São Paulo, domingo, 13 de janeiro de 2002

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O crítico Eduardo Lourenço disseca, nos ensaios de "A Nau de Ícaro", o impacto da modernização em Portugal e seus efeitos sobre a auto-imagem do país

A Lusitânia em tempos de Eurolândia

Jean Marcel Carvalho França
especial para a Folha

Portugal interessa-nos muito pouco. A terra de Cabral viveu, nas últimas duas décadas, uma verdadeira revolução cultural e, como diriam os portugueses, "nem demos por isso". É verdade que, vez ou outra, a mídia local veicula umas poucas e rápidas reportagens sobre o "país irmão". É verdade, também, que começa a se instalar no senso comum do brasileiro a idéia de que Portugal se adaptou bem à família européia e vive uma situação econômica favorável o suficiente para atrair, numa espécie de colonização às avessas, muitos "brasucas" interessados em melhorar de vida. Tais notícias, notícias minguadas, recolhidas aqui e ali, parecem indicar que algo mudou naquele país que sempre se nos afigurou pobre, camponês, inculto e despojado do estatuto de "europeu"; todavia não sabemos muito bem nem o que mudou nem qual a dimensão e a profundidade de tal mudança.
Para amenizar tamanho desconhecimento, o leitor dispõe agora de uma perspectiva privilegiada da cultura portuguesa das últimas duas décadas. A editora Companhia das Letras acaba de lançar no mercado o excelente "A Nau de Ícaro", uma coletânea de ensaios daquele que é considerado um dos melhores ensaístas da língua de Camões, o português Eduardo Lourenço.
Trata-se de uma obra magistral, na qual o ensaísta, lançando mão de uma escrita envolvente e de soluções interpretativas extremamente refinadas, avalia as novas relações que, a partir da "descolonização" (1974) e do ingresso bem-sucedido na então Comunidade Européia (1985), Portugal estabeleceu com a Europa e, em paralelo, com as ex-colônias de ultramar, dentre as quais, e especialmente, com a maior, mais rica e mais independente delas, o Brasil.
O livro, que reúne 20 ensaios publicados entre 1986 e 1997, está dividido em duas partes, intituladas "A Nau de Ícaro" e "Imagens da Lusofonia". É impossível resumir, mesmo que grosseiramente, as múltiplas temáticas aí abordadas. É possível, no entanto, detectar, em cada uma das partes, uma ou duas questões que persistem e que acabam por dar uma certa unidade a escritos que não tinham sido pensados para estarem lado a lado.

Duplo exílio
Da primeira seção, destaca-se, por exemplo, a preocupação de Lourenço em mapear o estado atual da cultura portuguesa -uma cultura produzida, "por mais de três décadas, sobre o duplo registro de dois exílios ou isolamentos: o interior e o europeu", tendo em vista o recente "reencontro" de Portugal com a Europa, depois da "perambulação" de cinco séculos pela África, Brasil e Oriente. Destacam-se, igualmente, as reflexões em torno do futuro do Portugal pós-descolonização e pós-adesão à "Eurolândia", reflexões sobre o futuro de um país que se habituou a atrelar o seu porvir ao das colônias de ultramar.
Mas destaca-se, sobretudo, a tentativa do ensaísta de avaliar os impactos da "modernização" do país sobre a auto-imagem do seu pequeno povo, um povo com "excesso de história" e que durante muito tempo se viu e se quis privado das opiniões que os vizinhos europeus cultivavam a seu respeito.
A seção "Imagens da Lusofonia" aborda, em linhas gerais, temas relacionados ao papel que desempenha, ou que gostaria de desempenhar, Portugal no recém-institucionalizado -a criação da Comunidade dos Países de Língua Portuguesa data de 1996- "espaço da lusofonia". A presença do Brasil, peça-chave no mundo lusófono, é bastante significativa nos ensaios dessa seção, dois dos quais, inclusive, inteiramente dedicados a analisar aspectos da literatura brasileira.
O núcleo central da seção são, sem dúvida, as considerações que o ensaísta tece sobre as delicadas relações entre Portugal e Brasil. Lourenço promove aí uma desnaturalização da suposta proximidade cultural existente entre os dois países e avalia os inúmeros ressentimentos e o brutal desconhecimento de parte a parte que tal suposição oculta para os brasileiros. Diz o ensaísta: Portugal "não passa de um ponto vago num mapa, o da Europa"; por sua vez, o discurso português sobre o Brasil, arremata o escritor, é "pura alucinação" lusitana, "que o Brasil nem ouve nem entende".

Esperança na lusofonia Malgrado tais ressalvas, no entanto, Lourenço deposita enormes esperanças na lusofonia, numa lusofonia como território de encontro das múltiplas culturas de língua portuguesa e distante da hipócrita, pouco produtiva mas muito propagada idéia de "irmandade".
"A Nau de Ícaro" é, pois, de leitura obrigatória para quem torce pela viabilização de uma "comunidade lusófona" e crê que a existência de tal comunidade é imprescindível para a afirmação cultural dos países que a compõem. Mas é muito mais do que isso, é uma obra plena de sugestões para pensar a situação dos povos de língua portuguesa no incerto mundo global e, também, para entender melhor o que se passa no Portugal contemporâneo por um prisma um tanto menos "cinza" do que o oferecido pela obra de José Saramago.



A Nau de Ícaro
224 págs., R$ 26,00
de Eduardo Lourenço. Companhia das Letras (r. Bandeira Paulista, 702, conjunto 32, CEP 04532-002, SP, tel. 0/xx/11/3846-0801).



Jean Marcel Carvalho França é professor de história da Universidade Estadual Paulista, em Franca (SP), e autor de "Literatura e Sociedade no Rio de Janeiro Oitocentista" (Imprensa Nacional/Casa da Moeda) e "Outras Visões do Rio de Janeiro Colonial" (José Olympio).


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