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Fusões entre arte e habitat, praticadas por Kurt Schwitters ou Hélio Oiticica, borraram os limites entre o público e o privado
Ateliê, laboratório e canteiro de obras
Lisette Lagnado
especial para a Folha
Práticas artísticas não são desvinculadas de imperativos externos às pesquisas formais
envolvendo, no fluxo de sua
elaboração, pesquisas científicas e relações com diversos agentes sociais. A exposição "Traversées", que ficou até o domingo passado no Museu de Arte Moderna da Cidade de Paris, ilustra mais
um exemplo dessa tendência para as trocas humanas, cada vez mais recorrente
quando se discutem ecossistema e urbe.
A regra do jogo consistiu em convidar
artistas para chamar colaboradores de
outras disciplinas (pode ser, por exemplo, um desativador de bombas no Kosovo que escreve poesias). Excelente
idéia com oneroso porém -uma montagem cuja qualidade provoca a desolação já familiar perante certas instalações
sonoras.
Como conciliar necessidade de reflexão do mundo, evitando a armadilha de
reproduzir seus efeitos mais nocivos, a
cacofonia alucinada de conteúdos superficiais? De Marselha, um artista pós-situacionista lançou, como "démarche",
exercícios de perambulação pelas ruas,
arregimentando pessoas, artistas ou não,
em percursos aleatórios. O que muda
quando o ambiente é essencialmente um
espaço a céu aberto.
Chão, paredes e teto Estamos ainda
acostumados a imaginar o local de trabalho do artista circunscrito a exigências
arquitetônicas, um chão, paredes e teto,
espécie de símile da situação em que a
obra será exposta. Esse ambiente de produção tem feições de oficina, se a obra
exige o uso de maquinarias mais pesadas, de um estúdio para um fotógrafo, e
assim por diante. Quando a pintura foi a
grande valorizada do sistema, a palavra
"ateliê" ganhou simultaneamente uma
ressonância contundente. A produção
do artista era moldada pela escala do espaço. Podíamos afirmar que o espaço físico externo entregava a primeira medida da obra.
Alguns fatores contribuíram para redesenhar a noção de "ateliê". A necessidade de parcerias com fontes heterogêneas de "saberes" ou "fazeres" está finalmente sendo valorizada e reconhecida,
vale dizer, de uma forma mais engajada
do que no período de Maio de 68. Até um
tempo atrás, dada a crise econômica, havia sido constatado o recolhimento da
produção para o âmbito doméstico (cozinha etc.).
Por extensão, por que não pensar uma
sala banal, provida de mesa, cadeira, estante, livros e discos (sem esquecer, hoje,
o "network" que se faz graças ao computador)? O que estimula a criação artística
vem de dentro ou de fora, se incluirmos
os frequentes deslocamentos geográficos
(a terminologia é a mesma para designar
as bolsas de "residências" no exterior)?
Gerou-se uma zona indeterminada, sem
limites fixos entre o privado e o público,
já que é nessa permanência de domicílio,
híbrido de lar com labor, que o artista simultaneamente vive e trabalha. Fusões
entre arte e habitat renderam experiências como o "Merzbau", de Kurt Schwitters, e os "Babylonests/Hendrixsts", de
Hélio Oiticica, obras que deram um outro horizonte para a criação.
A mudança, que parece estarrecer os
profissionais de ateliê é a de que a arte
contemporânea, nos últimos dez anos, se
faz por encomenda, prática que na Renascença ajudou a formar as coleções
públicas de que hoje dispomos. O artista
produz, de antemão, para bienais, feiras
de arte, exposições em museus ou coleções públicas. Há uma ênfase crescente,
embora nada nova, do objeto para o projeto. A obra só é concretamente construída se houver uma garantia de exposição.
Portanto, a rigor, o que o ateliê precisaria
mostrar ao crítico pode ser resumido
dentro de um caderno de anotações.
Mas casa e ateliê partilham a idéia da figura do artista protegida dos confrontos
externos. As tarefas de ateliê enredam-se
num código, cheio de vícios, a serviço de
um comportamento sociocultural quase
"acadêmico", para não dizer impressionista. O perigo é cair em outros virtuosismos, uma sofisticação do artesanato,
com obras que articulam o vocabulário
"certinho" de referências e materiais. O
funcionamento exclusivo dentro do ateliê exacerba a separação entre projeto para a coletividade e experiência de singularização. Perdem-se meios de introduzir uma nova eficácia na redistribuição
de conhecimento e, portanto, de alterar
as forças de poder.
A questão agora é: qual o sentido do
ateliê se um trabalho foi gerado com recursos encontrados num contexto que
tem vocação pública e, sobretudo, deve
sobreviver ao teste de ser instalado em sítios inóspitos? Deixando um pouco o espaço do ateliê, examinemos como as palavras "laboratório" e "chantier" conseguem dar mais pertinência ao lugar de
produção do artista.
A palavra "laboratório" vem sendo reivindicada por artistas e críticos. Foi maciçamente usada para identificar o perfil
de atuação da instituição artística, conforme podemos verificar na gestão que
inaugura o Palais de Tóquio em janeiro
de 2002.
Outra iniciativa nesse sentido foi o projeto "Laboratorium", realizado pelos curadores Hans Ulrich Obrist e Barbara
Vanderlinden, na Antuérpia, em 1999.
Com contribuições de Bruno Latour (sociólogo e filósofo), Carsten Höller (cientista e artista) e Luc Steels (cientista), a
discussão do "ateliê do artista" levantou
um conjunto abrangente de indagações
tais como: o que é um laboratório de
dança, de escrita, de ciência?
O laboratório foi despido de sua antipática ressonância cientificista, esse rigor
metodológico e cognitivo com única finalidade de comprovar uma verdade
predeterminada. A palavra pretende
mais livremente apontar para um campo
que ativa e aproxima experimentações
artísticas e científicas. Nas palavras de
Obrist: "Como começa uma experiência?
Uma experiência tem fim? Onde ela se
torna pública, onde seu resultado ganha
aceitação pública? Pode um experimento
falhar?".
Canteiro de obras "Chantier" configura um contraponto cuja escala é interessante. Sua tradução, no entanto, resulta bastante problemática. Proveniente
da indústria de construção (imobiliária),
o "chantier" reaviva o imaginário construtivista e designa um lugar onde as atividades que se desenvolvem têm um caráter coletivo. É um território em constantes transformações, de intenso significado operário, tido como um dos mais
desqualificados do mundo social.
Esse "canteiro de obras", ateliê ampliado para a escala da cidade, tem a vantagem de propor outras relações de produção, de ter uma duração indeterminada,
isto é, de reativar os projetos de vida que
conhecemos com o "Merzbau" e os "Ninhos" citados. Avizinha-se do "jardim
pedagógico", uma noção cuja singeleza é
bem-vinda para combater arrogâncias.
Bem-vinda também por acrescentar um
dado genuíno na discussão da experiência, a história da formação ("Bildung").
"Em obras" seria a expressão que consegue traduzir tanto a temporalidade do
"chantier" quanto a mobilidade desse
aprendizado.
Em suma, essa configuração da idéia
de ateliê, entre o laboratório e o canteiro
de obras, permite restituir ao espaço de
atuação do artista contemporâneo dois
compromissos que haviam dado o vigor
que tanto admiramos na produção dos
anos 60-70: o experimental e sua implicação na coletividade.
A palavra-chave, em relação às gerações anteriores, escreve Per Hüttner, artista-residente na Friche Belle de Mai, local fascinante que em si mereceria uma
reflexão à parte (1), é a "colaboração, isto
é, o trabalho de interrelações com outros
artistas e não-artistas". O laboratório,
carregado de tempo mítico, e o "chantier", investido de tempo real, são territórios permanentemente atravessados por
ocorrências, isto é, por perdas de controle. Esses processos de produção fornecem importantes índices da produção de
arte contemporânea.
Nota
1. Muito resumidamente, a Friche é um território
de reinvestimento cultural em espaços industriais
desativados, que proporciona novas formas de
urbanidades. Sugerimos, por ora, o termo "terreno baldio", por ser uma expressão da mesma família que o "canteiro de obras". Há uma desordem
na expressão "en friche" que também ouvimos
em "en chantier".
Lisette Lagnado é coordenadora dos arquivos de
Hélio Oiticica (Itaú Cultural) e editora da seção
"Em Obras" da revista eletrônica "Trópico"
(www.uol.com.br/tropico). Viajou à França a
convite da Prefeitura de Paris e da Maison des Cultures du Monde.
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