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Profissão: PIANISTA
Mulheres pararam de tentar impressionar a sociedade aprendendo piano e ofício passou a ser cada vez mais masculino, diz pesquisadora da UnB
DA REDAÇÃO
A
sala das casas comuns não tem mais
piano. A moça de
família está liberta.
Como conseqüência, a profissão de pianista se
masculinizou.
Eis o paradoxo: surgiram relativamente menos mulheres
de destaque como concertistas
do piano desde o feminismo do
século 20 do que na época em
que ser uma pianista profissional requeria rebeldia.
Esse é o tema de "As Pianistas dos Anos 1920 e a Geração
"Jet-Lag'", de Jaci Toffano (ed.
UnB, 174 págs., R$ 25).
De 1913 a 1929, dos 634 alunos diplomados no curso de
piano do Conservatório Dramático e Musical de São Paulo
617 eram mulheres -97%-, de
acordo com a pesquisa da autora. Foi uma época em que tocar
piano era uma prenda doméstica como cozinhar ou costurar
-tempo de ascensão e glória de
Antonietta Rudge (1885-1974),
Guiomar Novaes (1896-1979) e
Magdalena "Magda" Tagliaferro (1893-1991).
"Elas teimaram, tiveram de
romper barreiras. Cada uma
trilhou um caminho muito difícil. Tiveram de abrir mão de
papéis femininos. Havia a domesticidade, a aproximação
forte com o piano, mas quando
chegava o limite entre o diletantismo, a prenda doméstica,
e o profissionalismo, havia uma
barreira -que poucas conseguiram transpor", declara Toffano, professora do departamento de música da Universidade de Brasília, em entrevista
à Folha.
Passada a luta feminista e
derrotado pela prática o preconceito que ditava que mulher não deve trabalhar, persiste a alta proporção de mulheres
nos consevatórios -em torno
de 70% no mesmo conservatório paulista nos anos 1990, segundo a pesquisadora.
"Não sei se esse desequilíbrio
é tão acentuado", responde Ricardo Rossetto Mielli, coordenador do conservatório.
"Quando estudei, na década de
90, havia, sim, mais meninas
do que rapazes. Foi uma coisa
cultural da família paulistana a
filha estudar música, mas hoje
é páreo a páreo. E o Brasil sempre teve pianistas homens."
Competição
Mais do que um símbolo de
igualdade, esse equilíbrio
quantitativo em torno do instrumento pode ser um símbolo
machista. Para Toffano, no passado o piano era visto como
uma fase intermediária da carreira; a composição e a regência
seriam as metas. Com a valorização do intérprete e a competitividade no mercado, os homens teriam tomado o lugar
das mulheres até no piano.
O subtítulo do livro é "O Paradoxo Feminista": "Tivemos
uma Chiquinha Gonzaga
[1847-1935] para romper barreiras, ela transgrediu, tocou no
espaço público, foi compositora -o caminho já foi trilhado.
Hoje, as mulheres têm tudo para serem profissionais, para estarem "pari passu" com o homem, mas não estão no topo da
carreira. Isso é um paradoxo",
afirma Toffano.
"Na década de 20 houve um
espaço específico em que as
mulheres puderam se colocar
como pianistas. Hoje, embora
haja muitas pianistas excelentes, os homens continuam a
carreira até o topo -como antes não ocorria. Souza Lima
[1898-1982], por exemplo: foi
um pianista brilhante, no entanto a história o conhece como maestro e compositor."
A prevalência feminina não é
compensada com celebridade:
nomes como Arthur Moreira
Lima ou Nelson Freire são mais
lembrados como exemplos
profissionais do que suas contrapartes femininas.
Para Toffano, que é também
pianista, o instrumento já superou o preconceito machista,
mas de maneira geral a música
ainda fomenta a idéia de gênio
do gênero: "No piano isso é superado. Chiquinha Gonzaga sofreu ainda muito preconceito,
mas Guiomar Novaes, Antonietta Rudge e Magda Tagliaferro são ícones que todos admiram. Ainda há muito preconceito em outras funções, como
com as regentes. Muitos se incomodam ao vê-las -é um estereótipo. É um espaço que a
mulher ainda não ocupou."
Ricardo Mielli, que é maestro
da orquestra do conservatório
de São Paulo, reage: "É exagero
falar que só homem rege. Temos a Ligia Amadio [Orquestra
Sinfônica Nacional - UFF]; em
São Paulo há a Banda Sinfônica
do Estado [cuja regente assistente é Érika Hindrikson]".
Acúmulo
Arnaldo Cohen é um dos pianistas contemporâneos estudados por Toffano, um representante da "geração "jet-lag'". "Esse termo surgiu em entrevista
com Nelson Freire, que falou
sobre viajar muito de avião para cumprir compromissos",
disse a professora, chamando a
atenção a mais um problema do
trabalho da pianista: conciliar
as viagens de trabalho com os
afazeres domésticos.
"Arnaldo Cohen conta que,
quando Jacques Klein [1930-82] o ouviu, disse: "Você tem todos os ingredientes para ser um
pianista internacional". Cohen
tinha 13 anos. Analiso: o primeiro ingrediente é que era um
homem! A mulher ainda se desencoraja pelas tarefas de casa." A professora usa esse desencorajamento para explicar
números incluídos no livro segundo os quais, de um grupo de
estudantes de piano em nível
universitário nos anos 90, 58%
dos homens declararam ter
pretensão de seguir carreira de
concertista, contra 31% das
mulheres.
Enquanto 17% deles declaravam-se contentes em "ser um
bom músico", 54% das mulheres responderam o mesmo.
"As mulheres são mais calmas, não vislumbram uma carreira muito alta. Atribuo isso ao
fato de a mulher continuar com
a barreira dos papéis domésticos: sonha com o casamento,
sabe que as tarefas com os filhos conflitam com a dedicação
exclusiva, com o agendamento
de concertos internacionais."
Quanto à carreira internacional, Toffano diz que o problema
não é ser mulher, é ser brasileiro. "A luta é a mesma. O solista
tradicional está em desvantagem em relação a Estados Unidos e Europa. Aqui é mais difícil
ser pianista da maneira tradicional, aquele que se apresenta
como solista na sala de concerto, do que lá fora. Mas há o Moreira Lima, cuja realização é ir
aos cantos mais longínquos,
menos desenvolvidos do Brasil,
e ver a reação que causa nas
pessoas. É um missionário. Há
espaços infinitos neste país, há
público interessado."
Equilíbrio
Se o menor ingresso de mulheres nos conservatórios, influenciado pela desvalorização
das prendas domésticas, e o
mercado de trabalho mais
aberto, numa situação em que o
intérprete não é mais visto como mero "tocador" dos compositores, ajudam a equilibrar a
disputa entre os gêneros pelo
sucesso ao piano, persiste ainda
o tabu generalizado da divisão
de tarefas domésticas.
"Quando vejo uma mulher
brilhando na música, penso: ou
está pagando um preço alto,
deixando muita coisa para trás,
ou encontrou um homem que
colabora", comenta Toffano.
"O fator doméstico propiciava a procura da mulher, e isso
acabou. Hoje essa carreira é um
acaso, antes não era um acaso:
era um dos pouco caminhos para a mulher sair do anonimato,
do cotidiano de pouco brilho."
(ERNANE GUIMARÃES NETO)
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