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+ literatura
Femina
por Adélia Prado
Leia abaixo um dos contos do livro "Filandras", que a escritora mineira acaba de lançar pela editora Record
A Ivete ligou dizendo-se preocupada com a Ester deprimida demais. Grande novidade, deprimido na minha família, já sabia. Está amolada, diz ela, porque os filhos não
deixam mais os meninos pra ela vigiar, achando que está
velha, não aguenta mais o batente. Imagina, ela disse, criei
os filhos e não aguento dois netos? É claro que não está deprimida por causa disso, está é sofrendo daquela doença
ingrata, a de mil sintomas de total gravidade e gravidade
nenhuma, porque não é doença, é menopausa, um "meno
male", afinal. Não tem cura, é democrática, nos põe os
olhos levemente aflitos, buscando na ex-colega de escola
nossa imagem perdida, a doente sem doença, como me
chamou o doutor. Também arrumei agora uma cabeça
zonza, a idéia exata de ter um parafuso frouxo, ou, no meu
caso, apertado demais, me doem as articulações dos maxilares, como se eu tivesse um cabresto. Várias vezes por dia
fico de boca aberta para ter um descanso. Não acho graça
em quase nada, em dez minutos esgoto qualquer passeio e
quero voltar para o meu quarto. O homeopata -será que
escarnecendo de mim?- falou: olha, dona Afonsa, nada
de hormônios, envelhecer é isso mesmo, a gente vai se mineralizando, chegou a dizer o que -no pensamento dele- é de uma lógica brutal, que a osteoporose é sinal de
progressiva espiritualização. Pior é que concordo: "Tu és
pó e em pó te tornarás", somos cinza, caminhamos no sentido inverso da ave fênix. Deveras, dá muita paz não relutar
contra o destino, fatalidades repousam. Em minha casa diziam: "velha saliente: está na hora de pegar um rosário e
ainda caçando indaca de namoro". Estavam grosseiramente certos, mais certos em todo caso que os marqueteiros da terceira idade. A velhinha dizia na televisão, a velhinha da romaria, temos que sofrer neste mundo, a cara quase infantil, cara de criança, de velha feliz, com mais estradas
que um mapa, velha para um pintor, com só uma coisa nova, o seu entrepernas, velhinha que namora e casa outra
vez, sabe como? Sabina vai pensar que a estou criticando
por tingir o cabelo, não é nada disso, juro que não. Só tento
dizer que a alma não envelhece, mas é quase impossível
que me entenda. Levar um pensamento até o fim é como
colocar n'água um bastão, sua imagem entorta na hora,
ainda que ele continue direito na sua concreteza. Afinal,
afinal nada, porque nada tem fim, muito menos o sofrimento do mundo.
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