São Paulo, domingo, 13 de janeiro de 2002

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+ artes

Fusões entre arte e habitat, praticadas por Kurt Schwitters ou Hélio Oiticica, borraram os limites entre o público e o privado

Ateliê, laboratório e canteiro de obras

Lisette Lagnado
especial para a Folha

Práticas artísticas não são desvinculadas de imperativos externos às pesquisas formais envolvendo, no fluxo de sua elaboração, pesquisas científicas e relações com diversos agentes sociais. A exposição "Traversées", que ficou até o domingo passado no Museu de Arte Moderna da Cidade de Paris, ilustra mais um exemplo dessa tendência para as trocas humanas, cada vez mais recorrente quando se discutem ecossistema e urbe. A regra do jogo consistiu em convidar artistas para chamar colaboradores de outras disciplinas (pode ser, por exemplo, um desativador de bombas no Kosovo que escreve poesias). Excelente idéia com oneroso porém -uma montagem cuja qualidade provoca a desolação já familiar perante certas instalações sonoras.
Como conciliar necessidade de reflexão do mundo, evitando a armadilha de reproduzir seus efeitos mais nocivos, a cacofonia alucinada de conteúdos superficiais? De Marselha, um artista pós-situacionista lançou, como "démarche", exercícios de perambulação pelas ruas, arregimentando pessoas, artistas ou não, em percursos aleatórios. O que muda quando o ambiente é essencialmente um espaço a céu aberto.

Chão, paredes e teto Estamos ainda acostumados a imaginar o local de trabalho do artista circunscrito a exigências arquitetônicas, um chão, paredes e teto, espécie de símile da situação em que a obra será exposta. Esse ambiente de produção tem feições de oficina, se a obra exige o uso de maquinarias mais pesadas, de um estúdio para um fotógrafo, e assim por diante. Quando a pintura foi a grande valorizada do sistema, a palavra "ateliê" ganhou simultaneamente uma ressonância contundente. A produção do artista era moldada pela escala do espaço. Podíamos afirmar que o espaço físico externo entregava a primeira medida da obra.
Alguns fatores contribuíram para redesenhar a noção de "ateliê". A necessidade de parcerias com fontes heterogêneas de "saberes" ou "fazeres" está finalmente sendo valorizada e reconhecida, vale dizer, de uma forma mais engajada do que no período de Maio de 68. Até um tempo atrás, dada a crise econômica, havia sido constatado o recolhimento da produção para o âmbito doméstico (cozinha etc.).
Por extensão, por que não pensar uma sala banal, provida de mesa, cadeira, estante, livros e discos (sem esquecer, hoje, o "network" que se faz graças ao computador)? O que estimula a criação artística vem de dentro ou de fora, se incluirmos os frequentes deslocamentos geográficos (a terminologia é a mesma para designar as bolsas de "residências" no exterior)? Gerou-se uma zona indeterminada, sem limites fixos entre o privado e o público, já que é nessa permanência de domicílio, híbrido de lar com labor, que o artista simultaneamente vive e trabalha. Fusões entre arte e habitat renderam experiências como o "Merzbau", de Kurt Schwitters, e os "Babylonests/Hendrixsts", de Hélio Oiticica, obras que deram um outro horizonte para a criação.
A mudança, que parece estarrecer os profissionais de ateliê é a de que a arte contemporânea, nos últimos dez anos, se faz por encomenda, prática que na Renascença ajudou a formar as coleções públicas de que hoje dispomos. O artista produz, de antemão, para bienais, feiras de arte, exposições em museus ou coleções públicas. Há uma ênfase crescente, embora nada nova, do objeto para o projeto. A obra só é concretamente construída se houver uma garantia de exposição. Portanto, a rigor, o que o ateliê precisaria mostrar ao crítico pode ser resumido dentro de um caderno de anotações.
Mas casa e ateliê partilham a idéia da figura do artista protegida dos confrontos externos. As tarefas de ateliê enredam-se num código, cheio de vícios, a serviço de um comportamento sociocultural quase "acadêmico", para não dizer impressionista. O perigo é cair em outros virtuosismos, uma sofisticação do artesanato, com obras que articulam o vocabulário "certinho" de referências e materiais. O funcionamento exclusivo dentro do ateliê exacerba a separação entre projeto para a coletividade e experiência de singularização. Perdem-se meios de introduzir uma nova eficácia na redistribuição de conhecimento e, portanto, de alterar as forças de poder.
A questão agora é: qual o sentido do ateliê se um trabalho foi gerado com recursos encontrados num contexto que tem vocação pública e, sobretudo, deve sobreviver ao teste de ser instalado em sítios inóspitos? Deixando um pouco o espaço do ateliê, examinemos como as palavras "laboratório" e "chantier" conseguem dar mais pertinência ao lugar de produção do artista.
A palavra "laboratório" vem sendo reivindicada por artistas e críticos. Foi maciçamente usada para identificar o perfil de atuação da instituição artística, conforme podemos verificar na gestão que inaugura o Palais de Tóquio em janeiro de 2002.
Outra iniciativa nesse sentido foi o projeto "Laboratorium", realizado pelos curadores Hans Ulrich Obrist e Barbara Vanderlinden, na Antuérpia, em 1999. Com contribuições de Bruno Latour (sociólogo e filósofo), Carsten Höller (cientista e artista) e Luc Steels (cientista), a discussão do "ateliê do artista" levantou um conjunto abrangente de indagações tais como: o que é um laboratório de dança, de escrita, de ciência?
O laboratório foi despido de sua antipática ressonância cientificista, esse rigor metodológico e cognitivo com única finalidade de comprovar uma verdade predeterminada. A palavra pretende mais livremente apontar para um campo que ativa e aproxima experimentações artísticas e científicas. Nas palavras de Obrist: "Como começa uma experiência? Uma experiência tem fim? Onde ela se torna pública, onde seu resultado ganha aceitação pública? Pode um experimento falhar?".

Canteiro de obras "Chantier" configura um contraponto cuja escala é interessante. Sua tradução, no entanto, resulta bastante problemática. Proveniente da indústria de construção (imobiliária), o "chantier" reaviva o imaginário construtivista e designa um lugar onde as atividades que se desenvolvem têm um caráter coletivo. É um território em constantes transformações, de intenso significado operário, tido como um dos mais desqualificados do mundo social.
Esse "canteiro de obras", ateliê ampliado para a escala da cidade, tem a vantagem de propor outras relações de produção, de ter uma duração indeterminada, isto é, de reativar os projetos de vida que conhecemos com o "Merzbau" e os "Ninhos" citados. Avizinha-se do "jardim pedagógico", uma noção cuja singeleza é bem-vinda para combater arrogâncias. Bem-vinda também por acrescentar um dado genuíno na discussão da experiência, a história da formação ("Bildung"). "Em obras" seria a expressão que consegue traduzir tanto a temporalidade do "chantier" quanto a mobilidade desse aprendizado.
Em suma, essa configuração da idéia de ateliê, entre o laboratório e o canteiro de obras, permite restituir ao espaço de atuação do artista contemporâneo dois compromissos que haviam dado o vigor que tanto admiramos na produção dos anos 60-70: o experimental e sua implicação na coletividade.
A palavra-chave, em relação às gerações anteriores, escreve Per Hüttner, artista-residente na Friche Belle de Mai, local fascinante que em si mereceria uma reflexão à parte (1), é a "colaboração, isto é, o trabalho de interrelações com outros artistas e não-artistas". O laboratório, carregado de tempo mítico, e o "chantier", investido de tempo real, são territórios permanentemente atravessados por ocorrências, isto é, por perdas de controle. Esses processos de produção fornecem importantes índices da produção de arte contemporânea.

Nota
1. Muito resumidamente, a Friche é um território de reinvestimento cultural em espaços industriais desativados, que proporciona novas formas de urbanidades. Sugerimos, por ora, o termo "terreno baldio", por ser uma expressão da mesma família que o "canteiro de obras". Há uma desordem na expressão "en friche" que também ouvimos em "en chantier".


Lisette Lagnado é coordenadora dos arquivos de Hélio Oiticica (Itaú Cultural) e editora da seção "Em Obras" da revista eletrônica "Trópico" (www.uol.com.br/tropico). Viajou à França a convite da Prefeitura de Paris e da Maison des Cultures du Monde.


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