São Paulo, domingo, 13 de março de 2005

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+ sociedade

Sistema de comunicação oral que fornecia notícias às cidades do século 18 foi o primeiro passo para a institucionalização da palavra escrita em jornais e livros e deu início ao conceito de "opinião pública"

A voz do povo

por Robert Darnton

Os versos mais antigos de Mamãe Ganso -como: "Ouça, ouça! Os cães ladram/ Os mendigos chegam à cidade/ Consertam-se cadeiras! Consertam-se cadeiras!/ Eu nunca gritaria "consertam-se cadeiras'/ Se tivesse tanto dinheiro quanto quisesse gastar"; ou "o Natal está chegando, os gansos, engordando/ É favor pôr uma moeda no chapéu deste velhinho"- confirmam uma característica muito conhecida das cidades do início da era moderna: eram barulhentas.
Pedintes, vendedores de rua, camelôs, arautos, curandeiros, afiadores de facas, tocadores de realejo, sargentos recrutadores, carregadores, estivadores, condutores de carruagens, carroceiros, uma variedade infinita de trabalhadores e animais enchia o ar de uma cacofonia que não se assemelha a nada do que pode ser ouvido nas ruas de hoje.
E tudo isso era percorrido por um riacho de som que é especialmente difícil de detectar à distância de dois ou três séculos: os chamados "ruídos públicos" ("bruits publics") ou comentários aleatórios sobre os assuntos de Estado e os figurões responsáveis por eles. Essa espécie de central de boatos fazia parte de um sistema de comunicação oral que provia as cidades de seu suprimento básico de notícias. Como a maioria dos fenômenos orais, ela já desapareceu. Mas deixou rastros de sua atividade nos pontos nodais em que a palavra falada era retomada pela escrita e, em alguns casos, difundida ainda mais longe ao ser impressa.

Gosto proibido
A literatura ilegal, em razão da censura e das práticas monopolistas da corporação dos livreiros, representava uma parcela grande das vendas totais de livros. Cinco dos 15 livros mais vendidos eram "libelles" ou "chroniques scandeleuses" -ou seja, faziam parte de uma variedade de jornalismo caracterizada pela difamação e divulgação de escândalos, uma vertente que montava seu relato da história contemporânea demolindo a reputação de figuras públicas, a começar pela figura do rei.
Esse resultado me parece revelador de uma das principais preocupações da polícia: o controle da opinião pública. É verdade que ela não usava o termo "controle", mas se preocupava com ele, sim -ou seja, com a maneira como os parisienses falavam dos homens que ocupavam o poder e dos assuntos de Estado.
Quando a conversa se transformava em livro, que era vendido em todo o reino, o assunto se tornava suficientemente sério para que o próprio tenente-geral tomasse a investigação a seu cargo. É a ligação entre conversa e versão impressa que me parece ser especialmente reveladora.


A polícia produzia uma gazeta própria; assim, podemos formar um relato a partir dos ruídos públicos captados por ela


Considere-se a análise da opinião pública desenvolvida por Gabriel Tarde, um sociólogo do século 19 mais conhecido, se é que é lembrado de alguma maneira, como adversário de Durkheim. Tarde afirmava que a opinião pública emerge do reforço mútuo de dois fenômenos, a palavra impressa e a falada. A palavra impressa, primeiro sob a forma de livros e mais tarde como jornal diário, fornecia um "cardápio" para as conversas, e estas se fundiam para formar julgamentos coletivos que, mais tarde, voltavam à forma impressa, já como expressão dos pontos de vista do público.
Numa etapa inicial do processo, quando o livro ainda era a mídia dominante entre os franceses instruídos, os leitores tendiam a ser isolados, e as conversas a espalhar-se esparsamente através da sociedade bem-educada. A chegada dos jornais diários e baratos e o advento da alfabetização de massas transformaram tanto a natureza da leitura quanto a dos noticiários.
Quando liam os jornais na Paris do século 19, os leitores tinham consciência de estar recebendo a mesma versão dos mesmos acontecimentos, ao mesmo tempo em que todas as outras pessoas o faziam -não à mesa do café da manhã, porque a entrega de jornais em domicílio só começou muito mais tarde, mas nos cafés e nas tavernas, onde as pessoas liam jornais e discutiam política ao mesmo tempo.
Mesmo os leitores isolados participavam dessa empreitada coletiva, porque, ao fazer seu julgamento sobre as notícias -aprovando ou deplorando um discurso, uma manobra militar ou mesmo o tempo-, estavam cientes de estarem reagindo simultaneamente com outros.
As reações mais vigorosamente expressas acabavam fazendo parte do noticiário do dia seguinte, de modo que o processo se auto-reforçava. As opiniões se dividiam, os relatos dos jornais divergiam, mas, no fundo, a dialética da leitura e da conversa produzia uma consciência comum, o "esprit public".
Como argumentou o sociólogo moderno Elihu Katz, a teoria de Tarde pode ser usada para revigorar a tradição da pesquisa em comunicação desenvolvida por Paul Lazarsfeld, Robert Merton e Harold Lasswell. Ela pode abrir um caminho para a compreensão melhor da mídia moderna, tal como a televisão e a internet, mas não pode ser aplicada tão facilmente à França do século 18, porque o jornalismo da década de 1740 era primitivo em comparação com aquele dos anos 1840. E foi apenas em 1777 que a França ganhou um jornal diário.
Mas os registros policiais mostram que os parisienses comuns se divertiam diariamente com conversas sobre o que acontecia na corte em Versalhes. Se tentarmos aplicar a fórmula de Tarde ao início do século 18, enfrentaremos um problema, portanto: onde, se não era nos jornais, os habitantes de Paris encontravam o cardápio para as conversas do dia?
Talvez não existisse nenhum cardápio. Mas eu desconfio que ele estivesse ali, não-impresso, não-escrito, nem sequer visto, mas ouvido, boiando no ar, sob a forma conhecida durante o Velho Regime como os "ruídos públicos". Ele pertencia a um sistema de comunicação oral peculiar às cidades do início da era moderna, uma que Louis Sébastien Mercier descreveu em 1786 como "um murmúrio que se ouve constantemente em Paris". Infelizmente, a maior parte desse murmúrio se desfez no ar. Mas alguma coisa dele ficou nos arquivos da Bastilha, porque a polícia freqüentemente prendia pessoas por "falatório negativo" em locais públicos.
É claro que os arquivos de prisões possuem um viés embutido: dizem respeito a pessoas vistas como criminosas, de modo que podem dar a impressão enganosa de que todo mundo falava mal do governo. Mas a polícia também compilou relatos sobre o que pessoas comuns diziam em cafés, jardins públicos e feiras de rua. Uma rede de, possivelmente, 3.000 espiões fornecia as informações, e jornalistas primitivos, como o notório cavalheiro De Mouhy, as redigiam em boletins fornecidos diariamente ao tenente geral, que, em seguida, adaptava as notícias para serem apresentadas ao ministro do departamento de Paris e, eventualmente, ao rei.
Em suma, a polícia produzia uma gazeta própria. Assim, podemos começar a formar um relato dos ruídos públicos captados pela polícia. É um trabalho complicado, porque os gazeteiros da polícia filtravam. Não obstante, por parciais que sejam, elas fornecem relatos sobre o tom, o local e os participantes do discurso -ou seja, contêm informações sobre as informações.
Eis um relato feito pelo próprio De Mouhy sobre conversas ouvidas num café no auge da Guerra da Sucessão Austríaca (1740-1748): ""Negociantes, oficiais aposentados, o povo, todos reclamam, falam mal do governo e prevêem que essa guerra terá conseqüências desastrosas. Os clérigos, especialmente os jansenistas, adotam essa visão e ousam pensar e dizer a quem quiser ouvir que os males que em breve irão acometer o reino vêm do alto, como castigo pelo incesto e a falta de religião do rei. Eles citam trechos das Escrituras e fazem analogias. O governo deveria estar atento a essa classe de súditos. Eles são perigosos".
As observações hostis notadas por De Mouhy eram o tipo de comentário que Mademoiselle Bonafon incorporou em seu livro "Tanastès", que a polícia descreveu como "uma obra que oferece um relato do que aconteceu em Metz durante a doença do rei e o restabelecimento de Madame de Chateauroux". Fazer um relato, no caso de Mademoiselle de Bonafon, significava contar uma história que as publicações comuns não podiam reproduzir. Em lugar de reportar acontecimentos como notícias, ela os disfarçou como conto de fadas. Ela tirou seu material das fofocas saídas de Versalhes e o retrabalhou, formando uma "chronique scandaleuse" mal disfarçada.

Conto de fadas alegórico
As analogias implícitas que percorrem a narrativa obrigavam os leitores a interpretá-la de determinada maneira, conforme a própria polícia indicou no relato que fez ao governo. A polícia assim resumiu sua leitura do texto: "Este livro é um conto de fadas alegórico, partindo do qual é fácil fazer analogias ofensivas ao rei, à rainha, a Madame de Chateauroux, ao duque de Richelieu, ao cardeal de Fleury e a outros senhores eminentes e damas da corte".
É evidente que a polícia sob o Velho Regime era atenta à literatura. Mas por que se irritou a tal ponto com um conto de fadas, mesmo um que contivesse analogias? Por que esse romance político redigido por uma camareira se transformou num assunto de Estado, algo que foi tratado pelos mais altos escalões? Relatos velados sobre a vida amorosa da realeza já vinham aparecendo em forma impressa havia pelo menos um século antes de 1745.
Então por que "Tanastès" causou consternação tão grande entre as autoridades? Deixando de lado a necessidade de decifrar as possíveis intrigas políticas por trás da publicação, elas se viam diante de um perigo que extrapolava de longe os limites de Versalhes: a perspectiva de que o livro pudesse transmitir aos franceses instruídos comuns uma leitura hostil dos acontecimentos contemporâneos. O perigo representado por "Tanastès" se devia a sua condição de "roman à clef".
Diferentemente dos romances normais, que, de fato, podem ser interpretados de maneiras contraditórias, os "romans à clef" obrigam a uma reação padronizada por parte de seus leitores. Eles operam como um quebra-cabeça. Aventure-se por uma ou duas páginas na narrativa, e você não poderá resistir à tentação de adivinhar quem são os personagens públicos escondidos por trás dos fictícios.
Algumas das identificações são fáceis, mas outras são difíceis de decifrar, e, quanto mais complexa é a trama -por mais absurda ou batida que possa ser-, mais fascinante se torna o jogo de adivinhação. Em pouco tempo você se vê tomando notas ou anotando palpites nas margens do livro ou, então, indo até o final para encontrar uma chave -e corrigi-la, se ela não corresponder bem aos detalhes da história. Seja qual for a interpretação que fizer de um "roman à clef", você não poderá ler o texto sem primeiro decodificá-lo da maneira pretendida.
E, se você fosse um francês do século 18, estaria ainda mais inclinado a jogar esse jogo porque teria aprendido a procurar analogias nas obras de La Fontaine, La Bruyère e outros autores populares do século 17. Você teria familiaridade com quebra-cabeças semelhantes -"bouts rimés" e "enigmes"- publicados nas páginas de revistas literárias e vistos nos jogos com que as pessoas se divertiam em reuniões sociais.
O jogo de adivinhação se torna mais dramático quando a narrativa adentra os aposentos secretos de Versalhes, uma região que ainda não tinha sido penetrada por publicações impressas durante o reino de Luís 15. Cada episódio da trama descreve um paralelo com eventos da época. O rei realmente teve as irmãs De Nesle como suas amantes, uma após a outra, começando em 1733 com Madame de Mailly (era a razão dos rumores sobre incesto, já que manter relações sexuais com irmãs era visto como ato incestuoso), e a virada em seu reino se deu quando ele adoeceu no front em Metz, para onde Madame de Chateauroux o seguira, em 1744.

O bem-amado
Nesse momento, o bispo de Soissons interveio de maneira marcante, exatamente como fez Amariel no conto de fadas. Ele forçou o rei, apavorado com a idéia da morte, a renunciar a Madame de Chateauroux para poder ter acesso à absolvição e ao sacramento da extrema-unção.
Então, enquanto sua amante regressava a Paris sob uma enxurrada de insultos, o rei se recuperou. Os franceses se alegraram, interpretando o milagre como sinal de que um novo Luís, o "Bem-Amado", surgira no lugar do velho rei réprobo.
Mas o Agamil que existia em Luís 15 voltou à tona. Tendo caído sob a influência do duque de Richelieu (Muscadin), ele chamou Madame de Chateauroux de volta a Versalhes, e ela explorou sua volta às boas graças do rei para ganhar uma posição dominante na corte, exatamente como faz Ardentine na segunda parte do livro. Mas, antes de retomar o poder, ela adoeceu e morreu -segundo os boatos, envenenada.
O capítulo seguinte da luta pelo poder -no livro quanto na política da corte- começou quando Luís 15 escolheu Madame de Pompadour num baile de máscaras promovido para festejar o casamento do delfim. Em pouco tempo, ela já escolhia seus ministros. Assim, a vida privada do rei de fato determinou o que aconteceu no reino. Era esse o segredo revelado por Mademoiselle de Bonafon, e essa a razão do interesse gerado por seu conto de fadas.
Mademoiselle Bonafon transformou fofocas desconexas numa narrativa coerente e, depois que sua versão dos fatos foi vendida nas ruas de Paris, ela reingressou no fluxo de fofocas, criando mais "ruído público". Em lugar de substituir os rumores pela leitura, a publicação de "Tanastès" ampliou o poder do boca a boca. Das conversas para o livro impresso e voltando às conversas, os meios de comunicação se reforçavam no século 18, como ainda fariam cem anos mais tarde, segundo Gabriel Tarde.
Mademoiselle Bonafon pode não ter sido grande escritora, mas ocupou uma posição crítica no ponto de convergência das versões orais e escritas dos fatos. Daquele momento em diante, o processo foi ganhando ímpeto. "Mauvais propos" e livros passaram a circular em grande quantidade, transmitindo relatos negativos sobre a monarquia a setores cada vez maiores do público. Foi o famoso dilúvio, que começou na metade do reinado de Luís 15, não depois, e que exerceu efeito crucial sobre a visão atual da história contemporânea.

Robert Darnton é professor de história européia na Universidade Princeton (EUA) e autor de, entre outros, "O Grande Massacre dos Gatos" (Graal).
Tradução de Clara Allain.


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