São Paulo, domingo, 13 de janeiro de 2002

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+ literatura

Femina

por Adélia Prado

Leia abaixo um dos contos do livro "Filandras", que a escritora mineira acaba de lançar pela editora Record

A Ivete ligou dizendo-se preocupada com a Ester deprimida demais. Grande novidade, deprimido na minha família, já sabia. Está amolada, diz ela, porque os filhos não deixam mais os meninos pra ela vigiar, achando que está velha, não aguenta mais o batente. Imagina, ela disse, criei os filhos e não aguento dois netos? É claro que não está deprimida por causa disso, está é sofrendo daquela doença ingrata, a de mil sintomas de total gravidade e gravidade nenhuma, porque não é doença, é menopausa, um "meno male", afinal. Não tem cura, é democrática, nos põe os olhos levemente aflitos, buscando na ex-colega de escola nossa imagem perdida, a doente sem doença, como me chamou o doutor. Também arrumei agora uma cabeça zonza, a idéia exata de ter um parafuso frouxo, ou, no meu caso, apertado demais, me doem as articulações dos maxilares, como se eu tivesse um cabresto. Várias vezes por dia fico de boca aberta para ter um descanso. Não acho graça em quase nada, em dez minutos esgoto qualquer passeio e quero voltar para o meu quarto. O homeopata -será que escarnecendo de mim?- falou: olha, dona Afonsa, nada de hormônios, envelhecer é isso mesmo, a gente vai se mineralizando, chegou a dizer o que -no pensamento dele- é de uma lógica brutal, que a osteoporose é sinal de progressiva espiritualização. Pior é que concordo: "Tu és pó e em pó te tornarás", somos cinza, caminhamos no sentido inverso da ave fênix. Deveras, dá muita paz não relutar contra o destino, fatalidades repousam. Em minha casa diziam: "velha saliente: está na hora de pegar um rosário e ainda caçando indaca de namoro". Estavam grosseiramente certos, mais certos em todo caso que os marqueteiros da terceira idade. A velhinha dizia na televisão, a velhinha da romaria, temos que sofrer neste mundo, a cara quase infantil, cara de criança, de velha feliz, com mais estradas que um mapa, velha para um pintor, com só uma coisa nova, o seu entrepernas, velhinha que namora e casa outra vez, sabe como? Sabina vai pensar que a estou criticando por tingir o cabelo, não é nada disso, juro que não. Só tento dizer que a alma não envelhece, mas é quase impossível que me entenda. Levar um pensamento até o fim é como colocar n'água um bastão, sua imagem entorta na hora, ainda que ele continue direito na sua concreteza. Afinal, afinal nada, porque nada tem fim, muito menos o sofrimento do mundo.


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