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São Paulo, domingo, 13 de julho de 2003

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OS IRMÃOS CHAPMAN, "BAD BOYS" DA ARTE BRITÂNICA QUE PARTICIPARAM DA HISTÓRICA MOSTRA "SENSATION", VOLTAM A CHOCAR O MUNDO AO MODIFICAR GRAVURAS DA SÉRIE "DESASTRES DA GUERRA", DE GOYA, E PROVOCAM UM NOVO CISMA NA CRÍTICA DE ARTE NO BRASIL E NO EXTERIOR

VANDALISMO CONCEITUAL


Gravura de Goya alterada pelos Chapman


Juliana Monachesi
free-lance para a Folha

Os "bad boys" de pior reputação da arte contemporânea britânica acenderam o estopim da crítica novamente. Dando continuidade aos trabalhos em que se valem de obras de Goya, os artistas transformaram uma série de gravuras do artista espanhol em história em quadrinhos de mau gosto. A diferença é que, desta vez, a apropriação não foi apenas conceitual: Jake e Dinos Chapman (37 e 41 anos, respectivamente) interferiram diretamente nos originais de uma tiragem completa (80 gravuras) de "Desastres da Guerra" (adquirida por 40 mil euros há dois anos), colorindo com aquarela os rostos dos carrascos e de suas vítimas, transmutando-os em seres com cabeça de cachorro, macaco ou palhaço.
Narração hiper-realista da Guerra de Independência Espanhola diante da invasão francesa, os "Desastres" (1810-1815) -série da qual foi exposta uma parte na 23ª Bienal Internacional de São Paulo (1996)- denunciam a barbárie e o sentimento de profanação que o sacrifício inútil da vida humana produz. Há mais de dez anos os irmãos Chapman se inspiram em obras de Goya, artista que classificam como "uma fonte da qual ainda há muito a vampirizar".
Para Jake Chapman, "aquilo que faz de Goya um artista apaixonante é, por um lado, a íntima contradição entre a influência artística exercida sobre ele pelo Iluminismo e, por outro, a violência cometida contra seu povo em nome da razão. Diz-se frequentemente que essa obra [os "Desastres da Guerra"] é uma representação do atroz. A meus olhos, Goya quis sobretudo expor o quanto a violência é necessária para a razão. Essas gravuras descrevem os mecanismos desta "moral esclarecida" pela qual a violência é um meio eficaz de demonstrar a necessidade absoluta de uma moldura ética".
Por fundamentados que estejam conceitualmente ao adulterar obras originais do gênio espanhol e por mais lastros na história da arte que se possam encontrar -desde o gesto iconoclasta de Duchamp ao colocar bigodes na "Monalisa" de Leonardo da Vinci até o "Desenho Apagado de De Kooning", por Rauschenberg-, as críticas à obra dos Chapman pulularam. Foram chamados de vândalos demoníacos e até de hereges. O conceituado crítico de arte australiano Robert Hughes, que acaba de concluir um livro sobre Goya, vociferou em entrevista ao jornal inglês "The Guardian": "Goya vai obviamente sobreviver a esses idiotas cujos nomes serão esquecidos em poucos anos... Talvez seja hora de eles colocarem cabeças de Mickey na Capela Sistina".
Expostas até o mês passado no Museu de Arte Moderna de Oxford, as gravuras alteradas pelos Chapman (e reintituladas "Insult to Injury") geraram até atentados contra os artistas: um homem não-identificado foi preso em maio depois de jogar um pote de tinta vermelha em Jake Chapman depois de um debate com o artista no museu onde ocorria a exposição e no qual muitos espectadores teriam feito críticas enfurecidas devido à intervenção na obra de Goya. Segundo relatos, o homem teria se levantado, dito que era espanhol e que os espanhóis amavam Goya e, então, lançado o pote contra o rosto do artista, que estava diante das gravuras.
Em depoimentos ao Mais!, historiadores da arte e críticos brasileiros relativizaram o "escândalo". Para Teixeira Coelho, curador e diretor do Museu de Arte Contemporânea da USP durante quatro anos, "a noção de patrimônio não é absoluta nem definitiva". À medida que alguém é proprietário de uma obra, possui um direito largo sobre ela e seu compromisso para com a humanidade é relativo. "É isso que o artista está dizendo: ele cria, ele destrói a arte; e, no campo da arte, é difícil negar esse ponto conceitual."
A maioria dos críticos analisa o trabalho na esteira de obras iconoclásticas à la Duchamp, denominando mesmo as gravuras de Chapman "retificações", em alusão aos "ready-mades retificados" do artista francês. "Não vejo dano ou vandalismo, vejo uma radicalização de ações e estratégias da história da arte. Quando Duchamp fez intervenções em reproduções de obras, o gesto já foi considerado revoltante. A intervenção na idéia do bem cultural pesa mais do que a intervenção no bem em si", afirma Teixeira Coelho.

"É uma espécie de terrorismo cultural, como arte, não tem importância nenhuma"
Ferreira Gullar

"Não vejo vandalismo, vejo uma radicalização de ações e estratégias da história da arte"
Teixeira Coelho

Na opinião do poeta e crítico de arte Ferreira Gullar, trata-se de mera repetição do gesto de Duchamp. "Um trabalho como esse não tem originalidade nenhuma. É uma falta de imaginação. Gente criadora não se preocupa com isso, não precisa se valer desse tipo de apropriação indébita", afirmou. Para o crítico, é lamentável que o gesto tenha se dado sobre originais de Goya: "É uma espécie de terrorismo cultural, mas ainda assim, como arte, não tem importância nenhuma".
Para o curador inglês Gerard Hemsworth (leia entrevista à página 6), que acompanhou desde o começo os bastidores da produção dos YBAs (Young British Artists) -geração que conquistou o estrelato com a mostra "Sensation" e da qual fazem parte, além dos Chapman, os não menos polêmicos Damien Hirst, Marc Quinn, Tracey Emin e Chris Ofili-, a repetição de um mecanismo histórico não desvaloriza uma obra de potência: "Quando você pega um trabalho tão importante, é incrivelmente difícil refazer algo similar e tão forte quanto feito anteriormente".
Outro elemento a ser considerado na avaliação da obra dos Chapman, para Teixeira Coelho, é a qualidade da intervenção. "Talvez o resultado sobre a obra já feita possa melhorá-la." Entretanto o crítico não aposta na excepcionalidade da série de gravuras retificadas, antes, detecta na ação dos artistas uma motivação à la "Sensation" de gerar escândalos. Para ele, não há dúvida de que os Chapman gostam de chamar a atenção; e há um setor da arte contemporânea que já não consegue chamar a atenção por outras vias, então pode estar partindo para esse caminho de atacar fisicamente obras da tradição como uma última estratégia para escandalizar.
A qualidade do resultado é determinante também na opinião de Rosângela Rennó (leia entrevista sobre sua nova exposição no RJ à página 8), uma artista que tem por hábito e estratégia de trabalhar com a apropriação: "Quando o Rauschenberg pediu ao De Kooning um desenho dele, para que pudesse apagá-lo e exibi-lo como um obra de sua autoria, recebeu um excelente desenho para que a tarefa se tornasse ainda mais difícil, tanto do ponto de vista técnico quanto ético. Quem sabe se Goya não teria gostado da intervenção dos Chapman se tivesse tido a oportunidade de presenciá-la?", pergunta.
Mais importante para a discussão, segundo Teixeira Coelho, é a questão que a obra levanta acerca do patrimônio: "Existe em política cultural um conceito pouco discutido, que é o da desaquisição de um bem cultural. Os museus têm normas para adquirir bens, tornando-os patrimônio público, mas não possuem mecanismos de despatrimonialização. Uma vez que um bem é considerado patrimônio, não pode deixar de sê-lo, e isso é inaceitável. Eu vejo nesse ato dos Chapman um convite ao desenvolvimento de princípios de despatrimonialização; isso é que interessa conceitualmente na obra".


Com o "Financial Times".


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