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O legado da obra de Gilberto Freyre é o tema de "O Imperador das Idéias", que reúne ensaios de intelectuais como Evaldo Cabral de Mello e Peter Burke
Antropologia em terreno minado
Lilia Moritz Schwarcz
especial para a Folha
O etnólogo Claude Lévi-Strauss,
ao analisar o fenômeno dos
animais totêmicos, afirmou
que o valor dos mesmos estava
menos vinculado à sua capacidade alimentar e mais à potencialidade simbólica e concluía: "Os tótens são melhores
para pensar do que para comer".
Fazendo um uso abusivo da teoria seria possível dizer que o mesmo ocorre
com intelectuais e seus modelos; muitas
vezes são melhores para refletir do que
para digerir e enquadrar. Se tudo isso faz
algum sentido, pode-se dizer que Gilberto Freyre é sócio dessa galeria de autores
que não se deixam classificar e fogem das
definições fáceis.
Talvez por isso mesmo Joaquim Falcão
e Rosa Maria Barboza de Araújo, organizadores de "O Imperador das Idéias -Gilberto Freyre em Questão", tenham começado provocando. "Gilberto Freyre
não é para principiante", e é atrás desse
desafio que corre uma série de analistas,
entre historiadores, antropólogos, críticos literários e filósofos. O livro congrega
ensaios originalmente elaborados por
ocasião de um seminário realizado no
Rio de Janeiro e em São Paulo, em comemoração dos cem anos de nascimento de
Freyre (1900-1987).
Sem consenso Mas o tom escapa da efeméride e busca a polêmica. Afinal, Gilberto Freyre passou por muitas vogas:
já foi bandido e até herói, surgiu como
defensor de uma escravidão enganosamente benigna ou mesmo de uma frágil
mestiçagem -que de racial se fazia cultural-, foi criticado em razão de sua visão por demais otimista e, mais recentemente, exaltado como precursor da história das mentalidades.
Por certo não há consenso nessas searas e cabe aos diferentes especialistas demonstrar como o terreno continua minado. É Evaldo Cabral de Mello quem
analisa de que maneira o uso da perspectiva sincrônica antropológica aplicada a
estudos de sociedades históricas representava ousadia e inovação na descoberta de tempos longos e quase imóveis,
mas, ao mesmo tempo, um deslize perigoso ao enxergar relações estruturais
que não resistiriam ao rigor de um exame diacrônico e de mais longo aporte.
Também Maria Lúcia Pallares-Burke
insiste no tema, retomando o mesmo debate e acrescentando novas questões: o
problema de Freyre não estaria em ter se
esquecido do caráter sequencial da história, mas antes em ter superestimado as
continuidades em detrimento das mudanças.
Mas os artigos não se restringem ao
método de Freyre. Outros ensaios recuperam a atualidade das análises históricas, como é o caso do texto de Nicolau
Sevcenko e a originalidade no uso das
fontes e na atualização dos estudos de
cultura material.
Peter Burke restabelece os vínculos de
Freyre com a escola culturalista norte-americana de Franz Boas, enquanto Pedro Puntoni discorre sobre o debate travado nos anos 30 e a eleição do barroco
mineiro como nossa feição mais nacional. Casas, roupas, mobiliário, arquitetura passam para a ordem do dia, explicando nossas caraterísticas basilares.
A primeira parte desse livro termina
com mais dois depoimentos: Antonio
Dimas estabelece a importância do estilo
de Freyre para a crítica literária e Stuart
Schwartz faz as pazes com a teoria, vinculando o antropólogo de Recife a uma
tradição de estudos culturais de larga importância. Desse primeiro painel surge
uma visão renovada da obra, em que o
otimismo e o elogio a uma sociabilidade
mestiça não aparecem como tarefa de
encobrimento, mas sim
como saída alentada.
No que se refere à mestiçagem, como diz Evaldo
Cabral, se transforma a
hipoteca em lucro. A história não mais condena o
Brasil a nada. Ao contrário, na imaginação de
Freyre, nossa sublime singularidade estaria em criar um povo capaz de conviver com as positividades de
cada cultura e com uma enorme potencialidade de confrontar conflitos.
No entanto, se esse primeiro bloco de
artigos sinaliza para um "armistício", já
o segundo revela como o debate é ainda
tônica fundamental no balanço da obra
de um autor desse calibre. Os artigos seguintes posicionam-se, assim, acerca das
diferenças existentes entre o pensamento do mestre de Apipucos e a escola de
sociologia paulista. A dicotomia é nomeada a partir do embate que opôs Freyre a Florestan Fernandes, atentando não
só para modelos de análise como tendências políticas (direita contra esquerda) ou mesmo regionalismos (Nordeste
contra Sul).
Enquanto Joaquim Falcão contextualiza o mapa dessa discórdia e as lutas pelo
"trono", Edson Nery da Fonseca estabelece uma cronologia do conflito. Está então disposto o terreno para que outros
especialistas -como Carlos Guilherme
Mota, João Cezar de Castro Rocha- se
posicionem e para que Olavo de Carvalho e Gabriel Cohn reponham a disputa
no presente. No entanto, e como bem
mostra Cohn, se Freyre buscou "elos" e
Florestan, "cortes e confrontos", não é o
caso de optar por um dos lados da contenda. Aí estão duas grandes perspectivas da mesma sociedade, duas portas de
entrada igualmente principais.
Com efeito, cair nas qualificações vazias pouco ajuda, sobretudo no caso de
um autor que sempre fez
questão de disfarçar suas
pistas. Freyre era o primeiro a reconhecer seu
anarquismo metodológico, seu personalismo, seu
modelo desordenado e
contraditório. Fazia e desfazia de suas influências
teóricas, assim como evitava definições profissionais estritas.
Quando tentavam nomeá-lo como
sociólogo, antropólogo ou até mesmo
historiador social, costumava dizer que
era escritor e vice-versa: alegava para si
um gênero e não uma especialidade.
Também gostava de falar de si próprio e
de retomar suas obras quando, a cada
nova edição, corrigia, atualizava e desdenhava da crítica. Nada como um liberal crítico aos liberais, um revolucionário conservador...
Mito do mito Não por acaso, e como mostra Hermano Vianna, Freyre foi vítima de seu próprio remédio ao virar mito: mito do mito da democracia
racial. Que a obra de Freyre contenha
um elogio da mestiçagem e um certo
otimismo no que se refere aos trópicos
e sua civilização, não se discute. Mas
uma volta ao texto indicará como a assim chamada "democracia racial", com
aspas ou sem, não faz parte de "Casa
Grande & Senzala", que pretende antes
demonstrar como essa sociedade se
mantém por meio de um complexo
"equilíbrio de antagonismos".
Difícil, muito difícil, enquadrar Freyre, e poderíamos continuar aqui elencando argumentos e interpretações. "O
Imperador das Idéias", como toda coletânea, é feito de altos e baixos, de estudos inovadores e outros mais breves ou
imediatamente referidos às comunicações do seminário. Por isso mesmo,
não há como colocar ponto final nessa
história, e o melhor é reconhecer a homenagem que esse livro traz: o mestre
de Apipucos construiu, com vigor de
ensaísta, uma síntese do Brasil e imprimiu uma forma própria de entender este país. Aqui conviveriam, lado a lado,
um etos integrador e uma economia de
exclusão, como se os opostos de fato se
atraíssem. Freyre, feito agora personagem, revela, como ninguém, de que
maneira a certeza acomoda. A dúvida e
a ambiguidade é que fazem sentido,
produzem conhecimento e geram reflexão.
O Imperador das Idéias
304 págs., R$ 35,00
Joaquim Falcão e Rosa Maria
Barboza de Araújo (orgs). Ed.
Topbooks (r. Visconde de
Inhaúma, 58, sala 203, CEP
20091-000, RJ, tel. 0/xx/21/2233-8718).
Lilia Moritz Schwarcz é professora do departamento de antropologia da USP e autora de, entre outros, "O Espetáculo das Raças" e "As Barbas
do Imperador" (ambos pela Cia. das Letras).
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