|
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice
O estadista sinuoso
Em "Roosevelt",
que sai no Brasil
no dia 22,
Roy Jenkins
analisa como
o presidente
dos EUA
que criou
o "New Deal"
aliou encanto
e astúcia
para governar
seu país
por Fernando Henrique Cardoso
Apresentar um livro de Roy
Jenkins sobre ninguém menos do que Roosevelt [1882-1945] é uma ousadia. Quem
quer que haja lido a insuperável biografia de Churchill por lorde Jenkins
ou seu "Gladstone" sabe que se está
diante de um mestre lidando com gigantes. Mas não agüentei a tentação.
Não a agüentei também por motivos
pessoais, que trazem uma ponta de
vaidade: foi lorde Jenkins, então
chanceler de Oxford, quem me saudou, em 2002, quando recebi o grau
de doutor honoris causa por aquela
universidade.
Ao saudar-me, revelou um pouco
de si e do porquê de seu interesse pelos grandes líderes políticos que biografou. Mencionou que eu (e nisso
se deve ler a fina ironia inglesa a respeito do homenageado) consegui o
que ele não conseguiu. Criou um
partido na Inglaterra, o social-liberal, tentou ser primeiro-ministro e,
com a vitória nas mãos, perdeu.
No almoço que se seguiu à solenidade ofereceu-me um exemplar do
seu "Churchill" [lançado no Brasil
pela Nova Fronteira] e conversamos
um pouco mais sobre o tema do êxito e do fracasso em política. Winston
Churchill [1874-1965], vencedor na
Segunda Guerra, foi em seguida derrotado como primeiro-ministro...
Fontes mais escassas
Voltando ao Brasil, pus-me a ler,
vagarosamente, as 800 páginas do livro que ganhara. Admirável. Lorde
Jenkins o publicou quando tinha
mais de 80 anos. Pensei comigo: é
mais fácil ganhar eleições (depende
mais do imponderável) do que escrever um livro com este talante. Eu
não seria capaz. Para consolo, pensei, é bem verdade que a vida de
Churchill está registrada não só na
mídia e em seus próprios livros autobiográficos, como na imensa correspondência trocada entre ele, sua
mulher, sua mãe, seus colegas, o que
facilita a tarefa do biógrafo.
Hoje em dia, talvez os especialistas
em ler os "discos rígidos" dos computadores, desde que sejam "experts" nos hieróglifos contemporâneos, a linguagem da internet, possam entrar na intimidade dos personagens que queiram biografar. Os
simples escritores de poucas luzes
computacionais não encontrarão a
riqueza de material com que o biógrafo de Churchill se deparou. Consolo de despeitado...
Pois bem, não é que Roy Jenkins,
aos 82 anos, retomou da pena para
biografar alguém que, se é certo também já teve sua vida devassada de
mil ângulos, não deixou extensa correspondência nem teve a pachorra
tão gostosa de escrever sobre si próprio com a voracidade com que o fez
Winston Churchill? E Roy Jenkins
escreveu seu último livro de modo
admirável. O entusiasmo do autor
foi ceifado por essa megera que não
respeita talentos: a morte o levou em
plena criatividade [em 2003].
Nosso autor teve, entretanto, a sorte de encontrar alguém capaz de terminar o pouco que faltava de sua
obra, o professor Richard Neustadt,
da Universidade Harvard.
O político nato
Há inúmeras biografias de Franklin Delano Roosevelt. Algumas
(das poucas que eu li) seguem o percurso do "Churchill" de Jenkins e
buscam fontes primárias, rastreando toda informação possível que os
familiares e colaboradores do grande norte-americano podem oferecer. Nessa veia encontra-se "Tempos
Muito Estranhos" [ed. Nova Fronteira], da jornalista Doris Kearns
Goodwin. Outros há que colocam
Roosevelt na perspectiva da grande
história.
Vêem-no como o paradigma do
estadista virtuoso, não o digo moralmente, mas como o mestre do desempenho, que mais do que expressar o sentimento historicamente
construído por um povo, desenha
um futuro sorridente para a humanidade. Revigorado e de bem com a
vida. Esse é notadamente o caso de
Isaiah Berlin em seus dois ensaios
admiráveis, "Winston Churchill in
1940" e "President Franklin Delano
Roosevelt".
A presente biografia não segue nenhum desses dois modelos.
Nem é um livro farto em documentação nem pretende cotejar Roosevelt
com outros líderes modelares e fazer
dele um tipo ideal. Não obstante talvez nos ensine mais sobre a política
de Roosevelt em suas poucas páginas
do que muito do que já foi escrito sobre ele. É certo que Jenkins traça também o retrato humano de Roosevelt.
Nem poderia deixar de fazê-lo, até
porque, como notou Isaiah Berlin,
desde Aristóteles se sabe que a história "é o que Alcebíades fez e sofreu".
Mas, "modus in rebus", é também,
acrescento eu, o que os outros fizeram, pessoas simples ou grandes homens e mulheres, e o que o tempo
consolidou desses feitos em instituições. Assim, não se esquecendo do
que Roosevelt fez e sofreu, lorde Jenkins ilumina também o que os demais fizeram com Roosevelt, junto
dele ou contra ele, e o que Roosevelt
tentou mudar nas instituições, bem
como o quanto elas resistiram ao doce encanto das ambigüidades e do futuro risonho que seus gestos, suas palavras, seu humor e seu jeito de ser,
com chapéu à mão e piteira à boca,
insinuavam.
No caso de Roosevelt o entorno familiar é parte indispensável do seu fazer. Nascido e educado nas alturas
aristocráticas de uma família da Nova
Inglaterra, assentada no norte do Estado de Nova York, em Hyde Park,
mas sempre com apoio na mansão
urbana da grande metrópole, freqüentando as grandes escolas ("college" em Harvard, licenciatura em leis
na Columbia), sem deixar de pertencer ao círculo dos "knickerbockers"
-alusão a antigo clube da Quinta
Avenida-, que naquela época distinguia os bem-nascidos, casou-se
"em família".
Sua prima em segundo grau, Eleanor, que teve papel tão destacado na
vida americana, era sobrinha de
Theodore Roosevelt [1858-1919], o
primeiro presidente da família. Provinham todos de remota origem holandesa, mesclados com troncos anglo-saxões, também de alta estirpe. A
mãe de Roosevelt, Sara Delano, rica
senhora, teve influência marcante sobre o filho e não deixou de atormentar Eleanor, de hábitos mais avançados e visão do mundo mais progressista que seu marido e sua sogra.
Roosevelt, mesmo em casa, exercitava a qualidade na qual foi mestre
quando entrou para a política: quando não tinha interesse em se manifestar ignorava olimpicamente as situações de dificuldade ou de conflito.
Os primeiros capítulos deste livro
descrevem tudo isso à perfeição: família, namoro, casamento, conflitos
familiares, aventuras amorosas. Mas
tudo é descrito na justa medida para
mostrar o que para Jenkins, me parece, era essencial: a entrega de Roosevelt à política. Muitos biógrafos cuidaram do Roosevelt homem, de discretas paixões e muitas acomodações. Mesmo nos negócios, não chegou a brilhar. Outros descrevem o
Roosevelt do "New Deal" e sua obra
administrativa.
Mais ainda há os que se dedicam a
sublinhar os feitos do grande condutor dos EUA à guerra e à vitória. Lorde Jenkins, por certo, entra em todos
esses temas. Mostra mesmo como o
"New Deal", sob o aspecto da recuperação da economia norte-americana
tão abalada pelas conseqüências da
crise de 29, só teve efeitos significativos por causa da economia de guerra.
E não podia deixar de analisar as relações entre Roosevelt e Churchill e a
grande obra dos dois maiores líderes
do século 20, a vitória da democracia.
Entretanto, a meu ver, o que distingue esta biografia e lhe dá lugar de
destaque entre tantas outras é que o
Roosevelt de lorde Jenkins é um político nato, de carne e osso, e com essas
características se fez estadista, o que
não é fácil. Nada deteve a marcha ascensional de Roosevelt na política.
Ainda sob as asas do tio, é nomeado
subsecretário da Marinha, em 1913.
No ano de 1920 se candidata a vice-presidente, como seu ilustre tio também o fora, formando chapa com o
governador de Ohio, James Cox, mas
com uma diferença -a chapa democrata perdeu com Cox-Roosevelt.
Eram anos de disputa sobre o internacionalismo de Woodrow Wilson
[1856-1924], ao qual Roosevelt aderiu
de corpo e alma, mas não o povo norte-americano. Mais tarde se elege governador de Nova York, para finalmente consagrar-se quatro vezes como presidente dos Estados Unidos.
Êxito mais contundente, impossível,
para um homem que logo depois da
candidatura à vice-presidência, em
agosto de 1921, fora vitimado pela poliomielite que o obrigou à cadeira de
rodas por toda a vida.
Como foi possível isso? Primeiro, a
tenacidade, depois a astúcia, seguida
da paciência e completada pela grandeza de visão e de propósitos. É isso o
que ressaltam, principalmente os capítulos quarto e quinto deste livro. Ao
lê-los o leitor brasileiro, digo entre
parênteses, perceberá a semelhança
com muitos dos momentos de dificuldades vividos em nossa história. A
tenacidade de Roosevelt era reconhecida: a própria imagem de um quase
inválido se deslocando pelo país afora
em campanhas infindáveis e, mais
tarde, pelo mundo afora não precisa
de metáforas para se evidenciar.
Construtor da democracia
Sua astúcia foi muito criticada. Mas
que grande político pode existir sem
ser astuto, sem possuir as qualidades
que Maquiavel diz serem as da "raposa"? Roosevelt aperfeiçoou sua habilidade em dissimular e dar a impressão
de concordar com tudo e com todos a
ponto de ser considerado pelos contemporâneos como hesitante. Ledo
engano. Era um líder que esperava a
hora. Às vezes, deixava-a passar, mas
não por temor, e sim por prudência:
era paciente.
Mas, e esse é o ponto decisivo, tinha
coragem e decidia, mesmo quando
dava a impressão de deixar que as
coisas acontecessem sozinhas, como
fez ao retardar até o limite a entrada
dos EUA na Segunda Guerra.
Isaiah Berlin, que cotejou Roosevelt
com Churchill, disse bem que o inglês
governava como quem expressava a
história e o sentimento de seu povo.
Via os seus, bem como os outros povos, como entidades imutáveis. Roosevelt governou com um farol iluminando o futuro. Era um construtor da
democracia, e a queria para todos. Isso pode até contrastar com seu hábitos e pendores pessoais aristocráticos. Socorro-me, uma vez mais, das
luzes de Berlin em sua interpretação
de Maquiavel.
Por que não aceitar que além da
ambigüidade, característica psicológica, existe algo mais profundo: há
valores que se chocam e não podem
ser escolhidos por serem uns intrinsecamente "melhores" ou mais eficientes do que outros? E por que não
admitir que a mesma pessoa, em diferentes planos da vida, se orienta ora
por uns ora por outros, sem condená-la por isso?
E como poderia ser hesitante quem
levou adiante o "New Deal", enfeixou
na Casa Branca a política externa, enviou ao Congresso a Lei de Reconstrução Industrial, enfrentou fazendeiros, tomou medidas decididamente em favor dos sindicatos, fez a
TVA [Tennessee Valley Authority
-agência criada em 1933 para controlar cheias, melhorar a navegação e
a vida dos fazendeiros e desenvolver
energia elétrica ao longo do rio Tennessee] no Tennessee e até especulou
com o ouro, contra seu ministro da
Fazenda, para impedir que a recessão
engolfasse de vez a economia norte-americana?
É só ler os capítulos centrais do livro
para desfazer a imagem superficial
que confunde com o titubeio a astúcia necessária para o êxito, a bonomia
que cria o clima favorável a ele e a pachorra de dar tempo ao tempo para
que a opinião pública não perceba como agressão o que é necessário ser
feito. Nas palavras de Jenkins: "Roosevelt (...) exerceu, mais do que ninguém no mundo democrático, a
maior combinação de encanto, métodos sinuosos e poder benéfico".
Foi este último ponto que fez do político hábil o condutor de seu povo,
um estadista. Ele exerceu um "poder
benéfico". Tinha uma visão de grandeza. No prefácio à edição norte-americana, Arthur Schlesinger cita o
próprio Roosevelt quando disse: "Todos os nossos grandes presidentes foram condutores do pensamento
quando certas idéias na vida da nação
precisavam ser esclarecidas". Todos
os grandes presidentes, ajunta Schlesinger, possuem ou são possuídos
por uma visão dos EUA ideais.
Também Roosevelt a teve. Assumiu
o leme em momento de borrasca.
Manobrou no partido e no Congresso. Entrou em choque com a Corte
Suprema, não se pejou de usar os instrumentos comuns da política, as nomeações, a busca de adesões, o abandono de amigos e por aí afora. Mas o
fez sem perder o rumo que lhe parecia o mais apropriado para uma grande nação democrática, que não poderia ver o desemprego larvar na economia, o crescimento do poder dos cartéis afogar a concorrência nem, menos ainda, a ascensão do nazi-fascismo destruir as democracias. Lutou
em seu país contra as forças do atraso
e venceu. Foi à guerra e venceu. Foi
um homem de visão, um estadista.
Fernando Henrique Cardoso é sociólogo,
autor de "A Democracia Necessária" (Papirus), "As Idéias e Seu Lugar" (Vozes) e outros.
Foi presidente da República entre 1995 e
2002. Este texto é a apresentação à edição
brasileira de "Roosevelt", de Roy Jenkins.
A obra
"Roosevelt", de Roy Jenkins. Trad. Gleuber Vieira. 256 págs., R$ 35,00. Ed. Nova
Fronteira (tel. 0/xx/21/2131-1111).
Texto Anterior: Para Cornwell, João Paulo 2º é autoritário Próximo Texto: "New Deal" marcou intervenção do Estado na economia Índice
|