São Paulo, Domingo, 12 de Dezembro de 1999


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Seis ensaios de "Donos do Rio" buscam compreender como aconteceu a formação da cidade
A emergência do Rio de Janeiro

Jean Marcel Carvalho França
especial para a Folha

É conhecida a passagem de "Raízes do Brasil" em que Sérgio Buarque de Holanda, ao analisar a emergência das primeiras cidades brasileiras, diz terem sido essas concebidas sem "nenhum rigor", sem "nenhum método". Assevera o historiador que, ao contrário das cidades da América Espanhola, cujos traçados foram desde muito cedo regulados pelas "Leyes de las Indias", as nossas surgiram e cresceram ao acaso, "quase sem contrariar a natureza", "se enlaçando na linha da paisagem". "Donos do Rio - Em Nome do Rei", de Fania Fridman, professora da Universidade Federal do Rio de Janeiro, inscreve-se naquela linhagem de trabalhos que, se não vêm contrariar inteiramente a perspectiva de Holanda, vêm retificá-la e ampliá-la. O livro nos oferece um estudo de caso: a cidade do Rio de Janeiro. Ao longo de seis ensaios, a autora apresenta uma história bastante detalhada do processo de formação dessa importante urbe, destacando como se fez e quem fez a partilha do seu território.

Uma cidade rica
Nos três primeiros ensaios, há um predomínio do Rio de Janeiro colonial e, nos demais, do Rio oitocentista. A divisão, de certo modo, traduz a tese central de Fridman, a saber: se no Rio de Janeiro colonial os grandes responsáveis pela partilha e ordenação do espaço urbano foram as instituições religiosas (ordens e confrarias), no Rio oitocentista, um Rio que se afirmava como a mais rica e importante cidade do jovem império, tais funções foram gradativamente sendo exercidas por construtores e loteadores, os quais redesenharam a cidade "herdada" dos religiosos. A divisão mencionada, contudo, não é rígida, e em todos os textos -que não são propriamente capítulos- estão presentes, com maior ou menor incidência, o Rio colonial e o Rio oitocentista. O período dos "agentes imobiliários religiosos" predomina, como referimos, nos três ensaios iniciais. No primeiro deles, o que está em pauta é o enorme controle que as ordens e confrarias exerceram sobre a propriedade fundiária do Rio de Janeiro, um controle que acabou por moldar não somente o aspecto físico da cidade, mas também, e sobretudo, o cotidiano dos habitantes locais. O segundo ensaio é quase um prolongamento do primeiro e utiliza o mesmo cenário para colocar em cena a história do patrimônio territorial da Ordem de São Bento. O terceiro, intitulado "Cidade Flutuante", estabelece uma relação entre a posse da terra, a produção e os ancoradouros -principais portas de saída e entrada das riquezas de uma cidade quase desprovida de caminhos para o "sertão". Do Rio de Janeiro oitocentista, Fridman dá a conhecer, de saída, como foi feita a ocupação das terras situadas nas paróquias suburbanas da cidade. A descrição de tal processo, cujo motor inicial foi a chegada de d. João 6º em 1808, permite à autora mostrar como o solos das redondezas do núcleo urbano foi gradativamente se transformando em mercadoria. Tal transformação, esclarece-nos, se consolida com a promulgação da Lei das Terras, em 1850, e altera por completo a aparência e a vida do Rio de Janeiro. Da ocupação das paróquias suburbanas, Fridman passa, no quinto ensaio, para o problema da moradia. Também aqui é respeitada a divisão referida: num primeiro momento, a análise incide sobre o período colonial, sobre o papel predominante que desempenharam as ordens religiosas -construtoras e detentoras de muitas casas de aluguel- na organização do espaço urbano; numa segunda parte, século 19, entram em cena os loteamentos e a consequente "mercantilização da terra". Encerra o livro um ensaio dedicado a analisar o papel desempenhado pelas propriedades públicas no Rio de Janeiro. Nesse último texto, a autora extrapola os limites temporais que vinha respeitando e adentra pelo século 20, o que a leva a uma abordagem mais ligeira do tema proposto.

Uma certa ordem
Ao fim desses ensaios, pode-se dizer que Fridman consegue, com eficiência, dar corpo à tese referida. Para mais, a descrição que faz da emergência e expansão do Rio de Janeiro no período colonial demonstra com clareza que, se as confusas urbes do Brasil, por um lado, não contaram, no seu nascedouro, com planos diretores e traçados estudados, por outro, não surgiram e cresceram mercê do completo acaso.
O livro, em suma, se recomenda, não só pela pesquisa que o ampara, mas especialmente pela perspectiva que constrói da emergência e consolidação de uma das mais importantes cidades brasileiras. A obra seria ainda mais recomendável se a autora, na descrição que faz do Rio de Janeiro colonial e imperial, em vez de recorrer tão sistematicamente a fontes secundárias, lançasse mão de documentos de época. Isso, aliado a um cuidado maior com a escrita, sem dúvida tornaria a leitura de "Donos do Rio" mais curiosa e instrutiva.



Donos do Rio - Em Nome do Rei
302 págs., R$ 28,00 de Fania Fridman
Jorge Zahar Editor (rua México, 31, sobreloja, RJ, 20031-144, tel. 0/xx/21/240-0226).



Jean Marcel Carvalho França é doutor em literatura comparada e autor de, entre outros, "Visões do Rio de Janeiro Colonial" (José Olympio).


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