São Paulo, domingo, 13 de outubro de 2002

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+ cinema

O crítico italiano, que falará em SP no próximo dia 25, discute a Grécia "bárbara" criada por Pasolini e a herança contraditória de seus filmes

O herege santificado

Susana Kampff Lages
especial para a Folha

Massimo Fusillo é helenista de formação e professor de literatura comparada da Università dell'Aquila (Itália). Estudioso não apenas da literatura antiga, mas também de temas que envolvem a permanência da Antiguidade clássica na literatura e na arte da modernidade, o trabalho de Fusillo se destaca pela ampla erudição e pela extraordinária capacidade de reler em chave contemporânea temas e textos antigos.
Vai nesse sentido atualizador a leitura que ele faz do cinema de Pier Paolo Pasolini (1922-75). Para Fusillo, Pasolini constrói na sua filmografia uma "Grécia bárbara", despojada de toda frieza racionalista ou contenção neoclássica -uma Grécia mítica, mágica, passional.
Autor de "La Grecia secondo Pasolini" e "L'Altro e lo Stesso - Teoria e Storia del Doppio" (ambos pela ed. La Nuova Italia), Fusillo participará de debate no próximo dia 25, em local e hora ainda não definidos, a convite da Mostra Internacional de Cinema de São Paulo, que exibirá retrospectiva do cineasta (mais informações no site www.mostra.org).

Pode-se dizer que Pasolini busca, por uma metamorfose do texto literário, refazer as próprias origens narrativas do cinema? Seria a busca das origens um/o grande tema pasoliniano?
Mesmo levando em conta o caráter poliédrico de temas e de linguagens por ele utilizados, a busca das origens é certamente um grande tema de Pasolini, sobretudo se se entende por origem uma sacralidade e uma poeticidade inerente às próprias coisas. Nos filmes sobre o mito, Pasolini procura remontar às origens rituais da tragédia grega, antes da intervenção racionalista do logos.
Qual seria o papel dos dialetos no processo criativo pasoliniano? Sinalizaria o seu uso dos dialetos um desejo de retorno à origem ou, antes, um desejo utópico?
Há um fio condutor que une o dialeto friulano [da região de Friuli] dos primeiros poemas, o caráter romanesco dos romances e a assim chamada conversão ao cinema -todas opções criativas que pretendem superar o convencionalismo asfixiante da linguagem, encontrar uma expressividade corpórea, imediata. Por trás disso, há mitologias decadentes, mas há também a influência da antropologia: seja pelo interesse pelas culturas locais, seja pela exaltação das linguagens não-verbais (gesto, música, rito).
O sr. escreveu um livro inteiro sobre "A Grécia segundo Pasolini". Qual seria a definição mais sintética dessa tão singular topografia pasoliniana?
Usei a fórmula "Grécia bárbara", o que soa contraditório, mas que traz a idéia de uma classicidade nada olímpica (Pasolini dizia que "barbárie" era a palavra que mais amava no mundo). A Grécia para ele é metáfora de uma antiquíssima civilização agrária, cíclica e não linear como a cristã; a própria cultura camponesa que ele defendia na Itália contra a modernização selvagem do neocapitalismo.
Há um fundo comum entre o gesto da apropriação pasoliniana da tradição literária grega (por exemplo, na sua trilogia "clássica": "Medéia", "Édipo Rei" e a "Orestíada") e de temas bíblicos (em "O Evangelho segundo São Mateus")? Ou haverá sobretudo diferenças?
Não há grandes diferenças. O fundo comum é, como disse, a cultura camponesa. Não por acaso o "Evangelho" foi rodado num lugar de memória cultural extraordinário como a região das pedras de Matera, lugar-símbolo de uma cultura extremamente arcaica, mágico-sacral, na Lucânia (sul da Itália), um lugar pouco integrado ao sistema nacional italiano que foi objeto de estudo do nosso famoso antropólogo Ernesto de Martino.
O sr. escreveu um livro de grande erudição sobre o tema do duplo na literatura ocidental. Quais seriam os duplos de Pasolini nas tradições italiana e européia?
Na tradição literária italiana, primeiramente Dante, tanto como símbolo quanto como modelo de uma expressividade dissonante, "plurilinguística". Na "Divina Mímese", obra póstuma publicada logo após a sua morte, Dante é realmente um duplo de Pasolini. E Giovanni Pascoli, a quem dedicou sua tese de graduação e com quem comunga a forte tendência ao retorno e à simbiose com o corpo materno. Duplo especular pode ser considerado D'Annunzio, poeta que Pasolini detestava, mas com quem tem aspectos em comum, entre eles o fato de saber brincar com a própria figura pública. Na tradição européia, o poeta preferido foi sempre Rimbaud, por seu caráter visionário, mas há afinidades com outros poetas: Mandelstam ou Pound, por exemplo. Menos previsível, mas muito incisiva, foi a relação com Proust, sobretudo pelo aspecto infinitamente desejável e a desesperada "inaferrabilidade" do real -tema intimamente ligado, no nível da forma, a uma certa infinitude estrutural. Não por acaso o último Pasolini privilegia a forma do projeto: em "Notas para uma Orestéia Africana", "Notas para um Filme sobre a Índia", nos poemas das últimas coletâneas, no romance inacabado "Petróleo", pensado como obra em fragmentos.
Qual a ligação de Pasolini com o decadentismo literário?
Ligação profunda: exotismo, barbárie, imediaticidade corpórea, poética pictórica -núcleos temáticos de origem decadentista. Ainda que o decadentismo de Pasolini seja sempre relido pelo filtro da antropologia e da psicanálise, modelos racionais de leitura do real que, como o marxismo, jamais foram abandonados, apesar de crises recorrentes. A barbárie torna-se em Pasolini uma forma de vida, um modelo de mundo, e não uma evasão irracionalista.
Pasolini foi definido pela crítica um herético: dissidente, rebelde, iconoclasta. Marxista inspirado pelo cristianismo primitivo, homossexual declarado numa época "politicamente incorreta". Hoje o que se pode dizer desta carga contraditória? Não o terá reabsorvido o cânone?
Talvez, em parte, sim. A Itália, país que o perseguiu por décadas, hoje tende a santificá-lo. Muito de seu sucesso internacional também se deve a uma cultura do "politicamente correto", algo que lhe era muito estranho. Hoje ninguém mais se escandalizará com a coexistência de marxismo e paixão pelo Evangelho, como ocorreu na época, sobretudo dentro da esquerda francesa. Quanto à homossexualidade, haveria muitíssimo a dizer: Pasolini tornou-se homossexual declarado não por opção, mas devido a um processo por corrupção de menores que o exilou da sua região, o Friuli, e do Partido Comunista. Hoje, a quase 30 anos de sua morte, pode-se dizer que o fenômeno tantas vezes por ele denunciado nas vanguardas, isto é, a tendência de a mídia absorver as transgressões, o envolveu também (e isso era inevitável). Mas o sucesso da sua obra em esferas culturais tão distantes testemunha também, creio, a sua capacidade de transfigurar a carga de contradições: de transformar o "escândalo de contradizer-me" numa fonte inesgotável de criatividade.


Susana Kampff Lages é professora do Instituto de Estudos da Linguagem da Unicamp (Universidade Estadual de Campinas) e autora de "Walter Benjamin - Tradução e Melancolia" (Edusp).


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