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São Paulo, domingo, 13 de abril de 2003

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Ponto de fuga

O que é e o que não é

Divulgação
Obra de George Maciunas, líder do movimento Fluxus


Meio irônico, meio a sério, André Breton dizia que as verdadeiras obras surrealistas deveriam vir com um símbolo ou marca registrada que as distinguisse. Da mesma maneira que certos filmes enunciavam "este é um filme da Paramount", um logotipo poderia assinalar: "Esta é uma pintura surrealista". Havia em Breton um purismo intransigente. Como papa do movimento, expulsava certos artistas, incorporava outros. Eram critérios sobretudo éticos, não transpareciam objetivamente nas telas. Vinham de conflitos circunstanciais e, está claro, mostraram-se muito estreitos em relação às proporções que o surrealismo tomou.
Há, no movimento norte-americano Fluxus, que eclodiu há uns 40 anos, uma situação parecida. A dinâmica de Fluxus, seu espírito antiarte, seu interesse pela banalidade do cotidiano, a adesão, ao menos em certos momentos, de nomes prestigiosos, como Joseph Beuys, Yoko Ono, Ben Vautier ou Nam June Paik, e sua grande repercussão internacional ultrapassam, em muito, as determinantes estabelecidas por George Maciunas (1931-78), que foi um de seus principais animadores.
A excelente exposição "O Que É Fluxus? O Que Não É! O Porquê.", há pouco encerrada no CCBB do Rio de Janeiro, depois de uma passagem por Brasília, parte, ao contrário, de um trabalho, numa certa medida, filológico. Sua grande referência é Maciunas. Na mostra, algumas obras vinham com a etiqueta "Fluxus" e outras, "Não Fluxus".

Fronteira - Não seria muito fácil distinguir, na mostra "Fluxus" do CCBB, o "autêntico" do "falso", se não fosse a etiqueta do lado. O curador Jon Hendricks quer pôr um fim na confusão e acertar as contas com quem vê Fluxus de modo muito largo. Revela, de modo involuntário, alguns pressupostos: 1) uma pureza primordial garantiria a especificidade subversiva de Fluxus; 2) o espírito acadêmico, particularmente norte-americano, não se sente confortável fora de classificações bem nítidas: ou é ou não é; 3) os colecionadores garantem o valor de suas peças segundo uma autenticidade maior ou menor. Nesse sentido, é importante assinalar as edições originais, o que essa exposição faz, com escrúpulo.
Nenhuma arte de contestação, nenhuma antiarte deixou de ser recuperada pela história e pelo mercado. Os objetos Fluxus, com sua poesia pós, ou neo, dadaísta, dão a impressão de uma fragilidade arqueológica. Parecem sobreviventes de tempos antigos. Há quase sempre uma delicadeza bem humorada, mesmo num momento, raro, quando Fluxus se politiza e apresenta uma bandeira americana, onde as estrelas são substituídas por caveirinhas, e as listas vermelhas são compostas por uma inscrição demonstrando que os "EUA ultrapassam todos os recordes de genocídio". A obra é de Maciunas e data de 1967-68.

Contraste - Jon Hendricks, o curador da mostra "Fluxus" no CCBB, é também o curador, há mais de 20 anos, da The Gilbert and Lila Silverman Fluxus Collection Foundation, de Detroit (EUA), de onde vieram as peças apresentadas no Brasil. Editou o ótimo catálogo, reunindo documentos de época e também análises de especialistas. Alguns deles, como Robert Bloch, têm posições muito diferentes das de Hendricks, diante das definições de Fluxus. Bloch diz, por exemplo: "Maciunas (...) passou a sentir um prazer pueril em banir as pessoas do Fluxus. Era claramente uma diversão pessoal dele, e você não pode basear uma análise histórica séria nem uma definição de Fluxus nisso".

Exílio - Ben Vautier, um dos conhecidos participantes de Fluxus e cuja inquietação efervescente, meio angustiada, nunca perde o bom humor, possui um site na internet: http://www.ben-vautier.com/2002. Ali há uma longa página sobre Fluxus, onde se lê, entre outras coisas: "Naquela época, como no tempo dos surrealistas, excomungava-se alegremente. Todos os membros de Fluxus se lembram do ultimato de Maciunas: quem pronunciasse uma vez o nome de Yoko Ono, seria excomungado durante um ano".

Jorge Coli é historiador da arte.
E-mail: jorgecoli@uol.com.br


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