São Paulo, Domingo, 13 de Junho de 1999
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Proporções heróicas

M endeleiev (cujo nome e cujo rosto barbudo e selvagem eram conhecidos de todos os estudantes secundaristas de minha época) era uma figura de proporções heróicas, um homem de interesses enciclopédicos. Como observou um de seus alunos, suas aulas eram "repletas de excursões nos campos da mecânica, física, astronomia, cosmogonia, meteorologia, geologia, fisiologia -tanto vegetal quanto animal-, agricultura e até mesmo em ramos da aeronáutica e artilharia". Era o principal conselheiro científico russo e tinha estreito envolvimento com a indústria e a agricultura de seu país, em setores que incluíam os do carvão mineral, petróleo, queijo e cerveja. Além disso, era amante da música e amigo íntimo de Borodin (que também era químico). E escreveu o texto de química mais vívido e de leitura mais prazerosa jamais publicado, "Os Princípios da Química".
Seu interesse pela classificação remetia a sua época de estudante, quando se sentiu especialmente atraído pela taxonomia de animais, plantas e minerais; e foi então, a partir de 1854, que começou a refletir sobre os métodos possíveis de classificação dos elementos químicos. Havia, na época, 65 elementos conhecidos e milhares de compostos. Alguns deles eram conhecidos em grande detalhe, mas faltava qualquer princípio organizador global. (Alguns elementos, de fato, pareciam ser quase impossíveis de enquadrar em categorias. O tálio, por exemplo, era semelhante ao chumbo, sob alguns aspectos, à prata, em outros, ao alumínio, em outros, e ao potássio, em ainda outros.) Mendeleiev havia participado da conferência de Karlsruhe, em 1860, e ficara fascinado pelos novos conceitos de massa atômica, que prometiam a possibilidade de criar uma classificação como a que ele sonhara.
Com as massas atômicas antigas, anteriores a Karlsruhe, era possível obter, como fez Dobereiner, um senso das tríades ou grupos locais, tais como o potássio 39, rubídio 85, césio 133, no caso dos metais alcalinos, ou do cálcio 20, estrôncio 44 e bário 68, no caso dos metais alcalino-terrosos. Foi apenas quando Cannizarro demonstrou que as massas atômicas corretas do cálcio, estrôncio e bário eram 40, 88 e 136 que ficou claro quão próximos esses eram do potássio (39), rubídio (85) e césio (133). Foi essa proximidade, além da proximidade das massas atômicas dos halogênios -cloro (35,5), bromo (80) e iodo (127)-, que levou Mendeleiev, em 1868, a traçar uma pequena grade bidimensional justapondo os três grupos:
Cl 35,5000K 390000Ca 40
Br 800000Rb 85000Sr 88
I 1270000Cs 13300Ba 136
E foi então, ao perceber que a disposição dos três grupos de elementos em ordem de massa atômica produzia um padrão -um halogênio seguido por um metal alcalino, seguido por um metal alcalino-terroso- que se repetia, que Mendeleiev pressentiu que esse padrão provavelmente era um fragmento de um desenho maior, chegando à idéia da existência de uma periodicidade abrangente que governa todos os elementos: a lei periódica.
A primeira pequena tabela de uma dúzia de elementos que Mendeleiev traçou teve que ser preenchida, depois alongada e expandida em todas as direções, como se preenche um jogo de palavras cruzadas, e para isso foi preciso fazer algumas especulações ousadas. Mendeleiev perguntou que elemento era quimicamente próximo dos metais alcalino-terrosos, mas possuía massa atômica que viria após a do lítio. Aparentemente, não existia nenhum elemento que se enquadrava nessa descrição. Ou seria ele o berílio, geralmente considerado trivalente, com massa atômica de 14,5? E se, em lugar disso, fosse bivalente -logo, com massa atômica não de 14,5, mas de 9? Nesse caso viria depois do lítio e se encaixaria com perfeição no espaço vazio.
Baseando-se alternadamente em cálculos conscientes e especulação, em intuição e análise, no prazo de algumas semanas Mendeleiev concluiu a tabulação de 30 e poucos elementos em ordem de massa atômica ascendente -uma tabulação que vinha sugerir que ocorria uma recapitulação das propriedades a cada oito elementos. Finalmente, na noite de 16 de fevereiro de 1869, segundo se conta, ele teve um sonho no qual viu 61 dos 65 elementos dispostos numa grande tabela, inter-relacionados numa grade feita de fileiras horizontais e verticais. Ao acordar, na manhã seguinte, pôs seu sonho no papel.
Essa primeira tabela, apresentada à Sociedade Química Russa duas semanas mais tarde, ainda seria consideravelmente revista nos anos seguintes, mas o padrão geral estava claro. O hidrogênio tinha seu período próprio e singular na posição mais alta da tabela (Mendeleiev ainda não sabia da existência do hélio). O segundo período começava com o lítio e prosseguia com o berílio, o boro, o carbono, o nitrogênio, o oxigênio e o flúor. A seguir, passava-se para o início do terceiro período, que começava com o sódio, análogo do lítio, o elemento acima dele. Procedendo dessa maneira, era evidente que cada período continha um septeto de elementos, cada um dos quais repetia as propriedades do elemento diretamente acima dele no período anterior. (Newlands, ao fazer a mesma observação, comparou essa repetição à repetição das oitavas na escala musical e a chamou de "a lei das oitavas".)
Foi a tabela revista, de 1871, que vi no Museu de Ciências em 1945 e que passou a ser encontrada em todos os livros didáticos e museus por um século. Ela tinha a forma de um retângulo largo, com grupos e períodos que formavam intersecções. Era a valência, em primeiro lugar, que determinava os grupos, desde o grupo 1, que continha os metais alcalinos, com valência 1, até o grupo 7, o dos halogênios, com valência 7. Achei especialmente belas as amostras que o museu tinha dos elementos deste grupo: o vapor amarelo esverdeado do cloro, o líquido vermelho escuro, esfumaçado, do bromo, e os cristais quase negros e brilhantes do iodo, encimados por um leve vapor violeta. Finalmente, havia o grupo 8, que continha os metais ferrosos e os metais platinados.
A tabela podia ser lida verticalmente, passando de um grupo a outro. Era o que Dobereiner e os químicos anteriores a 1860 teriam feito. Mas também era possível lê-la horizontalmente, para ter uma idéia geral de cada período, do modo como as propriedades dos elementos mudavam com cada incremento de massa atômica, até que, de repente, o período chegava ao fim e nos víamos no período seguinte, em que todos os elementos recapitulavam as propriedades anteriores, com grande beleza. Era isso, sobretudo, que nos dava a idéia global da tabela, da misteriosa realidade da grandiosa lei que ela encerrava.


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