São Paulo, domingo, 13 de março de 2005

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+ cinema

De Hattie McDonald, em "E o Vento Levou", a Spike Lee e Morgan Freeman, que ganhou um Oscar em 2005, presença de atores e diretores negros nos EUA se consolida e incorpora a perspectiva feminista e interétnica

Negritude em Hollywood

WALNICE NOGUEIRA GALVÃO
ESPECIAL PARA A FOLHA

Avulta a premiação do Oscar a atores negros: a Jamie Foxx e Morgan Freeman, em 2005; a Halle Berry e Denzel Washington (ambos de feições impecavelmente caucásicas), mais um honorário a Sidney Poitier, em 2002. Fica difícil lembrar que o negro estreou como estuprador de brancas em filme fundador da arte, o épico patriótico do cinema mudo "Nascimento de uma Nação" (1915, David W. Griffith).
Hoje, toda cena de tribunal mostra juízas negras e abundam os "buddy movies" interétnicos, tirando sua graça das fricções raciais entre os parceiros. A incorporação da perspectiva feminina não é de menosprezar: Toni Morrison e Alice Walker tiveram livros adaptados, Halle Berry estrelou e produziu, com direção de Martha Coolidge, a cinebiografia de Dorothy Dandridge [1922-65 -cantora e primeira atriz indicada ao Oscar de melhor atriz].


Houve passos memoráveis, desenhando uma escalada de conquistas que tornam impensável, hoje, um filme racista


O inédito Oscar de coadjuvante para Hattie McDonald em "E o Vento Levou" (1939) ainda santificava o estereótipo, com trunfa, enxúndia e rolar de olhos exorbitados. Entre esses extremos, houve passos memoráveis, desenhando uma escalada de conquistas, paralelas ao movimento dos direitos civis, tornando impensável um filme racista.
E, finalmente, surgiram diretores negros, garantindo o vulto do investimento e o controle sobre o filme. A partir do primeiro deles, o lendário Melvin van Peebles, com "The Story of a Three-Day Pass" (1968), já há um punhado ilustre: Robert Townsend, os Wayans e os Hughes, Mario van Peebles, John Singleton, Forest Whitaker. E aquele que transformou o filme em arma de luta, Spike Lee.
Um experimento avançado foi "Carmen Jones" (Otto Preminger, 1954), adaptação da ópera de Bizet só com negros, em que Dorothy Dandridge contracenou com o belo Harry Belafonte.
A atriz faria jus à primeira indicação ao Oscar de um protagonista negro, mas quem levou foi a loura de olhos azuis Grace Kelly. Dos primeiros anti-racistas é "O Sol É para Todos" (1962, Robert Mulligan), com Gregory Peck vivendo um advogado que defende um negro acusado de estupro num vilarejo do Sul.
Seria Sidney Poitier o primeiro a ganhar o Oscar em papel principal, por "Uma Voz nas Sombras" (1964, Ralph Nelson), e sua distinção natural daria credibilidade a dois filmes de 1967. "No Calor da Noite" (Norman Jewison) pôs em cena o primeiro policial negro, do FBI. Um comparsa branco, debochando do nome chique, Virgil, pergunta-lhe sarcasticamente: "É assim que o chamam em Chicago, Virgil?"; e este responde, com dureza: "Em Chicago me chamam de Mister Tibbs", em réplica que faria história. E "Adivinhe Quem Vem para Jantar" (Stanley Kramer) mostra os apuros do casal liberal e progressista ao ser pilhado pela própria filha, a qual nem avisou que o noivo era negro.
É de 1969 um extraordinário filme independente -ousadia que jamais repetiria- de Brian de Palma, "Hi, Mom!", sobre a encenação de uma peça inspirada em "Les Nègres", de Genet, em que os atores envolvem os espectadores brancos e bem-pensantes usando táticas fascistas de intimidação, pintando-os de negro e a si mesmos de branco.

Jargão de gueto
Enfim, "Shaft" (1971, Gordon Parks) desencadeou a onda da "blaxplotation" dos anos 70, calculando-se em 200 os filmes de baixo nível então feitos, com música negra, violência e jargão de gueto. O detetive particular John Shaft ganha escritório com nome na porta, primeiro de sua cor a receber a honra de tal profissão de herói. Teria muitas seqüências e se tornaria série de TV. A visão original de Martin Ritt se faria presente em "Conrack" (1974), em que um professor de primário vai ensinar crianças negras numa ilha da Carolina do Sul.
Mas houve outros, como "Mississippi em Chamas" (1988, Alan Parker), em que dois agentes do FBI, organismo que combateu ferozmente a ascensão do poder negro, acabam sendo os heróis justiceiros; por isso, [a crítica norte-americana] Pauline Kael chamou o filme de "perverso".
Mas o diretor se redimiria, realizando em 1990 "Assassinato no Mississippi", sobre a investigação, processo e condenação, 30 anos depois, do assassino do militante dos direitos civis Medgar Evers, em Memphis, nos idos de 60. Anunciados pelo êxito de "A Cor Púrpura" (1985, Steven Spielberg), do livro de Alice Walker, os anos 90 trariam uma onda de filmes notáveis pela qualidade, que iriam desde os fastos das lutas pela emancipação e seus ícones Malcolm X, Martin Luther King, os Panteras Negras, Muhammad Ali, até as ficções científicas sobre supremacia negra e sujeição branca.
A essa altura, Denzel Washington já pode protagonizar o nobre branco de "Muito Barulho por Nada" (1993, Kenneth Brannagh), de Shakespeare bem como Peter Brook escalar um negro para o papel de Hamlet no palco, como se viu no Brasil há dois anos. O usual era que um branco de cara tisnada fizesse o Otelo, ao que nem Orson Welles se furtou.
Depois de vestir de preto o arquivilão Darth Vader em "Guerra nas Estrelas" (1977), o diretor George Lucas incluiria heróis afro-descendentes nas continuações.
Contribuindo, o injustiçado "Politicamente Incorreto" (1998, Warren Beatty) daria uma aula de chicana eleitoral, em que um senador democrata em campanha abre o jogo sobre como engambelar os negros.

Adesões equivocadas
O cinema radical de Spike Lee vota-se a questões étnicas substantivas. Entre tantos outros, assim foi "Malcolm X", baseado numa insuperável autobiografia, narrando a conversão do gângster em líder espiritual. Exemplar é "A Hora do Show" (2000), que satiriza um programa de televisão cujo roteirista se inspira nos "minstrel shows" de antanho, procedendo à irrisão sistemática dos negros, que são estúpidos, roubam galinhas, adoram melancia. Apesar disso, o programa se torna "cult" e deflagra uma moda de adesões equivocadas à negritude.
O filme termina com uma antologia histórica do cinema, com os intérpretes mais queridos camuflados com os signos da rolha queimada na tez, descomunal boca escarlate e luvas brancas freqüentes na fase áurea do musical. Os desenhos animados incluem canibal africano cozinhando missionário em caldeirão, calunguinhas com osso atravessado no alto da carapinha e, para coroar, uma paródia de "A Cabana do Pai Tomás" em que Eliza foge com o nenê nos braços enquanto atravessa o rio saltando de um cubinho de gelo para outro. Deixam o espectador com as faces em fogo por tê-los assistido sem se indignar.
Credita-se a Spike Lee essa enciclopédia da má-fé racista nas artes do desempenho e seu potencial de manipulação das consciências.

Walnice Nogueira Galvão é professora titular de literatura na USP e autora de, entre outros livros, "No Calor da Hora" e "Guimarães Rosa" (Publifolha).


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