São Paulo, domingo, 13 de janeiro de 2002

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O legado da obra de Gilberto Freyre é o tema de "O Imperador das Idéias", que reúne ensaios de intelectuais como Evaldo Cabral de Mello e Peter Burke

Antropologia em terreno minado

Lilia Moritz Schwarcz
especial para a Folha

O etnólogo Claude Lévi-Strauss, ao analisar o fenômeno dos animais totêmicos, afirmou que o valor dos mesmos estava menos vinculado à sua capacidade alimentar e mais à potencialidade simbólica e concluía: "Os tótens são melhores para pensar do que para comer".
Fazendo um uso abusivo da teoria seria possível dizer que o mesmo ocorre com intelectuais e seus modelos; muitas vezes são melhores para refletir do que para digerir e enquadrar. Se tudo isso faz algum sentido, pode-se dizer que Gilberto Freyre é sócio dessa galeria de autores que não se deixam classificar e fogem das definições fáceis.
Talvez por isso mesmo Joaquim Falcão e Rosa Maria Barboza de Araújo, organizadores de "O Imperador das Idéias -Gilberto Freyre em Questão", tenham começado provocando. "Gilberto Freyre não é para principiante", e é atrás desse desafio que corre uma série de analistas, entre historiadores, antropólogos, críticos literários e filósofos. O livro congrega ensaios originalmente elaborados por ocasião de um seminário realizado no Rio de Janeiro e em São Paulo, em comemoração dos cem anos de nascimento de Freyre (1900-1987).

Sem consenso Mas o tom escapa da efeméride e busca a polêmica. Afinal, Gilberto Freyre passou por muitas vogas: já foi bandido e até herói, surgiu como defensor de uma escravidão enganosamente benigna ou mesmo de uma frágil mestiçagem -que de racial se fazia cultural-, foi criticado em razão de sua visão por demais otimista e, mais recentemente, exaltado como precursor da história das mentalidades.
Por certo não há consenso nessas searas e cabe aos diferentes especialistas demonstrar como o terreno continua minado. É Evaldo Cabral de Mello quem analisa de que maneira o uso da perspectiva sincrônica antropológica aplicada a estudos de sociedades históricas representava ousadia e inovação na descoberta de tempos longos e quase imóveis, mas, ao mesmo tempo, um deslize perigoso ao enxergar relações estruturais que não resistiriam ao rigor de um exame diacrônico e de mais longo aporte.
Também Maria Lúcia Pallares-Burke insiste no tema, retomando o mesmo debate e acrescentando novas questões: o problema de Freyre não estaria em ter se esquecido do caráter sequencial da história, mas antes em ter superestimado as continuidades em detrimento das mudanças.
Mas os artigos não se restringem ao método de Freyre. Outros ensaios recuperam a atualidade das análises históricas, como é o caso do texto de Nicolau Sevcenko e a originalidade no uso das fontes e na atualização dos estudos de cultura material.
Peter Burke restabelece os vínculos de Freyre com a escola culturalista norte-americana de Franz Boas, enquanto Pedro Puntoni discorre sobre o debate travado nos anos 30 e a eleição do barroco mineiro como nossa feição mais nacional. Casas, roupas, mobiliário, arquitetura passam para a ordem do dia, explicando nossas caraterísticas basilares. A primeira parte desse livro termina com mais dois depoimentos: Antonio Dimas estabelece a importância do estilo de Freyre para a crítica literária e Stuart Schwartz faz as pazes com a teoria, vinculando o antropólogo de Recife a uma tradição de estudos culturais de larga importância. Desse primeiro painel surge uma visão renovada da obra, em que o otimismo e o elogio a uma sociabilidade mestiça não aparecem como tarefa de encobrimento, mas sim como saída alentada. No que se refere à mestiçagem, como diz Evaldo Cabral, se transforma a hipoteca em lucro. A história não mais condena o Brasil a nada. Ao contrário, na imaginação de Freyre, nossa sublime singularidade estaria em criar um povo capaz de conviver com as positividades de cada cultura e com uma enorme potencialidade de confrontar conflitos.
No entanto, se esse primeiro bloco de artigos sinaliza para um "armistício", já o segundo revela como o debate é ainda tônica fundamental no balanço da obra de um autor desse calibre. Os artigos seguintes posicionam-se, assim, acerca das diferenças existentes entre o pensamento do mestre de Apipucos e a escola de sociologia paulista. A dicotomia é nomeada a partir do embate que opôs Freyre a Florestan Fernandes, atentando não só para modelos de análise como tendências políticas (direita contra esquerda) ou mesmo regionalismos (Nordeste contra Sul).
Enquanto Joaquim Falcão contextualiza o mapa dessa discórdia e as lutas pelo "trono", Edson Nery da Fonseca estabelece uma cronologia do conflito. Está então disposto o terreno para que outros especialistas -como Carlos Guilherme Mota, João Cezar de Castro Rocha- se posicionem e para que Olavo de Carvalho e Gabriel Cohn reponham a disputa no presente. No entanto, e como bem mostra Cohn, se Freyre buscou "elos" e Florestan, "cortes e confrontos", não é o caso de optar por um dos lados da contenda. Aí estão duas grandes perspectivas da mesma sociedade, duas portas de entrada igualmente principais. Com efeito, cair nas qualificações vazias pouco ajuda, sobretudo no caso de um autor que sempre fez questão de disfarçar suas pistas. Freyre era o primeiro a reconhecer seu anarquismo metodológico, seu personalismo, seu modelo desordenado e contraditório. Fazia e desfazia de suas influências teóricas, assim como evitava definições profissionais estritas.
Quando tentavam nomeá-lo como sociólogo, antropólogo ou até mesmo historiador social, costumava dizer que era escritor e vice-versa: alegava para si um gênero e não uma especialidade. Também gostava de falar de si próprio e de retomar suas obras quando, a cada nova edição, corrigia, atualizava e desdenhava da crítica. Nada como um liberal crítico aos liberais, um revolucionário conservador...

Mito do mito Não por acaso, e como mostra Hermano Vianna, Freyre foi vítima de seu próprio remédio ao virar mito: mito do mito da democracia racial. Que a obra de Freyre contenha um elogio da mestiçagem e um certo otimismo no que se refere aos trópicos e sua civilização, não se discute. Mas uma volta ao texto indicará como a assim chamada "democracia racial", com aspas ou sem, não faz parte de "Casa Grande & Senzala", que pretende antes demonstrar como essa sociedade se mantém por meio de um complexo "equilíbrio de antagonismos".
Difícil, muito difícil, enquadrar Freyre, e poderíamos continuar aqui elencando argumentos e interpretações. "O Imperador das Idéias", como toda coletânea, é feito de altos e baixos, de estudos inovadores e outros mais breves ou imediatamente referidos às comunicações do seminário. Por isso mesmo, não há como colocar ponto final nessa história, e o melhor é reconhecer a homenagem que esse livro traz: o mestre de Apipucos construiu, com vigor de ensaísta, uma síntese do Brasil e imprimiu uma forma própria de entender este país. Aqui conviveriam, lado a lado, um etos integrador e uma economia de exclusão, como se os opostos de fato se atraíssem. Freyre, feito agora personagem, revela, como ninguém, de que maneira a certeza acomoda. A dúvida e a ambiguidade é que fazem sentido, produzem conhecimento e geram reflexão.


O Imperador das Idéias
304 págs., R$ 35,00
Joaquim Falcão e Rosa Maria Barboza de Araújo (orgs). Ed. Topbooks (r. Visconde de Inhaúma, 58, sala 203, CEP 20091-000, RJ, tel. 0/xx/21/2233-8718).



Lilia Moritz Schwarcz é professora do departamento de antropologia da USP e autora de, entre outros, "O Espetáculo das Raças" e "As Barbas do Imperador" (ambos pela Cia. das Letras).


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