São Paulo, domingo, 13 de março de 2005

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O papa paradoxal

Recém-lançado no Brasil, "João Paulo 2º", de Bernard Lecomte, defende que a luta do papa pela liberdade política, que culminou na queda do comunismo, se opõe a seu extremo conservadorismo em questões morais e sexuais

por Antônio Flávio Pierucci

Excelente esta biografia de João Paulo 2º. No que concerne aos fatos, ouso dizer, "quase" completa. Pouca coisa ficou de fora: sintomaticamente, os fracassos.
Penso no estado inacabado de alguns de seus mais acalentados projetos, inconclusos de resto não por falta de tempo, já que seu pontificado tem sido excepcionalmente longo. A reconciliação com os judeus, por exemplo. Buscada desde os primeiros meses do governo de um papa que logo fez questão de se dizer "amigo dos judeus", até hoje não engrenou.
Penso também nos efeitos perversos -ou conseqüências não desejadas na esfera religiosa- de ações estratégicas bem-sucedidas no plano da política internacional. Exemplo? Esse que o biógrafo destaca desde logo como sua maior proeza política: o papel-chave que desempenhou na queda do comunismo.
Ocorre que, se o fim do comunismo na Europa de um lado restaurou a sonhada liberdade religiosa nos países da "cortina de ferro", Polônia incluída, de outro essa liberdade veio embrulhada em um neoliberalismo de consumo que na verdade "libera" as pessoas também, mas não por último, de sua submissão comportamental à moral católica.
Penso enfim, mas acima de tudo, na moral sexual. Área vital em que o reacionarismo impenitente de João Paulo 2º no plano dos valores morais se revelou um desastre. Basta citar esta sua piedosa malvadeza: proibir o uso da camisinha em tempos de urgência humanitária na prevenção da Aids.
Diferentemente do comunismo, o consumismo capitalista excita sexualmente as pessoas, já adivinhava Wilhelm Reich [1897-1957] nos anos 30, assim como ajuda a desatar os laços de pertença confessional à religião de origem. Efeitos nada bem-vindos para um papa tão conservador. Sobretudo se levarmos em conta suas posições obstinadamente tradicionalistas -que as feministas (muitas delas católicas) têm classificado de "fundamentalistas"- na manutenção de normas petreamente contrárias ao aborto de qualquer espécie, ao sacerdócio das mulheres, à revisão do celibato dos padres e, é de pasmar, à pílula anticoncepcional até hoje.

"Descatolicização"
Por causa de sua oposição pusilânime à emancipação da pessoa em matéria de gênero e sexualidade, em especial aos "direitos reprodutivos", dos quais as mulheres mais pobres tanto precisam, muitos católicos e católicas têm se afastado bem chateados da igreja em que nasceram, sentindo-se mal compreendidos, desconsiderados, abandonados por sua religião, ridículos até. Faz tempo que isso acontece.
A novidade está em que esse desencaixe libertador do indivíduo alastrou-se e hoje se conta em números demograficamente significativos também nos países pós-comunistas. Conseqüências não desejadas, santidade, a sociologia weberiana ensina que são ironias da história. Ou da vida.
É incontestável que estas últimas décadas -que por mal dos pecados coincidem com o longo pontificado de João Paulo 2º- têm sido marcadas por uma "descatolicização" acentuada e, mais recentemente, acelerada, notadamente nos países da Europa. Mas não só. Nem o "Brasil católico" fica atrás nessa evasão -basta uma vista de olhos no Censo 2000. E, tal como aqui, em vários países da "América católica", como a chamou Caetano Veloso, quando há crescimento católico, ele é insuficiente para sequer acompanhar a evolução demográfica.
Este livro saiu na França pela Gallimard em 2003. No jubileu de prata de sua chegada ao papado (16 de outubro de 1978), "o papa que veio da Polônia" ganhava de presente do apetite informativo com talento literário de Bernard Lecomte esta biografia magistralmente composta, fundamentada nas mais diversas fontes e ainda por cima bem escrita.
O autor foi por muito tempo jornalista do "La Croix", repórter do "L'Express" e redator-chefe do "Figaro Magazine". Especialista em Vaticano e Leste Europeu, com foco na Polônia, era inevitável que seu viés de bom jornalista -o amor pelos fatos- juntamente com seus conhecimentos de especialista, acrescidos de uma nutrida simpatia pelo primeiro papa polonês da história, o destinassem ao bom êxito nessa tarefa de fôlego em que se lançou com paixão indisfarçável e disciplina não menos: a de contar a história da vida e do pontificado (nada breves) de João Paulo 2º.


Para Lecomte, João Paulo 2º é um papa sem família


Quando afirmo que se trata de uma obra magistral, é no sentido de uma arquitetura bem projetada e balanceada. Apolineamente harmoniosa. Tem exatamente 30 capítulos e 60 fotos (contando a da capa). O número par de capítulos se distribui simetricamente em duas partes bem equilibradas, cabendo a cada uma um número também par de capítulos (14 e 16). Duas partes, vejam bem, é "comme il faut" na França, se o que se visa é uma obra perfeita -racionalidade "oblige".
O título da primeira parte nomeia exatamente nestes termos -"Um Papa que Veio da Polônia"- o ineditismo mor da vida dessa "personalidade fora do comum". E assim, matricial, prenuncia já na abertura da primeira parte toda uma série de ineditismos "woitilianos" no trono pontifício, os quais na verdade serão objeto da segunda parte.
E como a querer nos ajudar desde o começo a interpretar, mais do que apenas acompanhar, a trajetória peculiar deste que é um dos últimos "gigantes do século 20", logo de saída Lecomte nos leva até as origens familiares de Karol Wojtyla, apresentando um por um seus antepassados paternos e maternos. Não sem primeiro aguçar nossa curiosidade com a seguinte surpresa: ele é um papa sem família.
"Esse papa que veio de um país onde cada casal costuma ter cinco ou seis filhos, que passaria cerca de 25 anos defendendo encarniçadamente os valores da família, obcecado pela questão do casamento e dos filhos, esse papa, que ainda não completou 60 anos, não tem pai nem mãe nem irmão nem irmã nem tio nem tia! E, quando escreve aos seus, dirige-se a uma distante e obscura prima nascida numa grande aldeia do sul da Polônia, berço histórico de uma família que em 1978 já não passa de lembrança" (pág.17). A prima Felicja era toda a família que lhe restava no momento em que assumiu o papado. "Por motivos muitas vezes ligados à saúde frágil, todos os demais representantes da geração de seus avós, de seus pais e até mesmo da sua própria já morreram" (pág. 22).

Escrita aguçada
O papa da família não tem família! Pronto, o bom narrador já buliu com a nossa curiosidade, quando não com a nossa compaixão. A escrita de Lecomte é assim. Interessante, aguçada e estimulante, percorrendo sem dificuldade nem fastio tempos variados e bem cadenciados nos espaços muito bem distribuídos e melhor combinados desta narrativa biográfica em duas metades quase iguais e bem distintas.
E olhe que biografia é um gênero literário engessado por definição, dadas as injunções da cronologia. Pois Lecomte lida bem com essa rigidez inerente ao gênero.
Na primeira parte, cobre passo a passo a sucessão cronológica das principais etapas da vida do polonês Karol Wojtyla para em seguida surpreender o leitor ao embaralhar o encadeamento cronológico na segunda parte, justamente quando passamos a acompanhar a vida de um papa bem mais original que o esperado. Agora a montagem é outra.
Em vez de percorrer-lhe os 25 anos de papado em seu desenrolar diacrônico, Lecomte opta por dispor temas e fatos paralelamente, de propósito desordenando o modo cronológico. Escolhe um tema e em torno dele aglutina os eventos, desfia seus antecedentes e vai até suas conseqüências mais imediatas, aquelas que a falta de recuo histórico lhe permite abarcar com segurança interpretativa. É aí que a lógica própria do gênero biográfico que se tentava reprimir retorna, limitando-lhe a visada a conseqüências e desdobramentos "puramente" biográficos. Uma pena.

Imagem imponente
Mas, no fim, tudo se encaixa e se arredonda, é minha sensação, e João Paulo 2º só sai engrandecido dessa extensa biografia que nós brasileiros vamos começar a ler durante a pior fase de sua saúde. Os sinais mais graves e óbvios de um irreversível debilitamento começaram na verdade faz uns dois anos, coincidindo em cheio com a comemoração de seu jubileu de prata e o lançamento dessa biografia na França.
Em português o livro sai com 784 páginas de texto e mais 32 de anexos variados. Ao todo, quase 800 páginas. Apesar do exagero, a leitura corre solta e agradável, mesmo esbarrando aqui e ali em falhas óbvias de tradução dos termos técnicos. Há falhas graves, sim, sobretudo na transposição direta daqueles termos que, peculiares à hierarquia eclesiástica e à parafernália litúrgica do catolicismo romano, variam, no entanto, no uso lingüístico dos católicos de cada país. Faltou esse cuidado mínimo. Faltou na verdade pagar um bom revisor técnico.
Assim, se a leitura se mantém aprazível é porque a escrita descomplicada e envolvente desse tarimbado jornalista consegue o milagre de imunizar, mesmo o maltratado leitor brasileiro, contra esse tipo de ruindade editorial. Que no Brasil do século 21 já não tem mais desculpa.
Ler em 2005 uma biografia do papa assim extensa, detalhista, condimentada com fotos escolhidas a dedo por sua significação biográfica ou histórica e seu potencial de impacto sentimental, ler e ver tudo isso num momento em que as notícias e atualidades da TV e da internet se fixam na imagem mais atual do papa, que o projeta alquebrado e enfermiço, quase à beira da agonia, ajuda bem a recompor na memória aquela imagem imponente de um cardeal polonês de postura altiva e voz possante que foi eleito papa muito jovem no final dos anos 70. Tão jovial e saudável -alguém ainda se lembra?- que imediatamente mandou construir uma piscina no Vaticano. Que substituiu a antiga liteira de carregar papa pelo potente jipe Toyota repaginado como "papamobile". Que quis vestir casulas desenhadas por nomes da alta-costura. Que, todo flexível, beijava o chão dos países que visitava. Que "esquiava feito uma andorinha" e assim por diante.
São detalhes como esses, indispensáveis na composição de uma figura humana insólita e incomparável, que fazem a diferença de um jornalista para um historiador.
Isso não impede que Lecomte nos presenteie também com outras tantas precisões e minúcias especificamente historiográficas, dignas do mais irrepreensível pesquisador em disciplina histórica. O relato que faz das origens familiares de Karol Wojtyla, que já mencionei, é um primor de reconstituição genealógica.
Some-se a esse apego à fidelidade e à precisão na reconstituição dos fatos a confecção de duas cronologias, uma da vida de Wojtyla até sua eleição papal, em 16 de outubro de 1978, e a outra, do pontificado de João Paulo 2º até o 25º aniversário de sua eleição, em 2003. E, de quebra, a lista das viagens (mais de cem) do primeiro turista da história dos papas.
Só podemos concluir que estamos diante de um trabalho que é sério e quer ser levado a sério.
A obra
"João Paulo 2º - Biografia", de Bernard Lecomte. Trad. Clóvis Marques. 784 págs., R$ 69,90. Ed. Record (tel. 0/xx/ 21/2585-2000).

Antônio Flávio Pierucci é sociólogo e professor da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da USP. É autor de "A Magia" (Publifolha) e "O Desencantamento do Mundo" (34), entre outros livros.


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