São Paulo, domingo, 13 de março de 2005

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A tela quente da África

Com quase 40 anos, festival de cinema de Burkina Fasso luta contra a precariedade para se manter vivo

LYDIA POLGREEN

Com as nuvens de poeira geradas por uma caótica multidão de motonetas e nem uma gota de mar à vista, esta antiga capital do reino mossi não tem nada em comum com Cannes e a Côte d'Azur, na França. O sol impiedoso que provavelmente abalaria o entusiasmo do mais ardente cinéfilo serve como lembrete de que estamos longe, muito longe, das montanhas de Park City [EUA], que abriga o festival Sundance de cinema.
Não importa. As faixas do lado de fora do minúsculo aeroporto nacional dizem tudo: bem-vindo à capital do cinema africano.
No final de fevereiro, em todos os anos ímpares, as estrelas mais brilhantes do cinema e da TV africanos, milhares de fãs e até mesmo um e outro astro de Hollywood se reúnem nessa capital modesta e poeirenta.
"Como diz a Bíblia, o homem não vive só de pão", afirma Baba Hama, secretário geral do festival. "O cinema está no coração da cultura africana, e não se pode escolher entre comida e cultura -ambas são necessárias para viver."
O Fespaco -o nome é o acrônimo francês para Festival de Cinema Pan-Africano de Uagadugu [Burkina Fasso]- de certa forma representa um esforço de relações africanas da maior escala, um evento complexo envolvendo uma imensa audiência internacional organizado por um país empobrecido e sem saída para o mar, antiga colônia francesa que ocupa posições baixas em todas as listas de indicadores de bem-estar humano.
No Independence, o hotel decadente que os cineastas participantes do festival preferem, debates apaixonados e movidos a cerveja sobre o futuro do cinema africano ecoaram durante toda a semana, refletindo não apenas as tensões usuais que cineastas enfrentam em toda parte, entre arte e comércio, entre acessibilidade e expressão artística, mas também algumas questões essenciais que a África enfrenta hoje.
Numa mesa, horas antes, o sol que brilhava entre a poeira fina trazida pelo vento do Saara, um grupo de diretores e atores debatia se os cineastas africanos tinham a obrigação de funcionar como ativistas sociais ou se deveriam ficar livres para realizar filmes puramente artísticos.
"O cinema é a linguagem com a qual exploramos nosso passado e futuro", disse Jean-Marie Teno, cineasta camaronês.
Mas, quase 40 anos depois do estabelecimento do festival, muitos cineastas estão considerando o que, exatamente, o Fespaco realizou.
Sempre prejudicado por problemas logísticos, neste ano as dificuldades foram especialmente sérias. Os problemas começaram durante a cerimônia de abertura, quando uma grande multidão que tentava participar do evento gratuito acabou perdendo o controle e, no tumulto, duas crianças foram mortas. Pelo menos uma dúzia de filmes deixou de ser exibida ou teve suas seções adiadas por problemas de equipamento.
Mais sonolenta das capitais da África Ocidental, Uagadugu se agita muito durante o Fespaco. Mas sua infra-estrutura claramente não é capaz de atender adequadamente ao fluxo de 4.000 visitantes.
"É um castelo construído no ar", disse Cherif Keita, cineasta de Mali cujo documentário sobre John Dube, o fundador do Congresso Nacional Africano, da África do Sul, seria exibido durante o festival. Uma multidão lotou a sala de exibição, e, entre os presentes, estava o neto de Dube, que voou especialmente a Uagadugu a pedido do presidente sul-africano Thabo Mbeki.

Sem audiência interna
De fato, para o cinema africano, esse é o melhor dos tempos e o pior dos tempos. Os filmes africanos se saíram muito bem em outros festivais. Na atual temporada, um trabalho angolano chamado "O Herói", sobre um mutilado na guerra civil de 40 anos que afligiu o país, foi premiado no Sundance.
A florescente indústria cinematográfica sul-africana também obteve destaque -uma reinterpretação do musical "Carmem", de Georges Bizet, conquistou o Festival de Cinema de Berlim, e um filme em zulu sobre uma mulher portadora de HIV foi indicado ao Oscar.
Pela primeira vez um filme sul-africano, "Drum", venceu o principal prêmio do Fespaco, o cobiçado garanhão dourado de Yennenga. No entanto, a despeito de toda essa atenção, os filmes africanos não atingem a audiência na África.
Na falta de uma rede real de distribuição para os filmes, um cinéfilo africano tem mais chance de assistir ao último filme de Jackie Chan do que a qualquer coisa feita em seu continente. Em Uagadugu, os cartazes dos sucessos de Hollywood foram recobertos apressadamente com pôsteres de filmes locais, nas salas do festival. Mas, tão logo o Fespaco se encerre, dizem os locais, o cinema dos EUA reocupará seu espaço.
"Levar os filmes africanos à audiência africana continua a ser um grande obstáculo", diz Zezé Gamboa, diretor de "O Herói", que ainda não foi exibido em sua Angola natal. "Não há como colocá-los nas salas de exibição, e alguns países nem têm salas de exibição."
Esforços para melhorar a distribuição estão em curso, mas levarão tempo e custarão dinheiro. E dinheiro não é fácil de encontrar em países que mal conseguem se alimentar. É isso que torna os oito dias do Fespaco em Uagadugu tão essenciais, diz Zola Maseko, cujo filme sobre um jornalista que conduz uma campanha contra o apartheid, nos anos 50, conquistou o grande prêmio do evento.
"O cinema africano precisa mostrar os africanos aos africanos", disse Maseko. "E é por isso que lutamos."


Este texto foi publicado originalmente no "New York Times".
Tradução de Paulo Migliacci.


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