São Paulo, Domingo, 12 de Dezembro de 1999


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a morte
vestida
de
verde-jade

 

a morte
a morte vestida
a morte vestida de verde-jade

ay! mi hijito !

a morte


perucas em fogo
ruivo-incendiadas
roxo-combustas
verdes
vários tons de verde
as árvores as
copas das
explodem do
chão belas
cabeças de cogumelos
umbelas esfogueando caprichosamente desgrenhadas pelo
pente exímio de um
coiffeur de dames

 
esta dríade
colou seus pelos
púbicos na
fachada estilo new-
-england daquele
cottage
e os lúbricos
pentelhos vermelhos de
deusa drag-
-queen scapigliata
agarram-se na fachada
emasculada
sóbria _imáculo branco
puritano_ feito uma
vulva den-
ticulada

aranha-rainha
piranha carangue-
jeira aliás
viúva-ruiva
levando o branco pu-
ro a uma pri-
ápica sú-
bita e-
reção de cal


  havia um pick-up
vermelho-novinho
estacado na entrada ar-
borizada
peeping
mais
nada nin-
guém

jaz sincopando no
rádio da limusine preta
impecável motorista preto
vestido (impecável) de preto
a rodovia lisa de
new haven para nova iorque
(aeroporto john kennedy)

sem febre
(ou quase) sem
calafrios
sem aquela solta
via urinária de
mijo uma garr-
afa plástica de mineral water pescoço cortado for-
rado de esparadrapo e papel
higiênico servindo de pe-
nico portátil
a cada meia
hora rançosa
de suor e u-
réia com-
pulsiva

  voltar
sol frio nas narinas
aroma frio de sol nas
narinas
enquanto as ninfas
puritanas nin-
fômanas bacantes
desrepresas chu-
pavam as
paredes machas de
repente tesas ar-
rancadas de seu pio
torpor emasculado

os olhos engoliam o carretel
acelerado da paisagem
com um gozo de boca
desentubada e

paz
paz
paz


na boca
do estômago
nas mãos picadas
de agulha
nos braços-
-equimoses


paz
na língua amar-
gosa na garganta nas
cavidades nos baixos
nas tripas
nas dobras
no ânus no
cós


paz: salto
(ex) mortal práfora
desse bad-trip em
útero u.t.i.
paz gostosa
bunda mansa
quente elástica
estourando do bi-
quininho dourado da
paz deitada na areia
  /e te servindo de ensolarado
coxim ah!
bundibela
paz!

  longe longe
correndo prá longe
do túnel verde-mijo da u.
t.
i.
olhos engolindo in(land)scapes pelo
vidro da li-
musine (intrapaisagens)
carretilha fluente de cartões
postais

a morte
a morte vestida
a morte vestida de verde-mijo
já se
fora já
estava longe
voara no seu robe de cloro
para outro
lugar feito uma
idéia fora do
seu práfora
do seu
lugar
_ merde
alors! _
atroz

agora subia o
calor
o a-
petite come-
çava a ronronar
o pulmão bebia
o pneuma por todos os
(ar!) poros:



ela:
(não a tessaliana não
a quérea a moura-verde-
-cloro) ela: a sua
beleza amantíssima
o seu toque de graça
plena o seu
rosto de radioso mar-
more vertido em calor
aveludado (veneza
faísca na memória!) as
suas mãos de longunhas
achinesadas
tão (mãos) longas tão
(mãos) macias (tanto
tanto tempo) a sua
testa curvi-
línea domo
de seda
o seu nariz de
finíssima talha
os olhos ah! os olhos
jóias misteriosas
(tanto tempo e o
passado não passa
o passado não pas-
só o presente per-
vivente este presente-
-aquiagora maçã
redonda plena
lastro-ouro das
laranjas quando)
ela está
assim
sentada
(a limusine quase
chegando) e seu
corpo destapa um
frasco de perfume: ela
(sua capitosa presença)
ao meu lado


Haroldo de Campos


"Sem Fim", arte de Regina Silveira

 


NOTAS DO AUTOR

"A morte vestida de verde-jade" - expressão colhida no linguajar de uma "se­ nõrona" cubana exilada em Miami (cf. Roberto Gonzáles Echeverría, "La Ruta de Severo Sarduy, 1967).
"Tessaliana" - "erikhtho, eritone, ericto", a bruxa dos cemitérios, devoradora e ressuscitadora de cadáveres; cf. Lucano, "Pharsalia, VI".
Quérea - do gr., viúva, a que priva da luz do sol.
Moura - deusa grega da morte; "moura-torta"; entidade malfazeja do folclore português.

Ilustração de Regina Silveira foi feita com a colaboração de Carlos Baptistella.

 



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