São Paulo, domingo, 13 de novembro de 2005

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M FANTASMA ASSOMBRA A EUROPA

MARCOS FLAMÍNIO PERES
EDITOR DO MAIS!

Um dos principais pensadores da esquerda americana, Michael Hardt, 45, considera que, hoje, qualquer país europeu reúne condições para a eclosão de distúrbios similares aos que ocorrem na França.
Professor de literatura na Universidade Duke (EUA), seu nome passou a ter circulação internacional quando lançou em 2000, com o filósofo italiano Antonio Negri, "Império" (ed. Record).
O livro foi visto como uma renovação pós-moderna da esquerda, ao aposentar o conceito de imperialismo e substituí-lo pelo de "império". Para eles, nos tempos atuais não há mais sentido em falar apenas em dominação de um Estado sobre o outro, mas, sim, de uma nova forma de soberania: um "poder em rede" formado de Estados-nações dominantes, instituições supranacionais, grandes corporações capitalistas etc.
A continuação viria quatro anos depois com "Multidão" (lançado neste ano no Brasil pela mesma editora), em que a dupla defende uma "alternativa viva" de resistência aos imperativos econômicos da globalização. Tangenciando os esquemas da esquerda marxista, Hardt e Negri acreditam na existência de "uma rede aberta e em expansão na qual todas as diferenças podem ser expressas aberta e igualitariamente".
Mas na entrevista abaixo Hardt vê os distúrbios na França em termos mais conservadores (ou marxistas) -não "uma luta contra a "soberania", mas contra a estrutura de pobreza e exclusão racial no país".
 

Folha - Como a mídia e os intelectuais norte-americanos estão vendo os distúrbios na Europa?
Michael Hardt -
A mídia nos EUA devota muito pouco tempo ao que está acontecendo na França, mas, quando falam disso, apresentam como algo especificamente francês. Acho que é um erro. Seria mais útil apresentá-lo relacionado com os conflitos de 1992, em Los Angeles. Podemos ver facilmente que a revolta na França responde a condições que prevalecem em todos os países ricos da Europa.

Folha - Para a polícia francesa, não há nenhuma liderança coordenando os ataques. Isso não é, dentro das fronteiras de uma nação, um exemplo de luta contra a "soberania"?
Hardt -
Como os distúrbios de Los Angeles (EUA) de 1992, os acontecimentos atuais na França são uma luta não contra a "soberania", mas contra a estrutura de pobreza e exclusão racial no país.

Folha - Como resolver, nas democracias, o conflito entre republicanismo e comunitarismo, entre valores universais e o respeito às minorias? A política de ação afirmativa é uma solução para a Europa?
Hardt -
Não acho que "republicanismo" e "comunitarismo" sejam as únicas alternativas. Diria que a resposta apropriada seria ajudar as populações nas periferias pobres francesas a construírem sua própria rede autônoma de apoio e desenvolvimento, para possibilitar que as comunidades de base trabalhem para criar soluções.

Folha - Por que as economias se globalizam cada vez mais enquanto o nacionalismo cultural ganha cada vez mais terreno?
Hardt -
Parece-me um erro interpretar os acontecimentos atuais na França em termos de nacionalismo cultural. Isso não é um "choque de civilizações". São os jovens franceses que estão se rebelando contra sua exclusão e subordinação na sociedade francesa. É por isso que a comparação com as revoltas de Los Angeles ajuda a compreensão.
Sim, há diferenças culturais e raciais que demarcam a linha dos conflitos nos dois casos. Mas o essencial nos dois casos é a existência de pobreza e exclusão social. Não é um paradoxo que esse tipo de conflito chegue na era da globalização. Esse tipo de pobreza e exclusão é resultado do neoliberalismo igualmente em Paris, Nova Orleans e São Paulo.

Folha - Essa é a única globalização possível para os menos favorecidos?
Hardt -
Não é difícil reconhecer como a situação piorou nos anos recentes com a retirada de verba de programas sociais preexistentes, exacerbando a pobreza e exclusão, preparando as condições para desastres tanto em Paris como em Nova Orleans. Essa é a face da globalização neoliberal até nos países ricos.

Folha - Qual seria a solução?
Hardt -
Não é simplesmente restaurar as estruturas da assistência social que foram destruídas (por mais que esse seja um bom começo), mas oferecer aos pobres e excluídos os meios para se organizarem por si mesmos e se integrarem à sociedade dominante por si mesmos. Uma idéia que vem sendo discutida na França há muitos anos é a garantia de uma renda mínima que todos na sociedade receberiam. Esse seria um excelente primeiro passo.

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