São Paulo, domingo, 13 de janeiro de 2002

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Em "Ensaios e Conferências" Heidegger discute questões centrais a obras como "Ser e Tempo"

A casa do homem no mundo

Ernildo Stein
especial para a Folha

Em resposta a uma tentativa frustrada de conseguir acesso a uma cópia do manuscrito "Contribuições para a Filosofia" ("Beiträge"), escreveu-me o irmão de Heidegger no dia 16 de dezembro de 1965: "O estudo dos "Beiträge" não representaria para o senhor um ganho essencial; trata-se principalmente de esboços. O que nos "Beiträge" é apenas indicado, o senhor encontrará completo nos "Holzwegen", nos "Vorträge und Aufsätze" [Ensaios e Conferências" e, sobretudo, no "Nietzsche", volume 2".
Com essas palavras, Fritz Heidegger procurava dar-me orientação sobre os volumes publicados da obra de Heidegger que contivessem informações centrais sobre o segundo Heidegger, que eu presumia poderem ser encontradas na obra "Beiträge zur Philosophie (von Ereignis)" ["Contribuições para a Filosofia (acerca do acontecimento-apropriação)"". Essas informações eu obtivera do livro de Otto Pöggeler, "O Caminho do Pensamento de Martin Heidegger", publicado, então, havia pouco na Alemanha. O volume "Ensaios e Conferências", cuja publicação agora aparece pela editora Vozes, era portanto considerado, junto com as outras duas obras referidas, como sendo um conjunto de textos acabados, oficialmente considerados matéria importante relativa ao filósofo, produzida nos anos 30. Efetivamente essa obra trata dos temas centrais que o filósofo analisara em aulas e seminários, durante os anos 30.
Temos, assim, tratada a questão da técnica, o problema das relações entre a ciência que calcula e o pensamento que medita. Esses temas surgem da análise da superação da metafísica, desenvolvida particularmente na obra, então inédita, dos anos 30.
Na conferência "Quem É o Zaratustra de Nietzsche?", o filósofo nos dá uma pequena amostra dos vários volumes em que fizera uma interpretação da obra de Nietzsche, antes da Segunda Guerra Mundial. Nas conferências "O Que Quer Dizer Pensar?", "Construir, Habitar, Pensar", "A Coisa" e "... Poeticamente o Homem Habita...", Heidegger trata de quatro temas que são parte do núcleo de suas elucubrações após a Segunda Guerra Mundial e que fazem parte daquele tipo de textos que costumo atribuir ao que designo o terceiro Heidegger. Pois, mais que interpretações da metafísica, da ciência e da técnica, são tentativas de pensar um modo novo de o ser humano encontrar uma morada no mundo traumatizado pelas guerras mundiais e confrontado com as vertiginosas transformações trazidas pela era da técnica.
Os três textos que concluem o volume -"Lógos", "Moira", "Alétheia"- resultaram de cursos ministrados respectivamente em 1944, 1952 e 1943. Nesses três comentários de fragmentos de Heráclito e Parmênides, o filósofo deixa entrever o abundante material produzido durante os anos 30 e começo dos 40, escrito na elaboração de suas preleções e seminários que agora estão publicados na sua obra completa, em fase final de publicação. A obra "Ensaios e Conferências" pode ser considerada uma introdução geral, mediante abordagens fragmentárias, às questões centrais do pensamento do segundo Heidegger. Nela também se mostra a produtividade filosófica preparada pela sua obra dos anos 20 e, sobretudo, por "Ser e Tempo".
A obra do filósofo revela três procedimentos de caráter distinto que são seguidos em seus trabalhos de investigação: a análise fenomenológico-estrutural ("Ser e Tempo"), a análise que se apóia na gênese histórica ("Da Essência do Fundamento") e a análise comparativa ("Conceitos Fundamentais da Metafísica"). É desses procedimentos que surgem os cenários, nos quais o filósofo insere suas interpretações da contemporaneidade: a superação da metafísica, o fim da filosofia, a tarefa do pensamento, a questão da ciência e do método, as interrogações sobre a obra de arte, os problemas da técnica e o destino do mundo construído a partir dos progressos da ciência e da técnica, o problema do humanismo, a elaboração de um outro pensamento etc.
Com o aparecimento dos volumes da obra reunida, até há pouco tempo inéditos, pode parecer que "Ensaios e Conferências" contenham textos muito concentrados, cujos temas foram tratados, de maneira mais larga e abrangente, nas milhares de páginas de suas aulas e seminários. No entanto é preciso fazer justiça ao filósofo, descobrindo na maneira de escrever seus ensaios (que hoje em dia certamente não seriam aprovados para publicação em nossas revistas científicas) e de montar suas conferências um estilo em que forma e conteúdo se integram de um modo extraordinariamente adequado. Heidegger deve ser considerado o inventor de uma ensaística filosófica que faz grandemente justiça às questões centrais da filosofia. Esse estilo de filosofar por meio de ensaios e conferências representa, sem dúvida, um fenômeno da segunda metade do século 20, com o qual muito teriam que aprender os autores de obras filosóficas que pretendem forçar o tratamento de questões filosóficas para dentro da camisa-de-força dos métodos das ciências humanas.
Não é sem razão que Nietzsche, Wittgenstein e também, por vezes, Heidegger tenham recorrido ao estilo aforístico para fugir do tédio da apresentação "científica" de nossos aprendizes de feiticeiro.
Considero a tradução do volume "Ensaios e Conferências", repartida por capítulos entre os três tradutores, Emmanuel Carneiro Leão, Gilvan Fogel e Marcia Sá Cavalcante Schuback, uma tarefa muito bem-sucedida.
Assim como eu pessoalmente teria escolhas discordantes para a versão brasileira, pode-se também descobrir, na tradução, uma certa divergência nas escolhas feitas por cada tradutor individualmente. Mas isso não invalida de maneira nenhuma os enormes méritos dessa produção orquestrada. A convergência de três horizontes interpretativos teve como resultado um livro agradável de ser lido. E, sobretudo, temos uma obra em português que faz justiça ao grande livro de Heidegger publicado em 1954.


Ensaios e Conferências
260 págs.
de Martin Heidegger. Tradução de Emmanuel C. Leão, Gilvan Fogel e Marcia Sá C. Schuback. Ed. Vozes (r. Frei Luis, 100, CEP 25689-900, Petrópolis, RJ, tel. 0/xx/24/2233-9000).



Ernildo Stein é professor de filosofia da Pontifícia Universidade Católica (PUC-RS) e autor de "Diferença e Metafísica" e "Anamnese" (EDIPUCRS).


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