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São Paulo, domingo, 13 de abril de 2003

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+ história

LEIA TRADUÇÃO DE UM TRECHO DO RELATO DE 1614 DO VIAJANTE WILLIAM DAVIES, QUE ACREDITOU TER ENCONTRADO NO AMAZONAS A LENDÁRIA ILHA HABITADA POR MULHERES

UM INGLÊS VÊ O BRASIL

Jean Marcel Carvalho França
especial para a Folha

Por volta de 1554, o célebre navegador sir John Hawkins contava ao grande conhecedor e incentivador do então embrionário processo de expansão marítima britânico, Richard Hakluyt, que desde 1504, com relativa assiduidade, barcos ingleses andavam pela costa da África, comprando malagueta, marfim e ouro, e pela costa da "terra do brasil", de onde costumavam trazer razoável quantidade do cobiçado pau-de-tinta. De tal atividade, porém -atividade nada excepcional, como sugere Hawkins na sua narrativa-, não se tem nenhuma notícia a não ser a palavra do renomado navegador. As notícias sobre barcos ingleses na costa do Brasil começam a aparecer somente na década de 30 do Quinhentos -a primeira delas, não por coincidência, legada por um outro membro do poderoso clã dos Hawkins, William- e passam a ser mais corriqueiras a partir de 1594, depois da lucrativa passagem do pirata James Lancaster por Pernambuco. É nessa mesma altura que os britânicos descobrem um outro ponto de grande interesse na costa da América austral, a região da Guiana e a embocadura do rio Amazonas, ponto ainda pouco explorado por portugueses e espanhóis. Tudo começou em 1595, quando o pirata Walter Raleigh, depois de capturar e torturar o espanhol Pedro Sarmiento de Gamboa, autor do conhecido "Histórias dos Incas" (1572), pôs em marcha uma desesperada busca pelo Eldorado, que supunha estar situado, segundo notícias arrancadas do erudito prisioneiro espanhol, lá pelas bandas dos rios Orinoco e Amazonas. A obsessão de Raleigh, que empreendeu e organizou diversas viagens à região, acabou por tornar os marinheiros ingleses conhecedores do lugar. Foi tal conhecimento que, em 1608, trouxe ao rio Amazonas William Davies, um cirurgião natural de Hereford, acerca do qual mais não se sabe do que aquilo que ele próprio deixou registrado no seu "A True Relation of the Travels and Most Miserable Captivity of William Davies" ("A Relação Verdadeira das Viagens e do Miserável Cativeiro de William Davies", 1614), de onde extraímos a narrativa traduzida abaixo. Relata-nos Davies que, em 1601, nas proximidades de Tunes, caiu prisioneiro do duque de Florença e passou a servir nas galés. Dentre as muitas viagens que empreendeu durante o seu cativeiro, uma delas, a bordo do navio "Santa Lúcia" (que contava com um capitão e inúmeros tripulantes ingleses), teve como destino o rio Amazonas, onde o aventureiro permaneceu dez semanas. Davies, se não encontrou o Eldorado, teve ao menos a oportunidade de "ver" a lendária "ilha habitada somente por mulheres" e outras tantas "coisas singulares", dando, com sua "relação", um contributo razoável para alimentar, entre os britânicos, o desejo de colonizar o lugar e o sonho sempre renovado de encontrar, quem sabe rio acima, a tão cantada cidade de ouro alardeada pelos espanhóis.
 

WILLIAM DAVIES
O rio Amazonas está localizado na parte mais distante das Índias Ocidentais, abaixo da linha equinocial. Para encontrar esse rio deve-se observar que, a cerca de 40 léguas da terra, a profundidade da água varia entre 6 e 8 braças e o mar ganha uma coloração avermelhada, tornando-se mais e mais viscoso. Atento a tais sinais é possível estabelecer rapidamente o curso e sair próximo da desembocadura do dito rio, onde a profundidade da água é maior. Faz-se, então, necessário guiar-se por umas árvores que se mostram primeiro do que a costa, pois a região é muito baixa -nunca ultrapassando os três pés- e quase toda coberta, sabe-se lá Deus por quantas centenas de léguas, por uma maré de águas-vivas. Corre aí muita água e a correnteza é extremamente violenta.
Permaneci dez semanas no Amazonas e pude observar o modo de ser do povo e as características do lugar. A região é inteiramente coberta por florestas e povoada por todo tipo de animais selvagens, tais como leões, ursos, lobos, leopardos, babuínos, saguis, javalis esquisitos, macacos, andorinhões e muitos outros bichos estranhos. Os bosques estão cheios de pássaros selvagens dos mais variados e é possível encontrar mais papagaios por aqui do que pombos na Inglaterra -a propósito dos papagaios, cheguei a comer vários deles e devo dizer que são muito saborosos.
A região conta, igualmente, com um sem número de rios, todos dominados por um rei. As tempestades, sempre acompanhadas por muitos raios e trovões, são tão constantes e intensas que, num único dia, pode chover seguidamente durante 16 ou 18 horas. As lagoas, que são muitas, estão repletas de jacarés, serpentes aquáticas e peixes com formas bizarras. Muitos são, também, os insetos, insetos miúdos que incomodam enormemente o estrangeiro recém-chegado.
A natureza, os hábitos e os costumes dos habitantes do lugar são os que se seguem. Todos, tanto homens como mulheres, andam inteiramente nus, não trazendo sobre o corpo um único fio que possa cobri-lo. Os homens ornam-se com um pequeno toco de maneira arredondado, do tamanho de uma pequena vela de duas polegadas de comprimento, que é colocado no prepúcio -este, devidamente rasgado com um pedaço de casca de árvore da espessura de um barbante grosso. Tal ornamento é colocado mais ou menos no meio do prepúcio, permitindo que se continue a utilizar o pênis. Os homens trazem, também, enfiado em ambas as orelhas, um toco ou caniço, aproximadamente da espessura de uma pena de cisne e com cerca de meia polegada de cumprimento; ornamento semelhante é colocado no meio do lábio inferior. Até mesmo no osso do nariz eles metem um pequeno caniço, onde penduram uma pérola ou uma conta que cai diretamente sobre a boca e balança de um lado para outro enquanto a pessoa fala -coisa que é motivo de grande orgulho e satisfação. Os seus cabelos são longos, mas, nas proximidades da orelha, há uma parte arredondada que é cortada bem curta, rente a cabeça -como suponho ser cortado o cabelo de um monge.
As mulheres não fazem nenhum esforço no sentido de se fazerem atraentes para seus homens. Andam totalmente nuas, como nasceram, com os seus longos cabelos nas costas; seus seios, em razão de nunca serem amarrados ou escorados, caem rapidamente. Tanto homens quanto mulheres têm o hábito de pintarem o corpo com uma espécie de areia vermelha, o que evita o tormento dos mosquitos. É uma gente muito esperta e habilidosa, mas traiçoeira; muito ágil ao caminhar e dona de uma perícia com os remos que nunca tinha visto igual em minha vida. Normalmente, os alimentos que consomem vêm da captura de animais, pássaros e peixes. Para fazê-lo, lançam mão de arcos e flechas, cuja forma passo a descrever. O arco tem cerca de duas jardas de comprimento, e a flecha, sete pés. O primeiro, muito minuciosamente esculpido em pau-brasil, conta com um cordão de casca de árvore, extremamente esticado, atado nas extremidades da madeira; as flechas são feitas de caniço e as suas pontas, de osso de peixe. Os animais são caçados do seguinte modo: o caçador, escondido entre as árvores, dispara sua seta contra a caça, abrindo-lhe uma ferida; ele passa, então, a segui-la como um cão de caça, até que ela caia por terra -geralmente, depois de um segundo golpe. O mesmo procedimento é utilizado para capturar as aves, as quais, por menores que sejam, nunca lhes escapam; quanto aos peixes, o caçador caminha pela beira de um rio e, ao localizar uma presa, dispara a sua flecha, larga rapidamente o arco no chão, mergulha na água e nada em direção à flecha, que tem o peixe espetado na ponta. Depois da caçada, quando cada um se encarregou de capturar as suas presas (animais, pássaros ou peixes), eles se reúnem, em número de 50 ou 60, em torno de um fogo aceso do modo seguinte: pegam dois gravetos e esfregam intensamente um contra o outro, até que peguem fogo. Armam, então, uma grande fogueira, onde cada um põe para grelhar o que conseguiu capturar. Os alimentos são consumidos sem sal e sem pão, artigos de que nunca ouviram falar, e sem o acompanhamento de qualquer bebida, a não ser água e tabaco. Na região do Amazonas não se pode encontrar nem ouro nem prata, mas há uma quantidade infinita de aves. Troquei duas delas por uma harpa de beiço, pela qual o dono havia recusado anteriormente dez xelins. A região também é repleta de deliciosas frutas, como abacaxis, bananas, goiabas e batatas, várias das quais comprei com botões de vidro ou com contas. Os habitantes daqui descansam numa espécie de rede, feita de casca de árvores, que denominam "hammock". Tais redes têm cerca três braças de comprimento por duas de largura e são franzidas nas extremidades, de modo a permitir que o dono amarre cada uma das pontas em uma árvore, a cerca de uma jarda e meia do solo, e deslize para dentro dela quando tem sono. O rei dos rios da região ostenta uma espécie de coroa, feita de penas de papagaios de diversas cores, porta, ou na cintura ou no pescoço, um colar de dentes ou garras de leão (ou de um outro animal estranho qualquer) e traz na mão uma espada de madeira. É por meio desses ornamentos que é reconhecido por todos como rei. Frequentemente um rei luta contra outros, servindo-se de suas canoas talhadas num único tronco de árvore. Ao capturarem um inimigo, os vencedores, não raramente, costumam comê-los. Por essa época, haviam decorrido dez semanas que estávamos no Amazonas e iniciamos os preparativos para a viagem de retorno, que se deu por um caminho diverso do percorrido na vinda, pois fôramos obrigados a navegar contra o vento, que soprava numa única direção e obrigava as embarcações a retornarem para o lugar de onde tinham vindo. (...)

A ilha de Morria
Morria é uma pequena ilha localizada no rio Amazonas, na parte mais distante das Índias Ocidentais. O lugar é habitado somente por mulheres, não havendo mesmo um único homem entre elas. Todas andam completamente nuas e se servem do arco e flecha para caçar; seus cabelos são longos, e seus seios, um pouco caídos. Há quem, na Inglaterra, julgue que essas mulheres têm o seio direito murcho ou decepado; hoje não é assim, e desconheço se o foi no passado.
Pude constatar isso ao ver 40, 50 ou 60 delas reunidas, todas com seus arcos e flechas nas mãos, caminhando pela praia; quando localizavam um peixe, disparavam uma flecha em sua direção, jogavam o arco no chão e mergulhavam rapidamente, trazendo para a praia o peixe espetado na ponta da flecha. Em diversos outros aspectos -na maneira de vestir e de comer, no modo de morar e nos costumes-, elas parecem imitar os índios do Amazonas, referidos acima.
Algumas dessas mulheres costumam carregar os seus filhos nas costas. Para tal, pegam pedaços de casca de árvore, passam uma parte por detrás das nádegas da criança e outra por detrás dos seus braços, na altura dos ombros, amarrando-a bem rente às costas, como uma espécie de cesta; por vezes, essas mulheres dão o seio para o seu filho lançando-o sobre os ombros.
A razão pela qual a ilha de Morria é habitada somente por mulheres é a seguinte. Um mês por ano, muitos homens das redondezas vêm, em suas canoas, para a ilha. Aí desembarcando, cada um deles passa a viver com uma mulher durante cerca de 30 dias. Ao partirem, os homens levam consigo todos os meninos, deixando as meninas com suas mães. Isso acontece uma vez por ano, no restante do tempo somente as mulheres permanecem no lugar.
Há uma outra coisa que vi e que não posso deixar de narrar. Aqui as ostras e os moluscos, ambos excelentes, nascem nas árvores; comi centenas deles. Para que se compreenda melhor como eles crescem, é preciso saber que as árvores estão muito próximas do mar e que, a cada alta da maré, os galhos são cobertos pela água cerca de uma braça, uma braça e meia; quando a maré abaixa, as ostras e moluscos são encontrados em grande quantidade pendurados pelos galhos, como bernacas nos lados do navio que, com a subida da maré, aproveitam a umidade.


Jean Marcel Carvalho França é professor de história da Universidade Estadual Paulista (Unesp/Franca). É autor de "Literatura e Sociedade no Rio de Janeiro Oitocentista" (Imprensa Nacional/Casa da Moeda) e "Outras Visões do Rio de Janeiro Colonial" (ed. José Olympio).


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