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Ponto de fuga
Não basta ser durão
JORGE COLI
COLUNISTA DA FOLHA
Vou levantar-me e ir agora, e vou-me para Innisfree,/ E lá farei uma
choça com barro e vimes torcidos/
(...) /E lá vou achar a paz, paz que
pinga devagar." É assim que, em 1893, cantava W.B. Yeats a sua Pasárgada modesta,
na tradução de Paulo Vizioli ("A Ilha Lacustre de Innisfree", in Yeats, W. B., "Poemas", Cia. das Letras). Nos anos de 1970,
quando existiam ainda belas utopias, podia-se acreditar que afinidades eletivas fossem capazes de criar laços mais fortes que
os autorizados pela sociedade, pelas leis,
acima da família, para além das convenções. Sociedade, leis, família, convenções
eram sentidos como desumanos. Sonhava-se com comunidades felizes, assentadas sobre a generosidade e a liberdade de cada
um, fora do alcance das injustiças oficiais.
Ao caos do mundo, Clint Eastwood opôs,
em "Josey Wales - O Fora da Lei" (1976),
um grupo de bons párias e marginais. No
final do filme, o bando encontra um refúgio, bolha protetora onde podem viver ao
abrigo. Clint Eastwood, hoje, ainda acredita
nesses vínculos humanos, nascidos de convergências. Mas a utopia desmoronou. Havia, em seus filmes, um instrumento capaz
de restabelecer a justiça perdida: era o vingador. "Sobre Meninos e Lobos" (2003)
mostrou que a natureza dos crimes e erros
se encontra além das vinganças.
No atual "Menina de Ouro", a intensidade dos afetos é o que resiste aos infortúnios
mais terríveis. Afetos, aqui, não significam
atração sexual nem sentimentalismo. Eles
são regidos pela lealdade. É nisso que se refugiou o sentido profundamente ético do
diretor, sempre obsessivo. Felicidade, é outra coisa. Ela mora na nostalgia impossível
e poética da Innisfree que Eastwood recita
em seu último filme.
Luvas
A luta de boxe foi exaltada pela pintura
norte-americana. George Bellows deixou
algumas telas esplêndidas sobre o tema:
"Dempsey e Firpo", de 1924, é a mais conhecida e corresponde bastante ao heroísmo da vida moderna, imaginado por Baudelaire [1821-67]. A presença vigorosa do
boxe na cultura norte-americana invadiu o
cinema. Definiu quase um gênero, desenhou um herói popular, Rocky Balboa, e
permitiu obras-primas: "Touro Indomável", de Scorsese, "Cidade das Ilusões", de
John Huston, "Punhos de Campeão", de
Robert Wise, para lembrar apenas três, crepusculares. São lutadores fortes, são homens frágeis, são percursos angustiados
que dependem do próximo combate.
"Menina de Ouro" deriva do gênero para
melhor desviar-se dele. Não apenas porque
é uma boxeadora que irrompe num mundo masculino. Não também porque a decadência embebe tudo, menos a ela e à sua
energia. Mas, sobretudo, porque a luta não
importa mais. Se desde seus inícios Eastwood denunciava a sociedade injusta, agora ele se vê perplexo diante da fragilidade
humana. Não basta ser durão, decerto, e,
sobretudo, não basta vencer. Dentro do
"american way of life" existe um supremo
insulto: "loser", perdedor. Para Clint Eastwood, isso não tem o menor sentido. "Menina de Ouro" situa-se em outra esfera.
Toalha
Frankie Dunn é católico. Vai à missa todos os dias. Só quem carrega o peso de uma
grande culpa faz isso, comenta o padre.
Frankie, treinador de boxe, proprietário de
uma academia decadente em "Menina de
Ouro", é encarnado pelo próprio diretor do
filme. A atuação de Clint Eastwood é poderosa porque feita de matizes mínimos. Como nos personagens dos melodramas, ele
tem "um passado", que nunca se revela por
inteiro, porém. É difícil de carregar e amargar o presente. Vem sugerido por alusões
que emergem, breves e poucas, como que
de um fundo negro.
Banquinho
No meio masculino do boxe, Clint Eastwood insere sua protagonista, que se torna
estrela. Na dureza dos combates ele insinua
a comoção do melodrama. O filme é lacônico, concentrado, as cores são discretas, homogêneas, dosadas. A empatia para com os
sentimentos cresce nos silêncios, na discrição, para ultrapassá-los, quando o espectador atinge, por intuições não ditas, pulsações profundas e dolorosas.
Jorge Coli é historiador da arte.
e-mail: jorgecoli@uol.com.br
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