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A tela quente da África
Com quase 40 anos, festival de cinema de Burkina Fasso luta contra a precariedade para se manter vivo
LYDIA POLGREEN
Com as nuvens de poeira geradas por uma caótica multidão de motonetas e nem
uma gota de mar à vista, esta
antiga capital do reino mossi não
tem nada em comum com Cannes e
a Côte d'Azur, na França. O sol impiedoso que provavelmente abalaria
o entusiasmo do mais ardente cinéfilo serve como lembrete de que estamos longe, muito longe, das montanhas de Park City [EUA], que abriga o festival Sundance de cinema.
Não importa. As faixas do lado de
fora do minúsculo aeroporto nacional dizem tudo: bem-vindo à capital
do cinema africano.
No final de fevereiro, em todos os
anos ímpares, as estrelas mais brilhantes do cinema e da TV africanos,
milhares de fãs e até mesmo um e
outro astro de Hollywood se reúnem
nessa capital modesta e poeirenta.
"Como diz a Bíblia, o homem não
vive só de pão", afirma Baba Hama,
secretário geral do festival. "O cinema está no coração da cultura africana, e não se pode escolher entre comida e cultura -ambas são necessárias para viver."
O Fespaco -o nome é o acrônimo
francês para Festival de Cinema
Pan-Africano de Uagadugu [Burkina Fasso]- de certa forma representa um esforço de relações africanas da maior escala, um evento
complexo envolvendo uma imensa
audiência internacional organizado
por um país empobrecido e sem saída para o mar, antiga colônia francesa que ocupa posições baixas em todas as listas de indicadores de bem-estar humano.
No Independence, o hotel decadente que os cineastas participantes
do festival preferem, debates apaixonados e movidos a cerveja sobre o
futuro do cinema africano ecoaram
durante toda a semana, refletindo
não apenas as tensões usuais que cineastas enfrentam em toda parte,
entre arte e comércio, entre acessibilidade e expressão artística, mas
também algumas questões essenciais que a África enfrenta hoje.
Numa mesa, horas antes, o sol que
brilhava entre a poeira fina trazida
pelo vento do Saara, um grupo de diretores e atores debatia se os cineastas africanos tinham a obrigação de
funcionar como ativistas sociais ou
se deveriam ficar livres para realizar
filmes puramente artísticos.
"O cinema é a linguagem com a
qual exploramos nosso passado e futuro", disse Jean-Marie Teno, cineasta camaronês.
Mas, quase 40 anos depois do estabelecimento do festival, muitos cineastas estão considerando o que,
exatamente, o Fespaco realizou.
Sempre prejudicado por problemas logísticos, neste ano as dificuldades foram especialmente sérias.
Os problemas começaram durante a
cerimônia de abertura, quando uma
grande multidão que tentava participar do evento gratuito acabou perdendo o controle e, no tumulto, duas
crianças foram mortas. Pelo menos
uma dúzia de filmes deixou de ser
exibida ou teve suas seções adiadas
por problemas de equipamento.
Mais sonolenta das capitais da
África Ocidental, Uagadugu se agita
muito durante o Fespaco. Mas sua
infra-estrutura claramente não é capaz de atender adequadamente ao
fluxo de 4.000 visitantes.
"É um castelo construído no ar",
disse Cherif Keita, cineasta de Mali
cujo documentário sobre John Dube, o fundador do Congresso Nacional Africano, da África do Sul, seria
exibido durante o festival. Uma multidão lotou a sala de exibição, e, entre
os presentes, estava o neto de Dube,
que voou especialmente a Uagadugu
a pedido do presidente sul-africano
Thabo Mbeki.
Sem audiência interna
De fato, para o cinema africano, esse é o melhor dos tempos e o pior
dos tempos. Os filmes africanos se
saíram muito bem em outros festivais. Na atual temporada, um trabalho angolano chamado "O Herói",
sobre um mutilado na guerra civil de
40 anos que afligiu o país, foi premiado no Sundance.
A florescente indústria cinematográfica sul-africana também obteve
destaque -uma reinterpretação do
musical "Carmem", de Georges Bizet, conquistou o Festival de Cinema
de Berlim, e um filme em zulu sobre
uma mulher portadora de HIV foi
indicado ao Oscar.
Pela primeira vez um filme sul-africano, "Drum", venceu o principal prêmio do Fespaco, o cobiçado
garanhão dourado de Yennenga. No
entanto, a despeito de toda essa
atenção, os filmes africanos não
atingem a audiência na África.
Na falta de uma rede real de distribuição para os filmes, um cinéfilo
africano tem mais chance de assistir
ao último filme de Jackie Chan do
que a qualquer coisa feita em seu
continente. Em Uagadugu, os cartazes dos sucessos de Hollywood foram recobertos apressadamente
com pôsteres de filmes locais, nas salas do festival. Mas, tão logo o Fespaco se encerre, dizem os locais, o cinema dos EUA reocupará seu espaço.
"Levar os filmes africanos à audiência africana continua a ser um
grande obstáculo", diz Zezé Gamboa, diretor de "O Herói", que ainda
não foi exibido em sua Angola natal.
"Não há como colocá-los nas salas
de exibição, e alguns países nem têm
salas de exibição."
Esforços para melhorar a distribuição estão em curso, mas levarão
tempo e custarão dinheiro. E dinheiro não é fácil de encontrar em países
que mal conseguem se alimentar. É
isso que torna os oito dias do Fespaco em Uagadugu tão essenciais, diz
Zola Maseko, cujo filme sobre um
jornalista que conduz uma campanha contra o apartheid, nos anos 50,
conquistou o grande prêmio do
evento.
"O cinema africano precisa mostrar os africanos aos africanos", disse
Maseko. "E é por isso que lutamos."
Este texto foi publicado originalmente no
"New York Times".
Tradução de Paulo Migliacci.
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