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Proporções heróicas
M endeleiev (cujo
nome e cujo rosto barbudo e selvagem eram conhecidos de todos os estudantes secundaristas
de minha época) era uma figura de
proporções heróicas, um homem
de interesses enciclopédicos. Como observou um de seus alunos,
suas aulas eram "repletas de excursões nos campos da mecânica,
física, astronomia, cosmogonia,
meteorologia, geologia, fisiologia
-tanto vegetal quanto animal-,
agricultura e até mesmo em ramos
da aeronáutica e artilharia". Era o
principal conselheiro científico
russo e tinha estreito envolvimento com a indústria e a agricultura
de seu país, em setores que incluíam os do carvão mineral, petróleo, queijo e cerveja. Além disso, era amante da música e amigo
íntimo de Borodin (que também
era químico). E escreveu o texto de
química mais vívido e de leitura
mais prazerosa jamais publicado,
"Os Princípios da Química".
Seu interesse pela classificação
remetia a sua época de estudante,
quando se sentiu especialmente
atraído pela taxonomia de animais, plantas e minerais; e foi então, a partir de 1854, que começou
a refletir sobre os métodos possíveis de classificação dos elementos
químicos. Havia, na época, 65 elementos conhecidos e milhares de
compostos. Alguns deles eram conhecidos em grande detalhe, mas
faltava qualquer princípio organizador global. (Alguns elementos,
de fato, pareciam ser quase impossíveis de enquadrar em categorias.
O tálio, por exemplo, era semelhante ao chumbo, sob alguns aspectos, à prata, em outros, ao alumínio, em outros, e ao potássio,
em ainda outros.) Mendeleiev havia participado da conferência de
Karlsruhe, em 1860, e ficara fascinado pelos novos conceitos de
massa atômica, que prometiam a
possibilidade de criar uma classificação como a que ele sonhara.
Com as massas atômicas antigas,
anteriores a Karlsruhe, era possível obter, como fez Dobereiner,
um senso das tríades ou grupos locais, tais como o potássio 39, rubídio 85, césio 133, no caso dos metais alcalinos, ou do cálcio 20, estrôncio 44 e bário 68, no caso dos
metais alcalino-terrosos. Foi apenas quando Cannizarro demonstrou que as massas atômicas corretas do cálcio, estrôncio e bário
eram 40, 88 e 136 que ficou claro
quão próximos esses eram do potássio (39), rubídio (85) e césio
(133). Foi essa proximidade, além
da proximidade das massas atômicas dos halogênios -cloro (35,5),
bromo (80) e iodo (127)-, que levou Mendeleiev, em 1868, a traçar
uma pequena grade bidimensional justapondo os três grupos:
Cl 35,5000K 390000Ca 40
Br 800000Rb 85000Sr 88
I 1270000Cs 13300Ba 136
E foi então, ao perceber que a
disposição dos três grupos de elementos em ordem de massa atômica produzia um padrão -um
halogênio seguido por um metal
alcalino, seguido por um metal alcalino-terroso- que se repetia,
que Mendeleiev pressentiu que esse padrão provavelmente era um
fragmento de um desenho maior,
chegando à idéia da existência de
uma periodicidade abrangente
que governa todos os elementos: a
lei periódica.
A primeira pequena tabela de
uma dúzia de elementos que Mendeleiev traçou teve que ser preenchida, depois alongada e expandida em todas as direções, como se
preenche um jogo de palavras cruzadas, e para isso foi preciso fazer
algumas especulações ousadas.
Mendeleiev perguntou que elemento era quimicamente próximo
dos metais alcalino-terrosos, mas
possuía massa atômica que viria
após a do lítio. Aparentemente,
não existia nenhum elemento que
se enquadrava nessa descrição. Ou
seria ele o berílio, geralmente considerado trivalente, com massa
atômica de 14,5? E se, em lugar
disso, fosse bivalente -logo, com
massa atômica não de 14,5, mas de
9? Nesse caso viria depois do lítio e
se encaixaria com perfeição no espaço vazio.
Baseando-se alternadamente em
cálculos conscientes e especulação, em intuição e análise, no prazo de algumas semanas Mendeleiev concluiu a tabulação de 30 e
poucos elementos em ordem de
massa atômica ascendente -uma
tabulação que vinha sugerir que
ocorria uma recapitulação das
propriedades a cada oito elementos. Finalmente, na noite de 16 de
fevereiro de 1869, segundo se conta, ele teve um sonho no qual viu
61 dos 65 elementos dispostos numa grande tabela, inter-relacionados numa grade feita de fileiras
horizontais e verticais. Ao acordar, na manhã seguinte, pôs seu
sonho no papel.
Essa primeira tabela, apresentada à Sociedade Química Russa
duas semanas mais tarde, ainda
seria consideravelmente revista
nos anos seguintes, mas o padrão
geral estava claro. O hidrogênio tinha seu período próprio e singular
na posição mais alta da tabela
(Mendeleiev ainda não sabia da
existência do hélio). O segundo
período começava com o lítio e
prosseguia com o berílio, o boro, o
carbono, o nitrogênio, o oxigênio
e o flúor. A seguir, passava-se para
o início do terceiro período, que
começava com o sódio, análogo
do lítio, o elemento acima dele.
Procedendo dessa maneira, era
evidente que cada período continha um septeto de elementos, cada um dos quais repetia as propriedades do elemento diretamente acima dele no período anterior.
(Newlands, ao fazer a mesma observação, comparou essa repetição à repetição das oitavas na escala musical e a chamou de "a lei
das oitavas".)
Foi a tabela revista, de 1871, que
vi no Museu de Ciências em 1945 e
que passou a ser encontrada em
todos os livros didáticos e museus
por um século. Ela tinha a forma
de um retângulo largo, com grupos e períodos que formavam intersecções. Era a valência, em primeiro lugar, que determinava os
grupos, desde o grupo 1, que continha os metais alcalinos, com valência 1, até o grupo 7, o dos halogênios, com valência 7. Achei especialmente belas as amostras que
o museu tinha dos elementos deste
grupo: o vapor amarelo esverdeado do cloro, o líquido vermelho
escuro, esfumaçado, do bromo, e
os cristais quase negros e brilhantes do iodo, encimados por um leve vapor violeta. Finalmente, havia o grupo 8, que continha os metais ferrosos e os metais platinados.
A tabela podia ser lida verticalmente, passando de um grupo a
outro. Era o que Dobereiner e os
químicos anteriores a 1860 teriam
feito. Mas também era possível
lê-la horizontalmente, para ter
uma idéia geral de cada período,
do modo como as propriedades
dos elementos mudavam com cada incremento de massa atômica,
até que, de repente, o período chegava ao fim e nos víamos no período seguinte, em que todos os elementos recapitulavam as propriedades anteriores, com grande beleza. Era isso, sobretudo, que nos
dava a idéia global da tabela, da
misteriosa realidade da grandiosa
lei que ela encerrava.
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