São Paulo, domingo, 13 de janeiro de 2002

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Ponto de fuga

A ilha dos mortos

"As cores são tão gritantes, que eu tinha vontade de tapar os ouvidos." Um crítico, em 1880, exclamava assim, diante das telas de Arnold Böcklin. O pintor, mesmo nos temas sombrios, amava as estridências cromáticas. Elas lhe serviam para abrir um leque desconcertante de imagens, retomando evocações da mitologia clássica, fazendo rimar irrisão e inquietação.
Böcklin conheceu imensa fama em seu tempo. Nascido na Basiléia, Suíça, em 1827, foi considerado a encarnação da germanidade em pintura. Escolheu a Itália, é verdade, como segunda pátria. No ano de 1901, morria em Florença. Mas a busca por uma assimilação na cultura italiana, desde Goethe, senão desde Dürer, tornara-se um traço recorrente do espírito alemão, ao qual Böcklin parecia se integrar. Seu quadro mais famoso, "A Ilha dos Mortos", que ele mesmo retomaria em cinco versões diferentes, encarregava-se de afirmá-lo como o pintor da melancolia filosófica, considerada como caracteristicamente tedesca.
A germanofobia fez com que os franceses resistissem durante muito tempo à sua pintura, e só agora, na França, é apresentada uma retrospectiva de Böcklin. Concebida no Museu d'Orsay, em Paris, por Richard Peduzzi, preserva as obras de qualquer encenação esperta, deixando-as exprimirem-se por si mesmas. Elas denunciam, por suas vibrações estranhas, as complexidades de uma arte que escapa à redutora etiqueta de "espírito alemão". São jogos inesperados, em que a mitologia se faz símbolo misterioso, e a pincelada se carrega de metafísica.

Gasosos - A pintura de Böcklin marcou, entre outros, De Chirico e Magritte, que não esconderam suas dívidas para com o mestre. "A Ilha dos Mortos", "O Bosque Sagrado", "Ulisses e Calípso" são quadros em que a gravidade, profunda, comovente, não brota apenas das imagens, mesmo que estas se mostrem como achados notáveis. Há uma alquimia secreta nas cores estranhas, nas luminosidades vivas, interrompendo massas sombrias. São telas que, ao mesmo tempo, encobrem e revelam segredos.

Líquidos - As águas voltam sem cessar nos quadros de Böcklin. Revoltas ou plácidas, elas não se reduzem às transparências, aos reflexos fragmentados que os impressionistas amavam tanto. Formam caldos escuros, densos, cheios como que de uma vida sobrenatural. Seus habitantes, famílias inteiras de tritões e sereias em várias gerações, com bebês, adultos e velhos, têm peles avermelhadas e cabelos ruivos. Divertem-se à larga nas ondas e rochedos. Podem, de início, provocar o riso, que termina, porém, num sentimento de esquisito mal-estar. "Às vezes, sob a superfície aquática, espia um horrendo monstro escamoso."

Sólidos - David Hockney, num livro recente, chamou a atenção geral para algo já conhecido dos especialistas: o emprego da câmara óptica na pintura do Ocidente desde tempos bastante recuados. Trata-se apenas de um, entre vários artifícios técnicos, que os artistas não hesitaram em empregar, facilitando-lhes a tarefa de representar o visível. Uma exposição, ainda no Museu d'Orsay, em Paris, volta-se para uma outra dessas astúcias: a modelagem sobre o corpo humano, que auxiliava os escultores em seus trabalhos. É um procedimento cujo apogeu foi atingido durante o século 19. Alguns práticos especializaram-se em fornecer as partes que os artistas precisavam: braços, mãos, pernas ou o que mais seja.
O catálogo, completo e preciso, esclarece sobre as técnicas empregadas, sobre o estatuto desse tipo de modelagem, visto com repugnância pelos puristas e consagrado pelo emprego genial que dele fez Rodin. A exposição percorre ainda os vínculos entre modelagem e ciência, tanto a serviço da pedagogia médica, quanto da frenologia e da antropologia. Seu caráter explicitador, porém, não impede que exerça um fascínio muito particular. Dela emana a poesia dos fragmentos e da imitação precisa. O título dessa mostra é: "A Flor da Pele - A Modelagem sobre o Natural no Século 19".


Jorge Coli é historiador da arte.



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