São Paulo, domingo, 13 de novembro de 2005

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Em "Diário de Guadalcanal", o jornalista Richard Tregaskis descreve a primeira contra-ofensiva dos EUA no oceano Pacífico na 2ª Guerra

O animador de torcida

RICARDO BONALUME NETO
DA REPORTAGEM LOCAL

Há dois motivos para ainda ler "Diário de Guadalcanal", livro de 1943 do jornalista Richard Tregaskis. Trata-se de uma rara narrativa pessoal de um momento crucial da Segunda Guerra, a primeira contra-ofensiva norte-americana no Pacífico. E é um livro que mostra uma maneira de fazer jornalismo de guerra que se considerava datada -até ser ressuscitada durante a invasão do Iraque pelos EUA em 2003.
Guadalcanal é uma ilha do Pacífico sul, estrategicamente localizada entre os EUA e a Austrália. Em 7 de agosto de 1942 os americanos decidiram retomá-la, quando perceberam que os japoneses ali construíam uma base aérea. Dois correspondentes foram junto com as tropas, um deles um sujeito de mais de 1,90 m, Tregaskis.
Ele passou dois meses na ilha vivenciando algo raríssimo no século 20. Os EUA estavam em paridade com um inimigo convencional e mesmo em inferioridade em certos momentos. No período em que esteve lá, os japoneses eram capazes de bombardear de navio e de avião as posições americanas, algo impensável hoje.
Na Segunda Guerra, os correspondentes de guerra anglo-saxões se comportavam de modo geral como "animadores de torcida". É o que se esperava deles, que publicassem notícias que ajudassem o esforço de guerra. Sofriam censura, mas tinham um grau de liberdade, ao contrário de seus colegas de países totalitários, como Alemanha e União Soviética, recrutados para o esforço como se fossem militares.

Soldados heróicos
Tregaskis escreve como quem procura dar boas notícias para o público em casa. Seus soldados são sempre heróicos, o resultado dos combates é quase sempre favorável aos EUA, apesar de o inimigo ser brutal. Isso não quer dizer que seja desonesto. Suas descrições são autênticas e primorosas. Mas a necessidade de mostrar sempre um lado positivo o faz ser pouco cético em relação ao que lhe dizem os militares.
E nem é o caso de achar que também os militares estejam agindo de má-fé. O problema é que a guerra é o domínio por excelência da imprecisão. Não há como checar o outro lado. No calor do combate, as impressões superam os fatos.
Tregaskis não desconfia de nada do que lhe dizem. Numa hora ele conta que 40 aviões japoneses foram abatidos, dos 40 que atacaram. Isso nunca aconteceu, mas ele não questiona o absurdo da afirmação. Em nenhum lugar, em nenhum momento da guerra um combatente teve uma perda tão catastrófica. Sem dúvida seria algo comemorável.
O livro foi publicado em 1943 e tornou-se filme de propaganda, o que dá uma boa medida do seu conteúdo. Há muitas alegações sem comprovação.
A principal falha da reedição -e isso vale também para a nova publicação americana, de 2000- é a falta de contextualização (um mapa também ajudaria, a não ser que se saiba onde ficam Matanikau ou Tulagi ou Tenaru).
Hoje se conhece bem melhor a batalha por Guadalcanal. Algumas notas de rodapé teriam informado ao leitor sobre o que de fato aconteceu, sem que isso se constituísse crítica ao autor. Tregaskis fez o melhor que pôde com as informações disponíveis então.
Sem contar que passou por maus bocados e nem se vangloriou disso, como jornalistas menores fariam. Dá pra imaginar o drama quando um atirador de tocaia (traduzido imprecisamente como "franco-atirador") tenta acertá-lo, e ele procura esconder seu mais de 1,90 m atrás de uma árvore fina. Tregaskis gostaria de ter um fuzil, então. Jornalistas não usam armas, apesar de nessa guerra andarem uniformizados.
O estilo "animador de torcida" podia ter algum sentido na Segunda Guerra, mas depois perdeu razão de ser, em guerras sobre as quais não havia consenso social. Tregaskis também fez um "Diário do Vietnã", sobre pilotos de helicóptero no começo da intervenção americana nesse país nos anos 60. O livro é claramente acrítico e patrioteiro, especialmente quando se compara com o que fazia então uma geração de jornalistas mais jovens e mais críticos, como David Halberstam, Neil Sheehan e Peter Arnett.
Mas, 60 anos depois, o jornalismo de Tregaskis teve uma ressurreição, com os colegas "encaixados" em unidades militares pelos EUA na invasão do Iraque. Os militares dos EUA perceberam o óbvio: que os jornalistas teriam empatia com as tropas com as quais viajariam. Nada de muito errado nisso, pois cobrir as tropas era parte da missão. Mas -algo que Tregaskis não entenderia- isso era apenas uma parte.


Diário de Guadalcanal
242 págs., R$ 44,90 de Richard Tregaskis. Ed. Objetiva (rua Cosme Velho, 103, CEP 22241-090, Rio de Janeiro, RJ, tel.0/xx/21/2556-7824).



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