiévski, existe um núcleo irredutível
na condição humana, impermeável ao progresso histórico e avesso à persuasão lógica: nesse núcleo profundo
e misterioso habita o valor que é supremo para nosso
escritor, o livre-arbítrio. De todas as idéias fixas desse
autor obsessivo, o livre-arbítrio é talvez a mais central e
persistente.
A segunda parte da novela é um estranho melodrama
que envolve a inevitável prostituta de alma boa. Seu interesse é menor, diante das proezas que Dostoiévski lograria, no registro melodramático, em seus romances
futuros, aqui apenas esboçadas com hesitação e parcimônia. Mais interessante é verificar que esse narrador
anônimo é um dos precursores do anti-herói da literatura moderna em dois sentidos. No solipsismo irremediável, que o leva a um constante tagarelar consigo mesmo, e no questionamento abusivo, que o faz duvidar de
sua própria persona, moldando-a conforme suas conveniências de argumentação. O narrador abandona seu
ponto fixo, e a mobilidade que disso decorre abre múltiplas perspectivas, muito além da narrativa tridimensional que prevalecia até então. Semelhanças com as técnicas narrativas de Machado de Assis não serão, tampouco, coincidência.
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