São Paulo, domingo, 13 de novembro de 2005

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RECUSA AO REAL E À DIFERENÇA MARCA A FRANÇA

ALAIN TOURAINE
COLUNISTA DA FOLHA

A França passou por uma mudança muito profunda, em prazo relativamente curto. Por um longo período, era possível falar da integração dos filhos ou netos dos imigrantes à sociedade francesa. A fase registrou revezes, além dos sucessos, mas criou esperanças duradouras.
No entanto há pelo menos uma década vive-se, pelo contrário, um período de desintegração, marcado pela rejeição aos grupos minoritários, pela insistência cada vez maior, da parte destes, em defender seus valores comunais, e pelo recurso crescente a uma violência que traduz a incapacidade da sociedade francesa em mudar de modelo cultural. Essa reversão da situação aconteceu com grande rapidez e não recebeu a atenção merecida.
No domínio da habitação, o abandono da experiência integradora com as HLM (residências de aluguel moderado) provocou uma crescente segregação. No plano do trabalho, o desemprego afeta mais pesadamente os mais jovens, e existe uma discriminação notória contra os jovens descendentes de imigrantes.
A escola não foi capaz de reduzir os obstáculos à integração, porque sua concepção do ensino como um processo separado da educação -entendida como levar em conta as características sociais, psicológicas e culturais de cada indivíduo- implica, quer deliberadamente, quer não, em não auxiliar aqueles que mais necessitam de ajuda.
Essa degradação foi mais pronunciada na França do que em outros países. De um lado, porque a rede de relações de proximidade se rompeu de maneira mais completa na sociedade francesa do que na Itália ou na Alemanha, e por outro lado, porque a integração aqui foi sempre pensada em termos mais fortes, o que acarreta muitos aspectos positivos, mas torna a desintegração ainda mais grave.
O republicanismo francês se identifica com o universalismo, o que freqüentemente envolve a rejeição ou inferiorização daqueles que são "diferentes". Esses obstáculos à integração têm causas profundas. Continuamos longe de eliminar os traços remanescentes de nossa tradicional aversão ao feminismo. Vivemos sob a marca de nossa tradição colonial.
É muito difícil para nós compreendermos que o islã, como bem o disse o sociólogo Nilufer Göle, faz parte da modernidade e não está, pelo menos não inteiramente, encerrado em um passado pré-moderno.
A recusa francesa às diferenças tem igualmente razões positivas: a rejeição ao comunitarismo e a defesa da cidadania. Essas posições são fortemente majoritárias na França -pôde-se percebê-lo no momento de debate sobre a lei que proibiu o uso do véu islâmico e outros sinais de crença religiosa nas escolas. Compartilho dessa posição e continuo a defendê-la. Mas essa recusa ao comunitarismo precisa ser associada ao reconhecimento das diferenças.
Ou seja, ao direito de cada indivíduo viver de acordo com suas preferências culturais. Em particular, associando constantemente a liberdade das organizações religiosas e as liberdades religiosas dos indivíduos.

Discurso da segurança
Há um risco muito grande de que medidas de repressão que aumentem as responsabilidades do Estado reforcem o discurso "de segurança", o qual torna ainda mais difícil a percepção da realidade. Os franceses precisam, ao contrário, refletir sobre as razões pelas quais estão mal preparados para compreender a crise atual, porque de outra maneira correm o risco de agravá-la.
O que temos são indivíduos "desfavorecidos", que precisam de uma mudança da atitude adotada com relação a eles. A França, como sociedade, pode se tornar uma ameaça a si mesma se não conseguir combinar a integração e as diferenças, o universalismo e os direitos culturais de cada um, ultrapassando a oposição de um republicanismo carregado de preconceitos e de comunitarismos carregados de agressividade.
Certamente, a melhora na situação do emprego e o restabelecimento das relações de proximidade são importantes. Mas é em um nível mais geral -o da representação da sociedade francesa por si mesma- que se situam as causas mais profundas da violência e da desintegração. É necessário que, em todos os setores da vida nacional -do ensino aos serviços sociais, da polícia às autoridades municipais- seja colocado em questão o ideal que os franceses criaram para si mesmos.
Não é mais aceitável que pensemos e ajamos como se a França fosse depositária dos valores universais e tivesse o direito, em nome dessa missão, de tratar como inferiores todos aqueles que não correspondam ao eu nacional ideal. A falsa consciência dos franceses quando falam de si mesmos explica a falta de abertura da sociedade às ciências sociais. É, portanto, dessa área que podem vir as análises capazes de ajudar a romper o círculo vicioso da exclusão, da solidificação defensiva dos valores comunitários e da repressão.


Alain Touraine é diretor da Escola de Altos Estudos em Ciências Sociais (Paris) e autor de "A Crítica da Modernidade" (ed. Vozes).
Tradução de Paulo Migliacci.


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