São Paulo, domingo, 13 de março de 2005

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O estadista sinuoso

Em "Roosevelt", que sai no Brasil no dia 22, Roy Jenkins analisa como o presidente dos EUA que criou o "New Deal" aliou encanto e astúcia para governar seu país

por Fernando Henrique Cardoso

Apresentar um livro de Roy Jenkins sobre ninguém menos do que Roosevelt [1882-1945] é uma ousadia. Quem quer que haja lido a insuperável biografia de Churchill por lorde Jenkins ou seu "Gladstone" sabe que se está diante de um mestre lidando com gigantes. Mas não agüentei a tentação. Não a agüentei também por motivos pessoais, que trazem uma ponta de vaidade: foi lorde Jenkins, então chanceler de Oxford, quem me saudou, em 2002, quando recebi o grau de doutor honoris causa por aquela universidade.
Ao saudar-me, revelou um pouco de si e do porquê de seu interesse pelos grandes líderes políticos que biografou. Mencionou que eu (e nisso se deve ler a fina ironia inglesa a respeito do homenageado) consegui o que ele não conseguiu. Criou um partido na Inglaterra, o social-liberal, tentou ser primeiro-ministro e, com a vitória nas mãos, perdeu.
No almoço que se seguiu à solenidade ofereceu-me um exemplar do seu "Churchill" [lançado no Brasil pela Nova Fronteira] e conversamos um pouco mais sobre o tema do êxito e do fracasso em política. Winston Churchill [1874-1965], vencedor na Segunda Guerra, foi em seguida derrotado como primeiro-ministro...

Fontes mais escassas
Voltando ao Brasil, pus-me a ler, vagarosamente, as 800 páginas do livro que ganhara. Admirável. Lorde Jenkins o publicou quando tinha mais de 80 anos. Pensei comigo: é mais fácil ganhar eleições (depende mais do imponderável) do que escrever um livro com este talante. Eu não seria capaz. Para consolo, pensei, é bem verdade que a vida de Churchill está registrada não só na mídia e em seus próprios livros autobiográficos, como na imensa correspondência trocada entre ele, sua mulher, sua mãe, seus colegas, o que facilita a tarefa do biógrafo.
Hoje em dia, talvez os especialistas em ler os "discos rígidos" dos computadores, desde que sejam "experts" nos hieróglifos contemporâneos, a linguagem da internet, possam entrar na intimidade dos personagens que queiram biografar. Os simples escritores de poucas luzes computacionais não encontrarão a riqueza de material com que o biógrafo de Churchill se deparou. Consolo de despeitado...
Pois bem, não é que Roy Jenkins, aos 82 anos, retomou da pena para biografar alguém que, se é certo também já teve sua vida devassada de mil ângulos, não deixou extensa correspondência nem teve a pachorra tão gostosa de escrever sobre si próprio com a voracidade com que o fez Winston Churchill? E Roy Jenkins escreveu seu último livro de modo admirável. O entusiasmo do autor foi ceifado por essa megera que não respeita talentos: a morte o levou em plena criatividade [em 2003].
Nosso autor teve, entretanto, a sorte de encontrar alguém capaz de terminar o pouco que faltava de sua obra, o professor Richard Neustadt, da Universidade Harvard.

O político nato
Há inúmeras biografias de Franklin Delano Roosevelt. Algumas (das poucas que eu li) seguem o percurso do "Churchill" de Jenkins e buscam fontes primárias, rastreando toda informação possível que os familiares e colaboradores do grande norte-americano podem oferecer. Nessa veia encontra-se "Tempos Muito Estranhos" [ed. Nova Fronteira], da jornalista Doris Kearns Goodwin. Outros há que colocam Roosevelt na perspectiva da grande história.
Vêem-no como o paradigma do estadista virtuoso, não o digo moralmente, mas como o mestre do desempenho, que mais do que expressar o sentimento historicamente construído por um povo, desenha um futuro sorridente para a humanidade. Revigorado e de bem com a vida. Esse é notadamente o caso de Isaiah Berlin em seus dois ensaios admiráveis, "Winston Churchill in 1940" e "President Franklin Delano Roosevelt".
A presente biografia não segue nenhum desses dois modelos.
Nem é um livro farto em documentação nem pretende cotejar Roosevelt com outros líderes modelares e fazer dele um tipo ideal. Não obstante talvez nos ensine mais sobre a política de Roosevelt em suas poucas páginas do que muito do que já foi escrito sobre ele. É certo que Jenkins traça também o retrato humano de Roosevelt. Nem poderia deixar de fazê-lo, até porque, como notou Isaiah Berlin, desde Aristóteles se sabe que a história "é o que Alcebíades fez e sofreu".
Mas, "modus in rebus", é também, acrescento eu, o que os outros fizeram, pessoas simples ou grandes homens e mulheres, e o que o tempo consolidou desses feitos em instituições. Assim, não se esquecendo do que Roosevelt fez e sofreu, lorde Jenkins ilumina também o que os demais fizeram com Roosevelt, junto dele ou contra ele, e o que Roosevelt tentou mudar nas instituições, bem como o quanto elas resistiram ao doce encanto das ambigüidades e do futuro risonho que seus gestos, suas palavras, seu humor e seu jeito de ser, com chapéu à mão e piteira à boca, insinuavam.
No caso de Roosevelt o entorno familiar é parte indispensável do seu fazer. Nascido e educado nas alturas aristocráticas de uma família da Nova Inglaterra, assentada no norte do Estado de Nova York, em Hyde Park, mas sempre com apoio na mansão urbana da grande metrópole, freqüentando as grandes escolas ("college" em Harvard, licenciatura em leis na Columbia), sem deixar de pertencer ao círculo dos "knickerbockers" -alusão a antigo clube da Quinta Avenida-, que naquela época distinguia os bem-nascidos, casou-se "em família".
Sua prima em segundo grau, Eleanor, que teve papel tão destacado na vida americana, era sobrinha de Theodore Roosevelt [1858-1919], o primeiro presidente da família. Provinham todos de remota origem holandesa, mesclados com troncos anglo-saxões, também de alta estirpe. A mãe de Roosevelt, Sara Delano, rica senhora, teve influência marcante sobre o filho e não deixou de atormentar Eleanor, de hábitos mais avançados e visão do mundo mais progressista que seu marido e sua sogra.
Roosevelt, mesmo em casa, exercitava a qualidade na qual foi mestre quando entrou para a política: quando não tinha interesse em se manifestar ignorava olimpicamente as situações de dificuldade ou de conflito.
Os primeiros capítulos deste livro descrevem tudo isso à perfeição: família, namoro, casamento, conflitos familiares, aventuras amorosas. Mas tudo é descrito na justa medida para mostrar o que para Jenkins, me parece, era essencial: a entrega de Roosevelt à política. Muitos biógrafos cuidaram do Roosevelt homem, de discretas paixões e muitas acomodações. Mesmo nos negócios, não chegou a brilhar. Outros descrevem o Roosevelt do "New Deal" e sua obra administrativa.
Mais ainda há os que se dedicam a sublinhar os feitos do grande condutor dos EUA à guerra e à vitória. Lorde Jenkins, por certo, entra em todos esses temas. Mostra mesmo como o "New Deal", sob o aspecto da recuperação da economia norte-americana tão abalada pelas conseqüências da crise de 29, só teve efeitos significativos por causa da economia de guerra. E não podia deixar de analisar as relações entre Roosevelt e Churchill e a grande obra dos dois maiores líderes do século 20, a vitória da democracia.
Entretanto, a meu ver, o que distingue esta biografia e lhe dá lugar de destaque entre tantas outras é que o Roosevelt de lorde Jenkins é um político nato, de carne e osso, e com essas características se fez estadista, o que não é fácil. Nada deteve a marcha ascensional de Roosevelt na política. Ainda sob as asas do tio, é nomeado subsecretário da Marinha, em 1913. No ano de 1920 se candidata a vice-presidente, como seu ilustre tio também o fora, formando chapa com o governador de Ohio, James Cox, mas com uma diferença -a chapa democrata perdeu com Cox-Roosevelt.
Eram anos de disputa sobre o internacionalismo de Woodrow Wilson [1856-1924], ao qual Roosevelt aderiu de corpo e alma, mas não o povo norte-americano. Mais tarde se elege governador de Nova York, para finalmente consagrar-se quatro vezes como presidente dos Estados Unidos. Êxito mais contundente, impossível, para um homem que logo depois da candidatura à vice-presidência, em agosto de 1921, fora vitimado pela poliomielite que o obrigou à cadeira de rodas por toda a vida.
Como foi possível isso? Primeiro, a tenacidade, depois a astúcia, seguida da paciência e completada pela grandeza de visão e de propósitos. É isso o que ressaltam, principalmente os capítulos quarto e quinto deste livro. Ao lê-los o leitor brasileiro, digo entre parênteses, perceberá a semelhança com muitos dos momentos de dificuldades vividos em nossa história. A tenacidade de Roosevelt era reconhecida: a própria imagem de um quase inválido se deslocando pelo país afora em campanhas infindáveis e, mais tarde, pelo mundo afora não precisa de metáforas para se evidenciar.

Construtor da democracia
Sua astúcia foi muito criticada. Mas que grande político pode existir sem ser astuto, sem possuir as qualidades que Maquiavel diz serem as da "raposa"? Roosevelt aperfeiçoou sua habilidade em dissimular e dar a impressão de concordar com tudo e com todos a ponto de ser considerado pelos contemporâneos como hesitante. Ledo engano. Era um líder que esperava a hora. Às vezes, deixava-a passar, mas não por temor, e sim por prudência: era paciente.
Mas, e esse é o ponto decisivo, tinha coragem e decidia, mesmo quando dava a impressão de deixar que as coisas acontecessem sozinhas, como fez ao retardar até o limite a entrada dos EUA na Segunda Guerra.
Isaiah Berlin, que cotejou Roosevelt com Churchill, disse bem que o inglês governava como quem expressava a história e o sentimento de seu povo. Via os seus, bem como os outros povos, como entidades imutáveis. Roosevelt governou com um farol iluminando o futuro. Era um construtor da democracia, e a queria para todos. Isso pode até contrastar com seu hábitos e pendores pessoais aristocráticos. Socorro-me, uma vez mais, das luzes de Berlin em sua interpretação de Maquiavel.
Por que não aceitar que além da ambigüidade, característica psicológica, existe algo mais profundo: há valores que se chocam e não podem ser escolhidos por serem uns intrinsecamente "melhores" ou mais eficientes do que outros? E por que não admitir que a mesma pessoa, em diferentes planos da vida, se orienta ora por uns ora por outros, sem condená-la por isso?
E como poderia ser hesitante quem levou adiante o "New Deal", enfeixou na Casa Branca a política externa, enviou ao Congresso a Lei de Reconstrução Industrial, enfrentou fazendeiros, tomou medidas decididamente em favor dos sindicatos, fez a TVA [Tennessee Valley Authority -agência criada em 1933 para controlar cheias, melhorar a navegação e a vida dos fazendeiros e desenvolver energia elétrica ao longo do rio Tennessee] no Tennessee e até especulou com o ouro, contra seu ministro da Fazenda, para impedir que a recessão engolfasse de vez a economia norte-americana?
É só ler os capítulos centrais do livro para desfazer a imagem superficial que confunde com o titubeio a astúcia necessária para o êxito, a bonomia que cria o clima favorável a ele e a pachorra de dar tempo ao tempo para que a opinião pública não perceba como agressão o que é necessário ser feito. Nas palavras de Jenkins: "Roosevelt (...) exerceu, mais do que ninguém no mundo democrático, a maior combinação de encanto, métodos sinuosos e poder benéfico".
Foi este último ponto que fez do político hábil o condutor de seu povo, um estadista. Ele exerceu um "poder benéfico". Tinha uma visão de grandeza. No prefácio à edição norte-americana, Arthur Schlesinger cita o próprio Roosevelt quando disse: "Todos os nossos grandes presidentes foram condutores do pensamento quando certas idéias na vida da nação precisavam ser esclarecidas". Todos os grandes presidentes, ajunta Schlesinger, possuem ou são possuídos por uma visão dos EUA ideais.
Também Roosevelt a teve. Assumiu o leme em momento de borrasca. Manobrou no partido e no Congresso. Entrou em choque com a Corte Suprema, não se pejou de usar os instrumentos comuns da política, as nomeações, a busca de adesões, o abandono de amigos e por aí afora. Mas o fez sem perder o rumo que lhe parecia o mais apropriado para uma grande nação democrática, que não poderia ver o desemprego larvar na economia, o crescimento do poder dos cartéis afogar a concorrência nem, menos ainda, a ascensão do nazi-fascismo destruir as democracias. Lutou em seu país contra as forças do atraso e venceu. Foi à guerra e venceu. Foi um homem de visão, um estadista.


Fernando Henrique Cardoso é sociólogo, autor de "A Democracia Necessária" (Papirus), "As Idéias e Seu Lugar" (Vozes) e outros. Foi presidente da República entre 1995 e 2002. Este texto é a apresentação à edição brasileira de "Roosevelt", de Roy Jenkins.

A obra
"Roosevelt", de Roy Jenkins. Trad. Gleuber Vieira. 256 págs., R$ 35,00. Ed. Nova Fronteira (tel. 0/xx/21/2131-1111).


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