|
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice
+ livros
Em "Ensaios e Conferências" Heidegger discute questões centrais a obras como "Ser e Tempo"
A casa do homem no mundo
Ernildo Stein
especial para a Folha
Em resposta a uma tentativa frustrada de conseguir acesso a uma cópia do manuscrito "Contribuições para a Filosofia" ("Beiträge"),
escreveu-me o irmão de Heidegger no
dia 16 de dezembro de 1965: "O estudo
dos "Beiträge" não representaria para o
senhor um ganho essencial; trata-se
principalmente de esboços. O que nos
"Beiträge" é apenas indicado, o senhor
encontrará completo nos "Holzwegen",
nos "Vorträge und Aufsätze" [Ensaios e
Conferências" e, sobretudo, no "Nietzsche", volume 2".
Com essas palavras, Fritz Heidegger
procurava dar-me orientação sobre os
volumes publicados da obra de Heidegger que contivessem informações centrais sobre o segundo Heidegger, que eu
presumia poderem ser encontradas na
obra "Beiträge zur Philosophie (von
Ereignis)" ["Contribuições para a Filosofia (acerca do acontecimento-apropriação)"". Essas informações eu obtivera do
livro de Otto Pöggeler, "O Caminho do
Pensamento de Martin Heidegger", publicado, então, havia pouco na Alemanha. O volume "Ensaios e Conferências",
cuja publicação agora aparece pela editora Vozes, era portanto considerado, junto com as outras duas obras referidas,
como sendo um conjunto de textos acabados, oficialmente considerados matéria importante relativa ao filósofo, produzida nos anos 30. Efetivamente essa
obra trata dos temas centrais que o filósofo analisara em aulas e seminários, durante os anos 30.
Temos, assim, tratada a questão da técnica, o problema das relações entre a
ciência que calcula e o pensamento que
medita. Esses temas surgem da análise da superação da metafísica, desenvolvida particularmente
na obra, então inédita,
dos anos 30.
Na conferência "Quem
É o Zaratustra de Nietzsche?", o filósofo nos dá
uma pequena amostra
dos vários volumes em
que fizera uma interpretação da obra de Nietzsche, antes da Segunda Guerra Mundial. Nas conferências "O Que Quer Dizer Pensar?", "Construir, Habitar, Pensar", "A Coisa" e "...
Poeticamente o Homem Habita...", Heidegger trata de quatro temas que são
parte do núcleo de suas elucubrações
após a Segunda Guerra Mundial e que fazem parte daquele tipo de textos que costumo atribuir ao que designo o terceiro
Heidegger. Pois, mais que interpretações
da metafísica, da ciência e da técnica, são
tentativas de pensar um modo novo de o
ser humano encontrar uma morada no
mundo traumatizado pelas guerras
mundiais e confrontado com as vertiginosas transformações trazidas pela era
da técnica.
Os três textos que concluem o volume
-"Lógos", "Moira", "Alétheia"- resultaram de cursos ministrados respectivamente em 1944, 1952 e 1943. Nesses três
comentários de fragmentos de Heráclito
e Parmênides, o filósofo deixa entrever o
abundante material produzido durante
os anos 30 e começo dos 40, escrito na
elaboração de suas preleções e seminários que agora estão publicados na sua
obra completa, em fase final de publicação. A obra "Ensaios e Conferências" pode ser considerada uma introdução geral, mediante abordagens fragmentárias,
às questões centrais do pensamento do
segundo Heidegger. Nela também se
mostra a produtividade filosófica preparada pela sua obra dos anos 20 e, sobretudo, por "Ser e Tempo".
A obra do filósofo revela três procedimentos de caráter distinto que são seguidos em seus trabalhos de investigação: a
análise fenomenológico-estrutural ("Ser
e Tempo"), a análise que se apóia na gênese histórica ("Da Essência do Fundamento") e a análise comparativa ("Conceitos Fundamentais da
Metafísica"). É desses
procedimentos que surgem os cenários, nos
quais o filósofo insere
suas interpretações da
contemporaneidade: a superação da metafísica, o
fim da filosofia, a tarefa do
pensamento, a questão da
ciência e do método, as
interrogações sobre a
obra de arte, os problemas da técnica e o
destino do mundo construído a partir
dos progressos da ciência e da técnica, o
problema do humanismo, a elaboração
de um outro pensamento etc.
Com o aparecimento dos volumes da
obra reunida, até há pouco tempo inéditos, pode parecer que "Ensaios e Conferências" contenham textos muito concentrados, cujos temas foram tratados,
de maneira mais larga e abrangente, nas
milhares de páginas de suas aulas e seminários. No entanto é preciso fazer justiça
ao filósofo, descobrindo na maneira de
escrever seus ensaios (que hoje em dia
certamente não seriam aprovados para
publicação em nossas revistas científicas) e de montar suas conferências um
estilo em que forma e conteúdo se integram de um modo extraordinariamente
adequado. Heidegger deve ser considerado o inventor de uma ensaística filosófica que faz grandemente justiça às questões centrais da filosofia. Esse estilo de filosofar por meio de ensaios e conferências representa, sem dúvida, um fenômeno da segunda metade do século 20, com
o qual muito teriam que aprender os autores de obras filosóficas que pretendem
forçar o tratamento de questões filosóficas para dentro da camisa-de-força dos
métodos das ciências humanas.
Não é sem razão que Nietzsche, Wittgenstein e também, por vezes, Heidegger
tenham recorrido ao estilo aforístico para fugir do tédio da apresentação "científica" de nossos aprendizes de feiticeiro.
Considero a tradução do volume "Ensaios e Conferências", repartida por capítulos entre os três tradutores, Emmanuel Carneiro Leão, Gilvan Fogel e Marcia Sá Cavalcante Schuback, uma tarefa
muito bem-sucedida.
Assim como eu pessoalmente teria escolhas discordantes para a versão brasileira, pode-se também descobrir, na tradução, uma certa divergência nas escolhas feitas por cada tradutor individualmente. Mas isso não invalida de maneira
nenhuma os enormes méritos dessa produção orquestrada. A convergência de
três horizontes interpretativos teve como
resultado um livro agradável de ser lido.
E, sobretudo, temos uma obra em português que faz justiça ao grande livro de
Heidegger publicado em 1954.
Ensaios e Conferências
260 págs.
de Martin Heidegger. Tradução
de Emmanuel C. Leão, Gilvan
Fogel e Marcia Sá C. Schuback.
Ed. Vozes (r. Frei Luis, 100, CEP
25689-900, Petrópolis, RJ, tel.
0/xx/24/2233-9000).
Ernildo Stein é professor de filosofia da Pontifícia
Universidade Católica (PUC-RS) e autor de "Diferença e Metafísica" e "Anamnese" (EDIPUCRS).
Texto Anterior: Lilia Moritz Schwarcz: Antropologia em terreno minado Próximo Texto: Marcelo Coelho: Narrativa clandestina Índice
|