São Paulo, domingo, 13 de março de 2005 |
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice
O papa paradoxal
Recém-lançado no Brasil,
"João Paulo 2º",
de Bernard Lecomte,
defende que a luta
do papa pela liberdade
política, que
culminou na queda
do comunismo,
se opõe a seu extremo
conservadorismo
em questões
morais e sexuais
Quando afirmo que se trata de uma obra magistral, é no sentido de uma arquitetura bem projetada e balanceada. Apolineamente harmoniosa. Tem exatamente 30 capítulos e 60 fotos (contando a da capa). O número par de capítulos se distribui simetricamente em duas partes bem equilibradas, cabendo a cada uma um número também par de capítulos (14 e 16). Duas partes, vejam bem, é "comme il faut" na França, se o que se visa é uma obra perfeita -racionalidade "oblige". O título da primeira parte nomeia exatamente nestes termos -"Um Papa que Veio da Polônia"- o ineditismo mor da vida dessa "personalidade fora do comum". E assim, matricial, prenuncia já na abertura da primeira parte toda uma série de ineditismos "woitilianos" no trono pontifício, os quais na verdade serão objeto da segunda parte. E como a querer nos ajudar desde o começo a interpretar, mais do que apenas acompanhar, a trajetória peculiar deste que é um dos últimos "gigantes do século 20", logo de saída Lecomte nos leva até as origens familiares de Karol Wojtyla, apresentando um por um seus antepassados paternos e maternos. Não sem primeiro aguçar nossa curiosidade com a seguinte surpresa: ele é um papa sem família. "Esse papa que veio de um país onde cada casal costuma ter cinco ou seis filhos, que passaria cerca de 25 anos defendendo encarniçadamente os valores da família, obcecado pela questão do casamento e dos filhos, esse papa, que ainda não completou 60 anos, não tem pai nem mãe nem irmão nem irmã nem tio nem tia! E, quando escreve aos seus, dirige-se a uma distante e obscura prima nascida numa grande aldeia do sul da Polônia, berço histórico de uma família que em 1978 já não passa de lembrança" (pág.17). A prima Felicja era toda a família que lhe restava no momento em que assumiu o papado. "Por motivos muitas vezes ligados à saúde frágil, todos os demais representantes da geração de seus avós, de seus pais e até mesmo da sua própria já morreram" (pág. 22). Escrita aguçada O papa da família não tem família! Pronto, o bom narrador já buliu com a nossa curiosidade, quando não com a nossa compaixão. A escrita de Lecomte é assim. Interessante, aguçada e estimulante, percorrendo sem dificuldade nem fastio tempos variados e bem cadenciados nos espaços muito bem distribuídos e melhor combinados desta narrativa biográfica em duas metades quase iguais e bem distintas. E olhe que biografia é um gênero literário engessado por definição, dadas as injunções da cronologia. Pois Lecomte lida bem com essa rigidez inerente ao gênero. Na primeira parte, cobre passo a passo a sucessão cronológica das principais etapas da vida do polonês Karol Wojtyla para em seguida surpreender o leitor ao embaralhar o encadeamento cronológico na segunda parte, justamente quando passamos a acompanhar a vida de um papa bem mais original que o esperado. Agora a montagem é outra. Em vez de percorrer-lhe os 25 anos de papado em seu desenrolar diacrônico, Lecomte opta por dispor temas e fatos paralelamente, de propósito desordenando o modo cronológico. Escolhe um tema e em torno dele aglutina os eventos, desfia seus antecedentes e vai até suas conseqüências mais imediatas, aquelas que a falta de recuo histórico lhe permite abarcar com segurança interpretativa. É aí que a lógica própria do gênero biográfico que se tentava reprimir retorna, limitando-lhe a visada a conseqüências e desdobramentos "puramente" biográficos. Uma pena. Imagem imponente Mas, no fim, tudo se encaixa e se arredonda, é minha sensação, e João Paulo 2º só sai engrandecido dessa extensa biografia que nós brasileiros vamos começar a ler durante a pior fase de sua saúde. Os sinais mais graves e óbvios de um irreversível debilitamento começaram na verdade faz uns dois anos, coincidindo em cheio com a comemoração de seu jubileu de prata e o lançamento dessa biografia na França. Em português o livro sai com 784 páginas de texto e mais 32 de anexos variados. Ao todo, quase 800 páginas. Apesar do exagero, a leitura corre solta e agradável, mesmo esbarrando aqui e ali em falhas óbvias de tradução dos termos técnicos. Há falhas graves, sim, sobretudo na transposição direta daqueles termos que, peculiares à hierarquia eclesiástica e à parafernália litúrgica do catolicismo romano, variam, no entanto, no uso lingüístico dos católicos de cada país. Faltou esse cuidado mínimo. Faltou na verdade pagar um bom revisor técnico. Assim, se a leitura se mantém aprazível é porque a escrita descomplicada e envolvente desse tarimbado jornalista consegue o milagre de imunizar, mesmo o maltratado leitor brasileiro, contra esse tipo de ruindade editorial. Que no Brasil do século 21 já não tem mais desculpa. Ler em 2005 uma biografia do papa assim extensa, detalhista, condimentada com fotos escolhidas a dedo por sua significação biográfica ou histórica e seu potencial de impacto sentimental, ler e ver tudo isso num momento em que as notícias e atualidades da TV e da internet se fixam na imagem mais atual do papa, que o projeta alquebrado e enfermiço, quase à beira da agonia, ajuda bem a recompor na memória aquela imagem imponente de um cardeal polonês de postura altiva e voz possante que foi eleito papa muito jovem no final dos anos 70. Tão jovial e saudável -alguém ainda se lembra?- que imediatamente mandou construir uma piscina no Vaticano. Que substituiu a antiga liteira de carregar papa pelo potente jipe Toyota repaginado como "papamobile". Que quis vestir casulas desenhadas por nomes da alta-costura. Que, todo flexível, beijava o chão dos países que visitava. Que "esquiava feito uma andorinha" e assim por diante. São detalhes como esses, indispensáveis na composição de uma figura humana insólita e incomparável, que fazem a diferença de um jornalista para um historiador. Isso não impede que Lecomte nos presenteie também com outras tantas precisões e minúcias especificamente historiográficas, dignas do mais irrepreensível pesquisador em disciplina histórica. O relato que faz das origens familiares de Karol Wojtyla, que já mencionei, é um primor de reconstituição genealógica. Some-se a esse apego à fidelidade e à precisão na reconstituição dos fatos a confecção de duas cronologias, uma da vida de Wojtyla até sua eleição papal, em 16 de outubro de 1978, e a outra, do pontificado de João Paulo 2º até o 25º aniversário de sua eleição, em 2003. E, de quebra, a lista das viagens (mais de cem) do primeiro turista da história dos papas. Só podemos concluir que estamos diante de um trabalho que é sério e quer ser levado a sério. A obra "João Paulo 2º - Biografia", de Bernard Lecomte. Trad. Clóvis Marques. 784 págs., R$ 69,90. Ed. Record (tel. 0/xx/ 21/2585-2000). Antônio Flávio Pierucci é sociólogo e professor da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da USP. É autor de "A Magia" (Publifolha) e "O Desencantamento do Mundo" (34), entre outros livros. Texto Anterior: Diáspora africana é tema de mostra em Salvador Próximo Texto: Para Cornwell, João Paulo 2º é autoritário Índice |
Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress. |