São Paulo, Domingo, 13 de Junho de 1999
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

Bombardeio das folhas de ouro

Em tudo isso Mendeleiev deu mostras de uma confiança tão grande em suas idéias que chegou a chocar alguns de seus contemporâneos (Meyer, por exemplo, achava monstruosa a idéia de se mudar massas atômicas simplesmente por não se encaixarem nas previsões).
Sua maior aposta foi reservada aos vários espaços vazios em sua tabela, pois, conforme anunciou, esses eram os espaços ocupados por elementos "ainda desconhecidos". Ademais, Mendeleiev afirmou que, fazendo uma extrapolação a partir das propriedades dos elementos situados acima e abaixo de cada desconhecido (e também, até certo ponto, daqueles situados de cada lado dele), seria possível traçar previsões seguras quanto às propriedades desses elementos desconhecidos. E foi exatamente isso que fez, prevendo com grande minúcia um novo elemento que seguiria o alumínio no grupo 3 (ele o chamou de "eca-alumínio", usando a palavra em sânscrito que significa "o seguinte"): seria, previu, um metal semelhante à prateado, com densidade 6,0 e massa atômica 68.
Quatro anos mais tarde, em 1875, foi encontrado um elemento exatamente assim: o gálio. Mendeleiev também previu a existência do "eca-boro" e do "eca-silício", e também esses não demoraram a ser descobertos (sendo batizados por seus descobridores patriotas de escândio e germânio). Mendeleiev previra sua aparência, propriedades químicas, densidades e massas atômicas com precisão quase total. Foi essa capacidade de prever elementos de maneira tão detalhada que convenceu muitos de seus colegas químicos de que seu sistema não era uma simples ordenação arbitrária dos elementos, "superficial e ilusória", e sim uma expressão da realidade, "um sistema natural", nas palavras do próprio Mendeleiev.
Dois grupos de elementos apresentavam desafios especiais. Eram os elementos transitórios, como acabariam por ser conhecidos -que incluíam o vanádio, o tungstênio, o ósmio e o tântalo, elementos que tinham sido os favoritos de Mendeleiev nos anos 1850, além de elementos comuns, como o ferro e o níquel-, e os chamados elementos "terrosos raros". Nenhum desses grupos parecia encaixar-se nas oitavas bem delimitadas dos períodos anteriores.
A solução encontrada por Mendeleiev para os elementos de transição foi criar para eles subgrupos nos períodos posteriores, mas ela tinha a desvantagem de causar um amontoamento desordenado na tabela e situar elementos muito díspares uns ao lado de outros (por exemplo, os metais "de cunhagem", do grupo 1, ao lado dos metais alcalinos). O problema dos metais terrosos raros era ainda mais difícil. Apenas três ou quatro eram conhecidos quando Mendeleiev primeiro visualizou sua tabela, mas, à medida que o século avançava, foram sendo descobertos cada vez mais deles. O problema era que eram quase indiferenciáveis, em termos químicos, e todos possuíam a mesma valência, apesar de suas massas atômicas subirem de maneira regular. Parecia ser impossível acomodá-los no formato de grade da tabela, a não ser que, de algum modo, fossem todos colocados em um único espaço no período 6.
Os problemas trazidos à tona por esses elementos -dez elementos de transição em cada um dos períodos 4, 5 e 6, e, além disso (como acabou ficando claro), 14 elementos terrosos raros no período 6- obrigaram Mendeleiev e outros a testar formatos diferentes de tabela -formas "longas", helicoidais, piramidais etc.- que, em certo sentido, conferiram a ela "dimensões" adicionais que podiam incluir espaço para os elementos de transição e terrosos raros. Durante a vida de Mendeleiev foram publicadas quase cem tabelas desse tipo.
Se os químicos do século 19 se surpreendiam continuamente ao descobrir cada vez mais elementos terrosos raros, seu espanto não foi nada comparado ao que sentiram na década de 1890, quando foi descrita uma família inteira de novos elementos, a dos gases nobres, ou inertes. O próprio Mendeleiev não fizera idéia de sua existência e, de início, os viu com ceticismo (inicialmente, pensou que o argônio, o primeiro a ser descoberto, não passasse de uma forma mais pesada de nitrogênio). Mas, com a descoberta dos outros -hélio, neônio, criptônio, xenônio e, finalmente, radônio-, ficou claro que formavam um grupo periódico perfeito. Outros grupos de elementos demonstravam possuir analogias; também os gases nobres eram absolutamente idênticos, idênticos em sua incapacidade de formar compostos; aparentemente, tinham valência zero. Então Mendeleiev acrescentou aos oito grupos da tabela um grupo final, o grupo zero.
Com os gases nobres em seus devidos lugares, destacava-se o número de elementos em cada período: dois (hidrogênio e hélio) no primeiro, oito no segundo e terceiro, oito "típicos" e dez "de transição", num total de 18, nos quarto e quinto períodos, oito mais dez mais 14 elementos terrosos raros no sexto período, ou seja, 32. 2, 8, 8, 18, 18 e 32 -eram esses os números mágicos. Mas o que significavam esses números misteriosos? E qual era, em termos mais amplos, a base das propriedades químicas?
Mendeleiev voltava constantemente a essas questões, falava no "mundo invisível dos átomos químicos" e esperava encontrar uma explicação da tabela periódica ao nível atômico. Ele ansiava por uma nova "mecânica química", uma mecânica atômica comparável à mecânica clássica de Newton. No entanto, podemos nos indagar o que ele teria pensado da forma que a revolução acabou por assumir de fato, após sua morte -uma forma totalmente não-newtoniana, que pedia conceitos totalmente inimagináveis em termos de mecânica clássica.
Mendeleiev estava na casa dos 80 anos quando tomou conhecimento da radiatividade, da transmutação e dos elétrons. Tudo isso o perturbava -para ele, assim como para Dalton, os átomos eram pequenas esferas indivisíveis, imutáveis e indestrutíveis. Ele sentia que havia uma aritmética essencial que operava no reino atômico invisível, uma aritmética feita de números inteiros, que ele via como sendo incompatível com a existência de elétrons, ou qualquer coisa menos integral do que o átomo.
A nova visão da constituição interna dos átomos surgiu em 1911, quatro anos apenas após a morte de Mendeleiev, quando Rutherford (ao bombardear folhas de ouro com partículas alfa e constatar que, muito de vez em quando, uma delas era desviada de volta) inferiu que o átomo deveria ter uma estrutura semelhante a um sistema solar em miniatura, com quase toda sua massa concentrada no núcleo minúsculo, muito denso, positivamente carregado, e cercado, a grande distância, por elétrons relativamente isentos de massa -o átomo nuclear. Tal átomo, se fosse regido pelas leis da mecânica clássica, não seria estável; seus elétrons perderiam energia à medida que orbitassem, e, cedo ou tarde, mergulhariam no núcleo pesado. No entanto, a própria essência dos átomos era sua absoluta estabilidade.
Trabalhando com Rutherford em 1912, Bohr tinha plena consciência disso e da necessidade de uma abordagem radicalmente nova. Ele a encontrou na teoria quântica. Os estudos feitos por Planck da radiação do calor e os de Einstein com o efeito fotoelétrico tinham indicado que a energia eletromagnética -luz, radiação- não era contínua, mas emitia ou absorvia em pacotes distintos, ou "quanta". Num salto espantoso, Bohr ligou esses conceitos ao modelo do átomo proposto por Rutherford e com a natureza muito conhecida, mas antes inexplicável, dos espectros óticos -o fato de que eles não apenas eram característicos de cada elemento, mas consistiam em uma multidão de linhas -ou frequências- finas e distintas. Todas essas considerações foram reunidas no átomo de Bohr, no qual se considerava que os elétrons ocupavam uma série de órbitas, ou cascas, de energias diferentes, em torno do núcleo. Bohr falava dessas órbitas como sendo "estados estacionários" dotados de uma "estabilidade peculiar, mecanicamente inexplicável", que podia ser conservada por bilhões de anos.
Embora não existisse difusão energética do átomo nesses estados estacionários, poderia havê-lo (se, por exemplo, o átomo fosse irradiado) -um salto de elétrons de um nível energético a outro, acompanhado pela emissão ou absorção de um quantum de energia.
Bohr divulgou seu modelo do átomo na primavera de 1913, e alguns meses mais tarde Moseley, usando raios X (que tinham comprimento de onda muito menor) em lugar de luz visível, constatou a existência de uma relação quase íntima entre a ordem dos elementos e seu espectro de raios X, que mudava de maneira simples e sistemática acompanhando a progressão dos elementos. Esses espectros singulares de raios X, com seus incrementos distintos de frequência à medida que se passava de um elemento a outro, podiam ter correlação, pensou Moseley, com o número de cargas positivas no núcleo, e para isso era usada a expressão "número atômico".
Com números atômicos não havia brechas, frações ou irregularidades, como havia com as massas atômicas. Era o número atômico, e não a massa atômica, que determinava a ordem dos elementos. E, com a substituição das massas atômicas por números atômicos na tabela periódica, desapareciam todas as anomalias inquietantes.


Texto Anterior: Experiências dramáticas
Próximo Texto: A escada atômica
Índice



Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Agência Folha.