São Paulo, Domingo, 12 de Dezembro de 1999


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A crítica norte-americana Camille Paglia analisa "Os Pássaros", de Alfred Hitchcock, em ensaio a sair pela Rocco
Armadilhas femininas

Silviano Santiago
especial para a Folha

U m dia, talvez, a história do melhor cinema hollywoodiano venha a ser narrada a partir dos poucos e repetidos recursos de retórica ficcional de que se valeram as narrativas cinematográficas. Julgada verdadeira, essa proposta nos levaria a dar destaque à "gag" e ao "suspense", ou seja, às narrativas que despertam gargalhadas, levando os espectadores a desopilarem o fígado, e às que causam arrepios, levando-os a fecharem os olhos. "Gag" e "suspense", motores da narrativa; riso e medo, horizontes do espectador. Sobressaem nos estúdios de Hollywood duas figuras emblemáticas e inglesas: Charles Chaplin e Alfred Hitchcock. H.L. Mencken dizia que a cultura norte-americana é um ventozinho gelado que sopra da Inglaterra. O poder corrosivo do riso chapliniano é a certeza da construção de um mundo futuro mais justo e melhor. Ao ressuscitar o potencial afetivo do indivíduo no seu dia-a-dia, a ansiedade, propósito e causa do "suspense" hitchcockiano, escreve o obituário dos sentimentos e emoções recalcados. Em ambos os casos, explode "o selvagem", para se valer da palavra de Virginia Woolf para caracterizar as convulsões emocionais por que passa o indivíduo na platéia. No humanismo cosmopolita que o cinema comercial tem de pregar, o primeiro grupo de narrativas aponta para Plauto, e o segundo, para Sófocles. Abrangentes, elas potencializaram dicotomias que enriqueceram e enriquecem a discussão cultural proposta pela crítica cinematográfica. Utopia e cotidiano. Coletividade e indivíduo. Solidariedade e amor. Objetividade e introspeção. Rua e casa. Circo e parque de diversões.

A compreensão promíscua O espectador displicente e contumaz elegeu inconsciente e promiscuamente os dois gêneros como os de sua preferência. Já o espectador atento e crítico não admitiu a promiscuidade na sua compreensão do cinema hollywoodiano como arte. Em estudo escrito nos anos 40, Georges Sadoul, historiador de formação marxista, deu direito de cidadania socialista a Carlitos. Traduzido para o português, o livro deixou ruminando a cabeça de Carlos Drummond. O resultado foi o longo poema "Canto ao Homem do Povo Charlie Chaplin" (1945), em que o poeta oferece a Carlitos a saudação "de homens comuns, numa cidade comum". Já os intimistas autores da nouvelle vague, François Truffaut à frente, se filiaram a Hitchcock para melhor comporem o conturbado mundo sentimental da burguesia européia posterior à Segunda Guerra e anterior a 1968. Não é de estranhar que Camille Paglia, percuciente analista da vida sexual e amorosa da classe média norte-americana, tenha eleito Hitchcock como cineasta favorito e "Os Pássaros" (1963) como filme para análise. Ao contrário de Sadoul e Drummond, não partiu ela de aparato de leitura imposto pela postura político-partidária. Parte antes de suas lembranças. Ainda "adolescente e impressionável", vê o filme e sai da sala "esmagada" pela personagem sedutora de Melanie. Naquela época, recorda, "as rainhas louras das fraternidades dominavam a vida social na maioria das escolas secundárias dos Estados Unidos". Melanie é a loura bonita que, por direito divino, chega ao topo e tiraniza as demais. Já a menina, interpretada por Cathy Brenner, representa para a jovem Camille as animadoras de torcida da década de 1950. Encarnava "o que uma menina boazinha deveria ser". Confessa hoje: "Tenho vontade de bater nela!". Camille revê muitas vezes o filme na televisão. Vai atualizando e afiando o seu instrumental teórico-interpretativo, que oscila entre o feminismo e a psicanálise. Alguns exemplos. Enquanto fala no aparelho, Melanie fica "brincando com o lápis fálico e com o cordão umbilical do telefone". As cores primaveris marrom-claro e verde-pastel do vestido da atriz estão como que anunciando "o cio, a promessa de fertilidade". Ao atracar o barco no cais, Melanie prende a laçada da amarra na estaca, o que parece ser "o laço do carrasco que enforca um pênis". Fácil deduzir que a bolsa, de que o personagem nunca se desvencilha, é "mochila de caça para aprisionar a presa masculina" e representa "a vagina como uma prisão masculina". De posse de interpretação minuciosa do filme, Camille considera Tippi Hendren, que interpreta Melanie, "a suprema heroína hitchcockiana". "Os Pássaros" é "como uma ode perversa ao glamour sexual feminino", mostrado "em todas as suas fases sedutoras, do frágil artifício à comovente vulnerabilidade". O tema principal é definido como sendo "o do cativeiro e da domesticação". Hitchcock, segundo ela, "julga a mulher cativante, mas perigosa" e considera, no plano histórico, a casa familiar como "refúgio seguro e armadilha feminina". Representa-se ali o homem que sucumbe "ao controle feminino arquitetonicamente fortalecido". O cineasta Nicholas Ray, acrescentamos, não falaria linguagem diferente nos seus filmes, apenas embaralharia os papéis sexuais, abrindo espaço no "armário" hollywoodiano para homossexuais e lésbicas.

Arsenal bibliográfico Em lugar de ter alongado a voz do fascínio exercido pelo filme na jovem espectadora, a Camille adulta acaba por se esconder detrás de um arsenal inenarrável de fontes bibliográficas (o livro contém o mesmo número de páginas e de notas ao final). Nesse sentido, sua interpretação de "Os Pássaros" representa o clímax de uma erudição humanista que encontra na setorização do saber artístico a sua redenção. Não se pode esquecer que o "close reading", processo pelo que todos passamos algum dia na análise de objetos culturais, é uma invenção da pedagogia universitária norte-americana, apoiada na lição da "Poética", de Aristóteles.
Para levar a cabo a leitura de cena por cena do filme (às vezes de fotograma por fotograma), Camille se apoia no fio da intriga, enriquecendo-o com digressões tomadas da biografia do cineasta e dos atores. Comparecem a mãe dominadora de Hitchcock, dados sobre sua formação jesuítica, sobre seus cachorrinhos de estimação, seu fetichismo por sapatos, refletido nos saltos altos de Melanie, e assim por diante. Comparece também a bela arte de fumar, que é marca inconfundível da atriz. Tal carinho e encanto pelo detalhe (in)significante, espécie de cultivo kitsch da trivialidade, leva-a ainda a se incomodar com a caracterização exata do conversível de Melanie. Modelo Aston-Martin DB2/4 MKII, reproduzido apenas 24 vezes. Cada carro custava o dobro do preço de um Porsche. James Bond usará um semelhante no filme "Dr. No".
Chamamos de propósito a atenção para o detalhe a fim de caracterizar de modo concreto a leitura fílmica operada por Camille Paglia. Tal carro, conclui Camille, exige destreza e habilidade, carro para aficionados. Destreza, habilidade e manuseio já não estão, perguntamos, no próprio modo como as imagens passam o virtuosismo com que a loura conduz o potente conversível pelas estradas perigosas e sinuosas da Califórnia? Até onde o insignificante é significado? Numa arte que se afirmou por ter despertado respostas interpretativas que questionavam as hermenêuticas da profundidade, caras estas aos intérpretes da filosofia e da literatura, Camille opta pelo viés da erudição pormenorizada.

O dissecamento A seus olhos, as placas deslizantes e superficiais da representação fílmica -metáfora para a sucessão das imagens em movimento no cinema- transformam-se em "livro", isto é, são dissecadas como palavras-imagens que se combinam para compor frases/planos e capítulos/ sequências. Isso graças à invenção e popularização do videocassete.
Camille não é espectadora ou crítica de cinema. Entre as quatro paredes da sua casa, na solidão solitude, é leitora de vídeos. O espectador de cinema vê a realidade das imagens em ritmo de terremoto. Guarda o propósito de, com a inteligência e a imaginação de que dispõe, tentar reorganizar semanticamente as ruínas da sua percepção.
Para ele, o espetáculo da fúria destruidora dos pássaros, atacando Melanie e os habitantes de Bodega Bay, é sedutora metáfora, paralela à do terremoto, para caracterizar o espectador solitário, acompanhado pela multidão, diante da gigantesca e terrível tela. Áureos tempos dos estúdios de Hollywood e das grandiosas salas de espetáculo.


Silviano Santiago é escritor, poeta e crítico de literatura, autor de "Em Liberdade", "Keith Jarret no Blue Note", "Stella Manhattan" (Rocco) e "Nas Malhas da Letra" (Companhia das Letras), entre outros.

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