São Paulo, domingo, 13 de janeiro de 2008

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Decifra-me

Especialistas analisam obsessão por holofotes do presidente Nicolas Sarkozy e seu discurso de ruptura com a velha França

Khaled Desouki - 30.dez.2007/France Presse
O presidente da França Nicolas Sarkozy e sua namorada, a cantora italiana Carla Bruni, diante da Esfinge de Gizé, no Egito


RAUL JUSTE LORES
COLABORAÇÃO PARA A FOLHA

N icolas Sarkozy, 52, deve pôr fim ainda neste ano à jornada de trabalho de 35 horas semanais, reformar a administração e o financiamento de sindicatos e universidades públicas e ainda aumentar o tempo de contribuição dos franceses para a Previdência.
Sem descanso, também deve se casar em fevereiro com a cantora italiana Carla Bruni e continuar a passar férias em lugares um tanto inusitados para um presidente francês.
Um líder socialista disse que a França tem assistido, entre divórcio e namoro, a uma versão francesa do novelão "Dallas", enquanto aristocratas conservadores, eleitores fiéis de Sarkozy, manifestam horror ao namoro no parque de diversões Eurodisney. A palavra de ordem de Sarkozy é ruptura. Alguém duvida dele?
Sarkô promete romper com a tradição estatista da França e libertar a economia engessada que cresceu menos de 2% ao ano na última década. Apesar da riqueza de potência européia e do charme do país, as revoltas periódicas na periferia e as teses xenófobas adotadas por boa parte do eleitorado mostram que o mal-estar vai muito além da "malaise" dos parisienses no café.
Ainda é cedo para ver os resultados do hiperativo presidente, mas Sarkô já mudou a agenda francesa em oito meses no cargo. Começou a impor reformas liberais thatcherianas à francesa, engavetadas durante anos por socialistas e até por conservadores, como seu antecessor, Jacques Chirac.
Mais chocante até, quebrou o pacto de discrição entre imprensa e presidentes franceses, a ponto de alimentar uma política midiática que faz a festa das congêneres francesas da revista "Caras". Onde Thatcher encontra Paris Hilton.
Ao ofuscar com facilidade uma geração de líderes europeus que não empolga além de suas fronteiras (Merkel, Brown, Prodi e Zapatero), sua comunicação é acompanhada com lupa por quem estuda marketing político.
A estratégia de Sarkozy é ocupar a mídia o tempo inteiro, criando um enorme contraste com a siesta prolongada dos últimos anos do governo Chirac.
Sua atividade frenética o leva a liderar a libertação de enfermeiras búlgaras presas na Líbia (que padeceram por um ano de gestões infrutíferas da União Européia); e a se encontrar com o presidente venezuelano Hugo Chávez para tentar libertar das Farc a franco-colombiana Ingrid Betancourt.
Em casa, ele pode ser visto batendo boca com pescadores em uma manifestação na Bretanha ou com ferroviários durante uma greve.
Em um braço-de-ferro com os sindicatos, conseguiu acabar com o regime especial de aposentadoria de 1,6 milhão de trabalhadores de áreas como energia e ferrovias, mesmo após uma greve de nove dias que parou os transportes do país em novembro. Eles passarão a contribuir com a Previdência por 40 anos de trabalho, como os demais franceses, e não mais com 37 anos.

Marketing mediterrâneo
O ritmo das reformas para endireitar a economia francesa é acompanhado por uma exibição desavergonhada de sua vida privada.
"Sarkozy mistura o estilo presidencial francês -autoritário, a encarnação da nação, sem deixar espaço para ninguém mais no executivo -, com uma comunicação dirigida ao homem comum", diz Thierry Leterre, pesquisador do Centro de Estudos da Vida Política Francesa do Instituto de Estudos Políticos de Paris, o tradicional Sciences Po.
"Há um marketing mais mediterrâneo (que se caracteriza por mostrar belas mulheres, dinheiro, histórias borbulhantes) que americano (homens fortes, fé, grandes palavras). Ele anunciou o divórcio durante uma enorme greve, por exemplo."
Poucos dias após ter recebido o polêmico ditador líbio Muammar Khadafi (visita criticada à direita e à esquerda), ele surge em plena Eurodisney com a nova namorada, a cantora italiana Carla Bruni. Quem quis mais saber de Khadafi?
"Em nossas sociedades, muitas pessoas gostam de imaginar que seus líderes não são diferentes de si próprias, e vice-versa. Ele sacia esse apetite por identificação", disse ao Mais! o editor e colunista do jornal Le Monde, Patrick Jarreau. "Mas isso não deveria influenciar a avaliação de suas políticas".
A jornalista brasileira Daniela Fernandes, há oito anos em Paris trabalhando para BBC e Radio France, confirma que até o novo-riquismo de Sarkozy, gozando férias em mansões, iates e jets emprestados por amigos milionários, é parte da ruptura. "É uma modernidade calculada, que contrasta com seus antecessores, que estudaram nas melhores universidades e eram menos mundanos".
A estratégia popular é coerente com a contradição das revistas de celebridades, conta o professor Laterre. "Elas tendem a mostrar como estrelas e milionários são gente comum com preocupações comuns, enquanto atraem esse mesmo público pelo luxo e glamour. A frivolidade dele é a estratégia menos frívola", diz.
O presidente defendeu não esconder seu namoro com a ex-modelo, o que quebra uma longa tradição dos líderes franceses de esconder suas relações do domínio público. Disse que era contrário à hipocrisia.
Diversos livros continuam a ser lançados na França para tentar decifrar o enigma Sarkozy. De histórias em quadrinhos que contam sua infância ao livro da dramaturga Yasmina Reza, autora da peça "Art", que acompanhou Sarkozy em campanha e escreveu "L'Aube le Soir ou la Nuit" (A Aurora, a Tarde ou a Noite).
No Brasil, acaba de sair "Nicolas Sarkozy - Uma Biografia", da jornalista Catherine Nay, pela editora Manole.

Gente de esquerda
No livro de Yasmina Reza, ela conta que Sarkozy enchia de elogios os premiês Zapatero, da Espanha, o italiano Romano Prodi e o britânico Tony Blair.
Reza disse que era estranho que ele fosse amigo de tanta gente de esquerda. O então candidato lhe respondeu. "Eles não são de esquerda. Só na França ainda tem gente que vive na esquerda".
Para o professor Yves Surel, do Instituto de Estudos Políticos de Grenoble, as primeiras medidas, como reformas fiscais, previdenciárias e trabalhistas, "já são clássicas, mas são ruptura na França". "Sarkozy se beneficia de um apoio parlamentar sólido e de ótimas relações com os donos da mídia, o que lhe dá uma certa tranqüilidade", diz.
Mas Sarkozy não parece gostar de tranqüilidade. Ele estipulou que, até terça, sindicalistas e empresários cheguem a um acordo para flexilibilizar leis trabalhistas (leia-se acabar com alguns direitos dos trabalhadores para baratear e facilitar mais contratações). Se não houver acordo, o presidente já disse que mudará a legislação de qualquer modo.
Ele também quer tornar mais transparentes a administração e o financiamento de sindicatos e universidades públicas, além de acabar com a jornada de trabalho de 35 horas -medida criada para forçar os empresários a contratar mais gente, mas que não conseguiu reduzir a taxa de desemprego de 9% -porém deu aos franceses cerca de 50 dias úteis para ficar em casa.
E depois de acabar com o regime especial dos ferroviários, ele quer aumentar o tempo de contribuição previdenciária de todos os franceses para, pelo menos, 41 anos.
Apesar da terapia de choque das reformas, há poucos resultados. O PIB francês cresceu menos de 2% em 2007 e só deve crescer 1,7% em 2008, repetindo a década de crescimento medíocre do país. A inflação deve aumentar,o desemprego não diminuiu e a confiança dos consumidores está em queda.
A economia francesa foi atingida pelas altas do petróleo, de commodities e alimentos. Em sete meses de governo, a popularidade de Sarkozy caiu de 65% a 49%. Se sua hiperatividade não trouxer crescimento, a única lua-de-mel que poderá gozar será com Carla Bruni.
E adieu, eleitorado francês.


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