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São Paulo, domingo, 13 de julho de 2003

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INTEGRANTE DE JÚRI QUE PREMIOU OS CHAPMAN NO MÊS PASSADO, O CURADOR INGLÊS GERARD HEMSWORTH DIZ QUE AS ALTERAÇÕES FEITAS NA OBRA DE GOYA HOMENAGEIAM O PINTOR ESPANHOL

EXTENSÃO DO DOMÍNIO DA LUTA

free-lance para a Folha

Diretor de pós-graduação do prestigiado Goldsmiths College, em Londres, integrante do júri que concedeu aos Chapman, no final de junho, o Prêmio Charles Wollaston para a obra de mais destaque na concorrida mostra de verão da Royal Academy, artista e curador da exposição de pintura britânica em cartaz até sexta-feira na galeria André Millan, em SP, Gerard Hemsworth falou ao Mais! sobre a cena artística inglesa, a polêmica dos Chapman e sobre seus projetos curatoriais no Brasil. (Juliana Monachesi)

Em recente mesa-redonda sobre a exposição cuja curadoria o sr. assina em SP, o sr. afirmou que, quando um artista está tentando ser criativo, pode acabar fazendo muitas coisas estúpidas e que toda arte interessante só pode nascer dessa mistura de coragem e estupidez. Essa seria também uma boa definição para o trabalho recente dos irmãos Chapman?
Sim, é o que acontece com os irmãos Chapman. Apesar das acusações de vandalismo de que essa série de "gravuras retificadas" foi alvo, a dupla de artistas tem uma extensa produção em cima do legado de Goya... Ambos, Jake e Dinos, têm imenso respeito por Goya. Quero dizer, esse é o artista que eles escolheram. Se você vai usar um artista como uma plataforma para o seu próprio trabalho, você vai escolher o melhor que puder, aquele que você considera o melhor de todos. Você não escolhe um artista ruim para quem você não liga. Acho que o trabalho deles é crítico, mas sobretudo toma a obra de Goya como uma plataforma da qual eles pulam.

Mas danificar obras originais... o senhor tende a considerar isso criativo ou apenas estúpido?
Às vezes nós temos de ser lembrados de um momento muito importante na arte e acho que, quando Rauschenberg apagou o desenho de De Kooning, em 1953, temos de lembrar que De Kooning era naquela época o artista mais importante em Nova York. Ele era o Deus daquele período. Ou seja, ter realmente um desenho e apagá-lo... A pista está no título: é um "Erased De Kooning Drawing" (Um Desenho Apagado de De Kooning), não é um desenho destruído, e isso é muito importante. É ao mesmo tempo uma homenagem e uma crítica. Para Rauschenberg fazer aquele trabalho, ele depende completamente de De Kooning. Para os Chapman fazerem aquele trabalho, eles dependem inteiramente de Goya, mas eles usam esses artistas como um degrau para uma idéia interessante. Seria tolo dizer, dos Chapman: "Isso já foi feito 50
anos atrás". Quando você pega um trabalho tão importante, é incrivelmente difícil refazer algo similar e tão forte quanto feito anteriormente. Exige artistas muito confiantes, o que os Chapman certamente são.

O sr. diria que existem limites para um artista, em termos de ética, em relação ao patrimônio universal? Ou seja, um artista tem mesmo o direito de interferir, danificar, apagar ou destruir uma obra-prima?
Acho que existe uma resposta muito simples para isso: que um artista, ou qualquer pessoa criativa, nunca tem de justificar o que faz, mas tem de ser responsável por aquilo que faz. E esse é o elemento importante: no final eles são responsáveis, mas não têm de justificar. Portanto, em termos de ética, eles têm de assumir a responsabilidade. É muito questionável dizer para artistas jovens: "Isso você não pode fazer", porque, tão logo você diz isso a um artista jovem, é isso o que eles vão fazer.

No início dos anos 90, houve um movimento na Inglaterra chamado "Cool Britannia", de florescimento de uma nova cultura britânica, impulsionada pelo Estado, que investiu muito em arte e música nacionais. Hoje já se fala em um decadência do britpop... o sr. vê um paralelo em relação à cena artística britânica com o ocaso de estrelas da "Sensation", da qual os Chapman, inclusive, participaram?
Mais ou menos tudo é dirigido pelo mercado, então, historicamente você tem situações construídas em diferentes países em certos períodos. Não é realmente um movimento, é um pacote. Você pode falar do expressionismo em Nova York ou do expressionismo alemão ou os italianos e então é a vez dos britânicos. O que acontece é que você tem um pacote, você tem um grupo de artistas que faz parecer que algo interessante está acontecendo. Você também tem colecionadores de arte -no caso da Inglaterra, Charles Saatchi- que investem muito dinheiro em artistas jovens, e a cena se torna muito excitante. Na maior parte dos casos, esses fenômenos duram cerca de cinco anos. O que acontece depois de todo pacote é que restam dois ou três artistas muito bons, e os outros não são interessantes o bastante. Alguns artistas fazem uma contribuição para a arte em um período muito curto e alguns o fazem ao longo de uma vida inteira. Quero dizer, Jasper Johns deu sua contribuição no final dos anos 50; foi fenomenal o que ele fez, três ou quatro idéias realmente muito boas, e sua carreira inteira está baseada no que aconteceu nos anos 50. Há outros artistas que não têm esse sucesso poderoso, eles são vagarosos, têm uma carreira muito mais longa, são artistas importantes para a arte que nunca chegam a ser superstars. Antes havia os YBAs (Young British Artists), os americanos antes deles, os alemães antes deles. Isso é muito valioso para a comunidade artística e também é muito valioso para as artes no longo prazo. No curto prazo, produz uma situação excitante, mas dizer que alguns estão ficando de lado é normal, é o esperado.

O sr. chamaria Damien Hirst de um fenômeno de cinco anos?
Não, absolutamente não.

Aquelas pinturas abstratas que ele vem fazendo não configuram um certo desnorteamento depois de esculturas tão significativas como a do tubarão mergulhado em formol ("A Impossibilidade Física da Morte na Mente de Algo Vivo", 1991)?
Elas não são as minhas obras favoritas dele, mas acho que, se o Damien fez muitos trabalhos ruins, ele também fez muitos trabalhos bons. Ele fez muitas obras, quero dizer, isso é o que você pode dizer do Picasso: o que faz de Picasso um artista tão bom são todos os trabalhos ruins que ele fez, porque fazem seus bons trabalhos parecerem tão melhores! Quer você goste ou não de suas obras, você tem de aceitar que ele é um bom artista, que teve uma fantástica contribuição não apenas para a arte britânica, mas um efeito internacional, não se pode tirar isso dele.

Essas pinturas dele, feitas com uma máquina, guardam um paralelo com as obras reunidas pelo sr. em "Painting per Se". Quero dizer, imagino que certos artistas brasileiros que trabalham com essa mídia, vindo a essa exposição, considerariam essas pinturas cínicas. Porque no Brasil temos muitos artistas tentando levar adiante o legado moderno...
Acho que há vários artistas que trabalham de uma maneira muito tradicional, que viraram as costas para o tipo de questões que está sendo feito à arte contemporânea nos últimos 20 anos. Aqui como na Inglaterra, como em qualquer lugar. Isso que nós chamamos de "die hard modernists" (algo como modernistas "duros de matar") é um problema generalizado. Isso não os faz necessariamente maus artistas: eles ainda podem produzir bons trabalhos. Mas muitos dos artistas mais jovens procuram algo verdadeiro para eles, não querem apenas seguir o modernismo, têm um desejo genuíno de encontrar um espaço para sua criatividade. Pode parecer cínico, mas o cinismo tende a se referir a pessoas que não têm respeito por aquilo em relação a que são cínicas, mas não é o caso normalmente, nem é o caso aqui. Acho que não há certo ou errado em arte contemporânea. Mas é claro que é natural pensar que isso se parece com um certo tipo de arte. Para a arte britânica, não é usual ter uma exposição de pinturas, porque parece sinalizar algo a respeito de a pintura ser a maneira certa de fazer as coisas, o que obviamente não é certo nem errado. Mas ajuda ver uma linguagem, pensar "existem essas diferentes possibilidades" entre um artista como Machiko Edmondson, com suas imagens foto-realistas, e outro como Michael Stubbs, que é muito mais expressionista. Então você vê essas duas polaridades. Ou então você tem Claudia Marchetti de um lado, Brad Lochore de outro: suas metodologias e suas preocupações são opostas, o que é uma expansão na linguagem da pintura.


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