São Paulo, domingo, 13 de fevereiro de 2005 |
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Em "O Código dos Códigos", o canadense Northrop Frye desmonta a produção de mitos e metáforas da Bíblia e as imagens que ela forneceu a toda a literatura do Ocidente A mãe de todas as histórias
FÁBIO DE SOUZA ANDRADE
Das estacas mais ou menos discretas, mas não ornamentais, que crava na expressão de autores tão diversos como o historiador Edward Gibbon [1737-1794] e o dramaturgo Samuel Beckett [1906-1989] ao alicerce sólido que oferece a obras como as de Dante ou Milton, sua presença, de vocação onívora e difusa, é um fato crítico decisivo, impossível de ignorar e dificílimo de abarcar. Mais do que um universo mitológico, a Bíblia é uma arca literária, um repositório de formas narrativas e simbólicas que todos, crentes e incréus, habitamos, visitamos e pilhamos, cotidiana e inadvertidamente. Tratá-la com os instrumentos da teoria e da crítica literária demanda cuidados e erudição incomuns, aliados a uma fantasia crítica que não faltou a Frye. A transformação da literatura bíblica no conjunto canônico de textos que hoje associamos à Bíblia custou séculos. Deu-se pela prolongada intervenção de múltiplos autores, anônimos ou não, e o resultado final não é uma expressão literária autotélica: destina-se primeiramente ao convencimento religioso e à sedimentação de um conjunto de normas e textos sagrados. Atento a esse dado essencial, Frye chegou a uma modalidade dupla de leitura que atende bem às peculiaridades do texto bíblico, no qual amplitude temática (cosmogonia, filogênese, ontogênese, história de um povo, representação de destinos individuais, escatologia) soma-se a uma extrema complexidade formal. Não se trata apenas da mescla entre verso e prosa, por exemplo, mas do registro vivo de momentos diversos da história das possibilidades expressivas da linguagem literária, ora mais apoiada na força mito-poética da metáfora, ora nas articulações lógicas, metonímicas, do discurso. A partir de dois eixos fundamentais a qualquer texto -o mito, tomado como seqüência ordenada de palavras, e a metáfora, linguagem de sentido transposto-, Frye organiza seu olhar crítico sobre o Livro em dois grandes planos, que se entrecruzam e combinam. Concebe, primeiramente, a unidade da Bíblia enquanto um "mito gigantesco, narrativa que se estende sobre a totalidade do tempo". Mãe de todas as histórias, essa narrativa arquetípica deixa-se representar espacialmente na forma de uma parábola invertida. Estrutura em "u" Traz uma personagem-protagonista, a própria humanidade, que parte de uma situação paradisíaca, fora dos limites temporais e espaciais, cai em desgraça, submetendo-se a uma série de padecimentos e falsas superações desse novo estado, até que a segunda vinda do messias, o Apocalipse, devolve os homens à condição feliz inicial. A oscilação entre dor e falsas conciliações até a remissão final, "divina comédia", é construída de forma a coincidir em parte com a história do povo eleito. A Bíblia ao mesmo tempo expressa, encarna, racionaliza e, para fins ideológicos, distorce fatos e processos da organização secular desse povo, cuja expressão religiosa condensa. O importante a ressaltar é que esses elementos estão submetidos a uma rigorosa ordem simbólica e narrativa, na qual se evidenciam as simetrias e a mão anônima dos responsáveis por sua cristalização canônica de maneira a construí-la de modo mais eficaz possível do ponto de vista do convencimento. Assim, como mostra Frye, desde Adão, Noé e o dilúvio, Moisés e o mar Vermelho, o cativeiro babilônio e a reconstrução do Templo, enfim, todas peripécias e reviravoltas enfrentadas pelo povo de Israel não fazem senão reproduzir em pequena escala o grande "u" que caracteriza estruturalmente a narrativa maior. O encadeamento em palimpsesto, labirinto de ecos, intensifica o rendimento estético de cada uma das histórias. As amarras unitárias do texto bíblico não se esgotam no desenvolvimento de um esquema narrativo. É possível buscá-las também na organização sistemática de seu universo imagético, igualmente sustentado pela contínua remissão interna. O mecanismo de perpétuo espelhamento simbólico das imagens faz com que, mesmo relativamente autônomas, encarnem um sentido que não se dá a conhecer por completo em nenhuma delas e que tampouco se esgota numa chave interpretativa inequívoca, um sentido geral segundo mais importante, a que projetivamente estivessem vinculadas. Segundo o autor de "Anatomia da Crítica", duas grandes famílias enfeixam as metáforas bíblicas: a apocalíptica e a demoníaca. As imagens que fazem parte do primeiro grupo correspondem a visões do paraíso, evocando um estado mítico de realização plena do homem, anterior à queda. Quando não registram essa nostalgia do Éden, são visões de sua futura e necessária restauração, central à filosofia da história judaico-cristã. Já as demoníacas ocupam o pólo oposto, ora cristalizando a privação e o sofrimento na vida dos homens na Terra, ora representando uma conciliação enganosa, um simulacro do paraíso. Codependência das personagens O jogo de contrapontos que se abre a partir dessa classificação é notável, revelando, por exemplo, o grau de codependência entre figuras bíblicas do feminino tão diversas como Eva, a Virgem Maria, a Grande Prostituta ou a Noiva do Cântico dos Cânticos. Mas a verdadeira pregnância deste livro não se esgota na hermenêutica da Bíblia. Ela se impõe porque somos criaturas de livros que, queiram ou não, respondem a esse "código dos códigos" e, por essa razão, o livro de Frye nos modifica, para melhor, enquanto leitores. Fábio de Souza Andrade é professor de teoria literária na USP, autor de "Samuel Beckett - O Silêncio Possível" (Ateliê) e "O Engenheiro Noturno - A Lírica Final de Jorge de Lima" (Edusp). Texto Anterior: + livros: Crimes fatais de redação Próximo Texto: + livros: O mal de Bartleby Índice |
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