São Paulo, domingo, 13 de janeiro de 2002

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Em "Exortação aos Crocodilos" o romancista Lobo Antunes tece um longo monólogo interior sobre uma organização terrorista em Portugal nos anos 70

Narrativa clandestina

Marcelo Coelho
Colunista da Folha

Para facilitar as coisas, cito o texto publicado na revista da editora Rocco a respeito deste romance de António Lobo Antunes. "Por meio dos monólogos interiores de Mimi, Fátima, Celina e Simone, o escritor conta a história fictícia de uma rede da rede de extrema direita que cometeu atentados em Portugal nos anos 70. Elas expõem seus pensamentos de forma fragmentada. Mimi é surda e sofre de câncer. Na sua lembrança está sempre presente a avó, matriarca que mergulhava a trança dos seus cabelos em aguardente. Seu marido participa da organização terrorista, trabalhando para um bispo católico. Fátima é afilhada e amante do bispo. Celina é a mulher atormentada e depois viúva de um homem rico. Simone namora o rapaz que faz as bombas."
A informação é útil, pois a cada capítulo uma das quatro personagens assume a narração. O leitor precisa estar atento para distinguir os diversos pontos de vista. Nem a forma de narrar (se trata sempre do monólogo interior) nem a linguagem (bastante uniforme apesar das diferenças entre as personagens) nos indicam claramente com quem estamos lidando a cada capítulo.
É possível encontrar muitas justificativas para a opção de Lobo Antunes por essa técnica narrativa enviesada. Os personagens masculinos do romance se dedicam a atividades clandestinas e abjetas; em vez de explicá-las, o que possivelmente exigiria alguma simpatia, o livro ressalta justamente o que há de sinistro, de arbitrário, de obscurantista e de hipócrita no terrorismo de extrema direita. Um bispo participa dos assassinatos, dizendo estar "numa guerra santa". Adotando-se a perspectiva das personagens femininas, a atividade política extremista se cerca de incompreensibilidade e exige submissão.
Desse modo, as dificuldades do leitor em acompanhar a trama vêm como que refletir o estado de semiconsciência, de cumplicidade e inconformismo, de desconfiança e cegueira daquelas quatro mulheres. Atos de conspiração e lembranças desencontradas de infância se misturam. Veja-se o seguinte exemplo, tirado de um capítulo narrado por Simone, a namorada do motorista que fabricava bombas.
"O calor de julho na travessa, pessoas à entrada das casas, saladas de pimentões, tudo o que não tinha e me apetecia ter, confinada a uma garagem nauseabunda, a lençóis bolorentos e ao estanho das nódoas no chão, o marido da surda chegou com o embaixador e o senhor bispo
- Graças a Deus o avião explodiu
de modo que no domingo seguinte voltamos à feira onde compramos a santa, barracas de fazenda, vergas, leitões, miudezas de pau, sete ou oito tendas ao comprido da estrada, a ponte onde um sobreiro crucificava o sol, uma torre de igreja e um moinho de vento sem pás, estávamos já no fim da lição de geografia, com os mapas já dobrados exceto o do tubo digestivo de legendas em inglês, quando a empregada da escola veio avisar ao professor que (...)"
Interrompo aqui o fluxo de consciência da personagem; creio que o trecho dá idéia da extrema habilidade de Lobo Antunes como escritor, do poder evocativo de suas imagens, da sutileza com que trata a fragilidade das personagens.
Ao mesmo tempo, a opção técnica do autor termina trazendo alguns problemas. As quatro mulheres estão às voltas com lembranças obsessivas da infância. Mimi evoca o tempo todo a sua avó, que passava o tempo a misturar café com açúcar e água com gás para chegar à fórmula da Coca-Cola.
A cena se repete tantas vezes ao longo do livro que terminamos suspeitando se a insistência do autor nesse pormenor corresponde a alguma verdade psicológica ou simplesmente à necessidade de marcar, de dar sinais de reconhecibilidade, à personagem em questão. É muitas vezes graças a esse tipo de lembrança que o leitor se localiza no texto e consegue saber qual é a personagem que fala em cada capítulo.
Talvez o nome mais conhecido da literatura portuguesa depois de Saramago, Lobo Antunes encontra no monólogo interior ocasião para nos fascinar com seu talento estilístico. Mas às vezes temos a impressão de encontrar, nesse mesmo talento, os limites do livro. Tudo fica excessivamente homogêneo, os pontos de vista de cada personagem não contrastam tanto quanto seria de esperar.
Para dizer tudo, não se lê este livro sem uma dose de sacrifício: suas grandes qualidades de certo modo o comprometem. O virtuosismo contínuo de um único procedimento narrativo, de um fluxo de consciência que se ramifica, retoma e reitera ao longo de trezentas e tantas páginas produz no leitor mais admiração do que envolvimento.



Exortação aos Crocodilos
358 págs., R$ 36,00
de António Lobo Antunes. Ed. Rocco (r. Rodrigo Silva, 26, 5º andar, CEP 20011-040, RJ, tel. 0/xx/21/2507-2000).



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