São Paulo, domingo, 13 de março de 2005

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+ contraponto

Duas exposições em SP, na Estação Pinacoteca e na Faap, questionam a validade dos julgamentos artísticos ao contrastarem obras de esquecidos e consagrados, como Tarsila do Amaral

Holofotes e poeira nos museus

FELIPE CHAIMOVICH
CRÍTICO DA FOLHA

A comparação entre duas mostras em São Paulo evidencia o problema dos critérios de qualidade estética da obra de arte. Por um lado, "Mestres do Modernismo" reúne peças de autores consagrados na Estação Pinacoteca (tel. 0/xx/11/3337-0185), reafirmando valores já garantidos pela história. Por outro, "Acervo 2005", que termina hoje, tira do armário do Museu de Arte Brasileira da Fundação Armando Álvares Penteado (0/ xx/11/3662-7198) quadros e esculturas marginais ao circuito dominante. Como julgar o contraponto?
A resposta mais óbvia é a entrega ao deleite com a primeira coleção, enquanto se ironiza a segunda. Impecável é o gosto expresso pelo prazer perante o panô de Regina Graz "Composição com Figuras", de 1925: recortes de feltro, veludo e seda entremesclam-se ao formar dupla feminina, que desce alongada escadaria "art déco". Igualmente aceitável é um discreto sarcasmo diante da pintura carregada de Georg Elpons, cuja "Natureza Morta" simula tantas outras à venda em casas de moldura ou na praça da República.


A aparente evidência dos critérios de qualidade estética da história oficial mascara os interesses que resultam num modelo de gosto hegemônico


Entretanto, dando-se um passo além do confortável preconceito, podemos investigar os padrões valorativos que determinam a construção de patrimônios museológicos públicos e da própria história oficial da arte brasileira.
A entrada no panteão da arte decorre de um jogo de poder. Ao analisar os interesses presentes na formação da mais importante mostra de arte contemporânea, a Documenta de Kassel, Walter Grasskamp adverte: "Assim como a historiografia geral prefere capitais a províncias, os tempos de guerra aos de paz, inovações tecnológicas à cultura de ofícios tradicionais, também a história da arte tem prioridades que ajudam a reduzir o quadro, produto de eventos e processos artísticos, a um extrato histórico da arte.
Tais prioridades são extraídas do material bruto de discussões casuais, recomendações, exposições ambiciosamente montadas, rumores, juízos especializados, catálogos, leilões, júris e comissões e então elevadas" ("Thinking about Exhibitions" [Pensando em Exibições], ed. Routledge, 1996).

O sentido resultante
A aparente evidência dos critérios de qualidade estética da história oficial da arte mascara os diversos interesses que resultam num modelo de gosto hegemônico.
Quanto mais afastado o período em questão, menos identificáveis os vetores que formaram o sentido resultante, pois os agentes envolvidos estarão mortos, e o significado de documentos será disputado por sucessivos intérpretes. Restam apenas as coisas, algumas veneradas como cânones de beleza ou sublimidade, outras condenadas ao fundo das reservas técnicas.
A Pinacoteca do Estado cumpre sua missão museológica ao abrigar a somatória de coleções que compõem a mostra "Mestres do Modernismo". Algumas das obras pertencem ao governo de São Paulo e tornaram-se ícones da identidade paulista, como os "Operários" (1933), de Tarsila do Amaral.
Porém um olhar mais atento consegue traçar genealogias da história oficial do modernismo brasileiro, cujo papel de destaque é repetidamente conferido à produção ligada à Semana de 22.
A obra de Lasar Segall "Duas Crianças" (1920) foi pintada na Europa, três anos antes de o pintor fixar residência no Brasil; trata-se, pois, de um exemplar da segunda geração do expressionismo, imediatamente posterior à Primeira Guerra. Misturada às demais peças do salão, ela confere um ar europeizante à nossa modernidade, sobretudo em confronto com o "Bananal" (1927), do mesmo autor, agora retratando um negro, durante o período brasileiro de Segall.
Noutro extremo, o Museu de Arte Brasileira declara chegada a hora de "apresentar um grupo dessas obras que ficaram muito bem cuidadas, mas ocultas por bons anos". Embora encontremos alguns nomes atualmente em pauta, como Geraldo de Barros e Maria Helena Vieira da Silva, predominam os esquecidos. Entre eles, Pedro Escosteguy, representado pela "Assombração Ratoeira" (1968): descrito como "anjo bom da Nova Objetividade Brasileira" por Hélio Oiticica, ficou para trás, enquanto este virou ídolo de nosso experimentalismo conceitual pelo mundo afora.

De volta ao pó
A seqüência agrupa paisagens, naturezas-mortas, surrealismo, abstração, realismo, tridimensionais e desenhos de Heinz Kühn. A dificuldade de lidar com o desconhecido gera uma mescla curatorial de critérios díspares: gêneros, estilos e retrospectiva individual. O visitante é levado a quebrar suas expectativas uma e outra vez.
Abunda o kitsch. Mas não é a arte contemporânea permeada por referências à diluição dos padrões da alta cultura? Mergulhando em sensualidade de proporções gigantescas, Carlos Araújo compõe o surreal óleo sobre madeira "O Centauro de Bourdelle" (1979), com dois nus sem braços que se oferecem de frente, em torsões à moda de Bacon. Lutam para emergir do escuro fundo preto, mas, em breve, retornarão às trevas dos depósitos.
A curadoria investigativa complementa os padrões historiográficos estabelecidos. A coragem para sacudir o pó dos fantasmas fortalece uma rede institucional atenta à necessidade de crítica contínua aos modelos dominantes da cultura.


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