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A crítica norte-americana Camille Paglia analisa "Os Pássaros",
de Alfred Hitchcock, em ensaio a sair pela Rocco
Armadilhas femininas
Silviano Santiago
especial para a Folha
U
m dia, talvez, a história do melhor
cinema hollywoodiano venha a ser
narrada a partir dos poucos e repetidos
recursos de retórica ficcional de que se
valeram as narrativas cinematográficas.
Julgada verdadeira, essa proposta nos levaria a dar destaque à "gag" e ao "suspense", ou seja, às narrativas que despertam gargalhadas, levando os espectadores a desopilarem o fígado, e às que causam arrepios, levando-os a fecharem os
olhos. "Gag" e "suspense", motores da
narrativa; riso e medo, horizontes do espectador. Sobressaem nos estúdios de
Hollywood duas figuras emblemáticas e
inglesas: Charles Chaplin e Alfred Hitchcock. H.L. Mencken dizia que a cultura
norte-americana é um ventozinho gelado que sopra da Inglaterra.
O poder corrosivo do riso chapliniano
é a certeza da construção de um mundo
futuro mais justo e melhor. Ao ressuscitar o potencial afetivo do indivíduo no
seu dia-a-dia, a ansiedade, propósito e
causa do "suspense" hitchcockiano, escreve o obituário dos sentimentos e
emoções recalcados. Em ambos os casos,
explode "o selvagem", para se valer da
palavra de Virginia Woolf para caracterizar as convulsões emocionais por que
passa o indivíduo na platéia. No humanismo cosmopolita que o cinema comercial tem de pregar, o primeiro grupo de
narrativas aponta para Plauto, e o segundo, para Sófocles. Abrangentes, elas potencializaram dicotomias que enriqueceram e enriquecem a discussão cultural
proposta pela crítica cinematográfica.
Utopia e cotidiano. Coletividade e indivíduo. Solidariedade e amor. Objetividade
e introspeção. Rua e casa. Circo e parque
de diversões.
A compreensão promíscua
O espectador displicente e contumaz elegeu
inconsciente e promiscuamente os dois
gêneros como os de sua preferência. Já o
espectador atento e crítico não admitiu a
promiscuidade na sua compreensão do
cinema hollywoodiano como arte. Em
estudo escrito nos anos 40, Georges Sadoul, historiador de formação marxista,
deu direito de cidadania socialista a Carlitos. Traduzido para o português, o livro
deixou ruminando a cabeça de Carlos
Drummond. O resultado foi o longo
poema "Canto ao Homem do Povo
Charlie Chaplin" (1945), em que o poeta
oferece a Carlitos a saudação "de homens comuns, numa cidade comum". Já
os intimistas autores da nouvelle vague,
François Truffaut à frente, se filiaram a
Hitchcock para melhor comporem o
conturbado mundo sentimental da burguesia européia posterior à Segunda
Guerra e anterior a 1968.
Não é de estranhar que Camille Paglia,
percuciente analista da vida sexual e
amorosa da classe média norte-americana, tenha eleito Hitchcock como cineasta
favorito e "Os Pássaros" (1963) como filme para análise. Ao contrário de Sadoul
e Drummond, não partiu ela de aparato
de leitura imposto pela postura político-partidária. Parte antes de suas lembranças. Ainda "adolescente e impressionável", vê o filme e sai da sala "esmagada"
pela personagem sedutora de Melanie.
Naquela época, recorda, "as rainhas louras das fraternidades dominavam a vida
social na maioria das escolas secundárias
dos Estados Unidos". Melanie é a loura
bonita que, por direito divino, chega ao
topo e tiraniza as demais. Já a menina,
interpretada por Cathy Brenner, representa para a jovem Camille as animadoras de torcida da década de 1950. Encarnava "o que uma menina boazinha deveria ser". Confessa hoje: "Tenho vontade
de bater nela!".
Camille revê muitas vezes o filme na televisão. Vai atualizando e afiando o seu
instrumental teórico-interpretativo, que
oscila entre o feminismo e a psicanálise.
Alguns exemplos. Enquanto fala no aparelho, Melanie fica "brincando com o lápis fálico e com o cordão umbilical do telefone". As cores primaveris marrom-claro e verde-pastel do vestido da atriz
estão como que anunciando "o cio, a
promessa de fertilidade". Ao atracar o
barco no cais, Melanie prende a laçada
da amarra na estaca, o que parece ser "o
laço do carrasco que enforca um pênis".
Fácil deduzir que a bolsa, de que o personagem nunca se desvencilha, é "mochila
de caça para aprisionar a presa masculina" e representa "a vagina
como uma prisão masculina".
De posse de interpretação minuciosa do filme,
Camille considera Tippi
Hendren, que interpreta
Melanie, "a suprema heroína hitchcockiana". "Os
Pássaros" é "como uma
ode perversa ao glamour sexual feminino", mostrado "em todas as suas fases
sedutoras, do frágil artifício à comovente
vulnerabilidade". O tema principal é definido como sendo "o do cativeiro e da
domesticação". Hitchcock, segundo ela,
"julga a mulher cativante, mas perigosa"
e considera, no plano histórico, a casa familiar como "refúgio seguro e armadilha
feminina". Representa-se ali o homem
que sucumbe "ao controle feminino arquitetonicamente fortalecido". O cineasta Nicholas Ray, acrescentamos, não falaria linguagem diferente nos seus filmes, apenas embaralharia os papéis sexuais, abrindo espaço no "armário"
hollywoodiano para homossexuais e lésbicas.
Arsenal bibliográfico
Em lugar de
ter alongado a voz do fascínio exercido
pelo filme na jovem espectadora, a Camille adulta acaba por se esconder detrás
de um arsenal inenarrável de fontes bibliográficas (o livro contém o mesmo
número de páginas e de notas ao final).
Nesse sentido, sua interpretação de "Os
Pássaros" representa o clímax de uma
erudição humanista que encontra na setorização do saber artístico a sua redenção. Não se pode esquecer que o "close
reading", processo pelo
que todos passamos algum dia na análise de objetos culturais, é uma invenção da pedagogia universitária norte-americana, apoiada na lição da "Poética", de
Aristóteles.
Para levar a cabo a leitura de cena por
cena do filme (às vezes de fotograma por
fotograma), Camille se apoia no fio da
intriga, enriquecendo-o com digressões
tomadas da biografia do cineasta e dos
atores. Comparecem a mãe dominadora
de Hitchcock, dados sobre sua formação
jesuítica, sobre seus cachorrinhos de estimação, seu fetichismo por sapatos, refletido nos saltos altos de Melanie, e assim por diante. Comparece também a
bela arte de fumar, que é marca inconfundível da atriz. Tal carinho e encanto
pelo detalhe (in)significante, espécie de
cultivo kitsch da trivialidade, leva-a ainda a se incomodar com a caracterização
exata do conversível de Melanie. Modelo
Aston-Martin DB2/4
MKII, reproduzido apenas 24 vezes. Cada carro
custava o dobro do preço
de um Porsche. James
Bond usará um semelhante no filme "Dr. No".
Chamamos de propósito a atenção
para o detalhe a fim de caracterizar
de modo concreto a leitura fílmica
operada por Camille Paglia. Tal
carro, conclui Camille, exige destreza e habilidade, carro para aficionados. Destreza, habilidade e
manuseio já não estão, perguntamos, no próprio modo como as
imagens passam o virtuosismo
com que a loura conduz o potente
conversível pelas estradas perigosas e sinuosas da Califórnia? Até
onde o insignificante é significado?
Numa arte que se afirmou por ter
despertado respostas interpretativas que questionavam as hermenêuticas da profundidade, caras
estas aos intérpretes da filosofia e
da literatura, Camille opta pelo viés
da erudição pormenorizada.
O dissecamento
A seus olhos,
as placas deslizantes e superficiais
da representação fílmica -metáfora para a sucessão das imagens
em movimento no cinema-
transformam-se em "livro", isto é,
são dissecadas como palavras-imagens que se combinam para
compor frases/planos e capítulos/
sequências. Isso graças à invenção
e popularização do videocassete.
Camille não é espectadora ou crítica de cinema. Entre as quatro paredes da sua casa, na solidão solitude, é leitora de vídeos. O espectador de cinema vê a realidade das
imagens em ritmo de terremoto.
Guarda o propósito de, com a inteligência e a imaginação de que dispõe, tentar reorganizar semanticamente as ruínas da sua percepção.
Para ele, o espetáculo da fúria
destruidora dos pássaros, atacando Melanie e os habitantes de Bodega Bay, é sedutora metáfora, paralela à do terremoto, para caracterizar o espectador solitário, acompanhado pela multidão, diante da
gigantesca e terrível tela. Áureos
tempos dos estúdios de Hollywood
e das grandiosas salas de espetáculo.
Silviano Santiago é escritor, poeta e crítico
de literatura, autor de "Em Liberdade", "Keith
Jarret no Blue Note", "Stella Manhattan" (Rocco) e "Nas Malhas da Letra" (Companhia das
Letras), entre outros.
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