São Paulo, domingo, 14 de janeiro de 2001

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CULTURA EM MUTAÇÃO

A arte emergente
Reprodução
A personagem Lara Croft, do jogo Tomb Raider



Para pesquisador dos EUA, videogames possuem hoje papel equivalente ao do cinema mudo no início do século passado

Henry Jenkins
especial para a "Technology Review"

No ano passado, os norte-americanos compraram mais de 215 milhões de jogos de computador e vídeo. Isso equivale a mais de dois jogos por domicílio. A indústria de videogames faturou quase tanto quanto Hollywood, em termos de vendas internas brutas.
Assim, os videogames são uma imensa perda de nosso dinheiro, tempo e energia? Uma nova forma de poluição cultural, como os descreveu um senador norte-americano? O pesadelo antes do Natal, nas palavras de outro? Os jogos estão ensinando nossas crianças a matar, como milhares de artigos em nossas páginas de opinião solenemente advertem?
Não. Os jogos de computador são uma arte popular, uma arte emergente, uma arte quase não reconhecida, ainda, mas arte mesmo assim.
Ao longo dos últimos 25 anos, os jogos progrediram das simulações de rebatida simplórias à sofisticação de "Final Fantasy", uma história participativa que se desenvolve, com qualidade visual semelhante à do cinema, por quase cem horas de jogo. Os jogos de computador são um aplicativo crucial para o mercado de computadores domésticos, aumentando a demanda dos consumidores por recursos gráficos poderosos, capacidade de processamento cada vez mais rápido, maior memória e melhor som. O lançamento do Sony Playstation 2, no final do ano passado, acompanhado de anúncios sobre a chegada de consoles de próxima geração criados pela Nintendo e pela Microsoft, sinaliza um aumento dramático nos recursos disponíveis para os projetistas de jogos.
Os jogos cada vez mais influenciam o cinema moderno, ajudando a definir o ritmo frenético e a trama multidirecional de "Corra, Lola, Corra" (de Tom Tykwer), oferecendo a metáfora de "vestir o personagem" encontrada em "Quero Ser John Malkovich" (de Spike Jonze) e encorajando o fascínio com a linha escorregadia entre a realidade e a ilusão digital em "Matrix" (dirigido pelos irmãos Wachowski). Nos colégios de ensino médio e faculdades de todo o país, estudantes discutem jogos com a mesma paixão com que gerações anteriores debatiam os méritos do novo cinema norte-americano. Os programas de estudo de mídia registram número crescente de estudantes que desejam ser criadores de jogos, em lugar de cineastas.
Chegou a hora de levar os jogos a sério como uma importante forma popular de arte que moldará a sensibilidade do século 21. Admito que discutir a arte do videogame provoca imagens cômicas: espectadores usando smokings e gente carregada de jóias apreciando as qualidades do mais recente "Street Fighter", acadêmicos de meia-idade pontificando sobre o impacto do cubismo em "Tetris", blips e zaps perturbando nossa contemplação silenciosa do acervo do museu Guggenheim. Imagens como essas nos dizem mais sobre nossa noção contemporânea de arte como algo pretensioso e árido, a propriedade de uma elite educacional e econômica distante da experiência cotidiana, do que nos dizem sobre os jogos em si.
O museu Whitney, de Nova York, se viu no centro de uma controvérsia sobre arte digital quando recentemente incluiu artistas da Web em sua prestigiosa mostra bienal. Os críticos não acreditavam que o computador fosse capaz de expressar adequadamente o espírito humano. Mas eles estão enganados. O computador é simplesmente uma ferramenta, que oferece aos artistas novos recursos e oportunidades de atingir o público; é a criatividade humana que gera a arte. Ainda assim, dá quase para imaginar como os críticos reagiriam à idéia de que algo tão divertido, despretensioso e popular quanto um jogo de computador possa ser considerado arte.
Em 1925, o importante crítico literário e de arte Gilbert Seldes adotou uma abordagem radical quanto à estética da cultura popular em um tratado chamado "The Seven Lively Arts" (As Sete Artes Vívidas). Adotando uma posição então controversa, Seldes argumentou que a contribuição primordial dos Estados Unidos à expressão artística vinha de formas então emergentes de cultura popular, como o jazz, o musical da Broadway, o cinema de Hollywood e a história em quadrinhos. Embora essas artes tenham conquistado respeitabilidade cultural ao longo dos últimos 75 anos, nenhuma delas tinha reputação quando Seldes assumiu essa posição.
Os leitores da era demonstraram ceticismo diante das suposições de Seldes quanto ao cinema, em especial, por motivos no geral semelhantes aos hoje empregados para descartar os videogames -eles suspeitavam das motivações comerciais do cinema e de suas origens tecnológicas, se preocupavam com o apelo de Hollywood à violência e erotismo e insistiam em que o cinema não havia até ali produzido obras de valor duradouro. Seldes, de sua parte, alegava que a popularidade do cinema exigia que tivesse qualidades estéticas.

Artes vívidas
O cinema e outras formas populares de arte tinham de ser celebrados, porque estavam profundamente incorporados à vida cotidiana, porque eram artes democráticas que contavam com a adesão dos cidadãos médios. Por meio de estilos enxutos e ritmos sincopados, elas haviam capturado a vitalidade da experiência urbana contemporânea. Na maquinaria mesma da era industrial, considerada desumanizadora por muitos, essas formas de arte encontravam os recursos para reafirmar as necessidades, desejos e fantasias humanos básicos. E essas novas formas estavam ainda abertas à experimentação e à descoberta. Nas palavras de Seldes, tratava-se de "artes vívidas".
Os jogos eletrônicos representam uma nova forma de arte vívida, tão apropriada para a era digital quanto as mídias anteriores o foram para a era da máquina. Eles abrem novas experiências estéticas e transformam a tela do computador em um reino de experimentação e inovação acessível a muitos. E os jogos foram adotados por um público que, de outra forma, não se deixou impressionar de forma alguma por muito do que se pretende arte digital. Mais ou menos como os salões de arte dos anos 20 pareciam estéreis diante da vitalidade e inventividade da cultura popular, os esforços contemporâneos para criar uma narrativa interativa por meio de hipertexto modernista ou instalações artísticas de vanguarda parecem pálidos e pretensiosos diante da criatividade que os projetistas de jogos empregam em seu ofício.
Boa parte daquilo que Seldes tinha a nos dizer sobre o cinema mudo continua válido para os jogos. O cinema mudo, argumentava ele, era uma arte de movimento expressivo. Ele gostava da velocidade e dinamismo das corridas de resgate no minuto final mostradas por D.W. Griffith, da graça física das quedas de Chaplin e da engenhosidade dos feitos de engenharia de Buster Keaton. Os jogos também dependem de uma arte de movimento expressivo, com personagens definidos por meio de suas maneiras distintivas de se conduzir pelo espaço, e produtos bem-sucedidos estruturados em torno de uma sucessão de tombos e enrascadas espetaculares. Será que as gerações futuras vão encarar Lara Croft combatendo lobos maldosos como uma espécie de equivalente do século 21 para Lillian Gish caminhando entre as geleiras em "Way Down East" (1920)?

Design de atmosfera
A arte do cinema mudo era também uma arte de design de atmosfera. Assistir a uma obra-prima do cinema mudo como "Metropolis" (1927), de Fritz Lang, é ser atraído a um mundo no qual o significado é portado pela colocação das sombras, o movimento das máquinas e a organização do espaço. Os criadores de jogos foram além do cinema em termos de desenvolver ambientes expressivos e fantásticos que transmitam um sentido poderoso de clima, provoquem nossa diversão e curiosidade e nos motivem a explorar.
Seldes escreveu em um momento em que o cinema estava amadurecendo como forma de expressão e os cineastas lutavam por reforçar a experiência emocional de ir ao cinema -transformar o filme de mero espetáculo em algo mais, repleto de caráter e consequência. Resta determinar se os jogos poderão fazer uma transição semelhante.
Os jogos contemporâneos são capazes de nos encher de adrenalina, mas ainda não nos causam lágrimas. E muitos alegam que, já que os jogos não têm personagens com complexidade humana ou com histórias que enfatizem as consequências de nossas ações, não poderão nunca se tornar uma arte verdadeira. Aqui, é preciso de cuidado para não confundir o atual estado de transição de uma mídia emergente e o seu potencial pleno. Quando visito empresas de jogos, vejo alguns dos melhores cérebros do setor lutando com esse problema e percebo fortes evidências de que os jogos que serão lançados nos próximos anos nos trarão mais e mais perto da caracterização que viemos a esperar de outras modalidades de narrativa popular.
O editor sênior Jack Kroll, da revista "Newsweek", alega que as audiências provavelmente jamais se importarão tanto com pixels numa tela de computador quanto se importam com personagens em filmes. "Os cineastas não precisam simular seres humanos; eles estão lá, para serem gravados e orquestrados... A balanço dos peitos da Lara Croft de "Tomb Raider" não se compara ao rosto de Sharon Stone... Qualquer jogador que sinta uma ereção causada pela vagaba virtual Lara tem sérios problemas". No entanto, incontáveis espectadores choram quando a mãe de Bambi morre, e muitos veteranos da Segunda Guerra Mundial admitiriam sentir desejo real pelas pin-ups de Vargas. Aprendemos a nos importar tanto com criaturas artificiais quanto com as imagens de pessoas reais. Por que pixels seriam diferentes?

Estética própria
No final, os jogos podem não tomar o mesmo rumo que o cinema. Os criadores de jogos quase certamente desenvolverão princípios estéticos próprios à medida que enfrentam o desafio de equilibrar os desejos concorrentes de uma narrativa coerente e interatividade elevada.
Resta saber se os jogos poderão oferecer aos jogadores a liberdade que eles desejam e ainda assim prover uma forma de experiência emocionalmente satisfatória e significativa. Alguns dos melhores jogos -Tetris é um exemplo- não têm nada a ver com uma narração. Pelo que sabemos, a arte futura dos jogos pode se assemelhar mais à dança ou à arquitetura que ao cinema.
Questões como essa merecem um envolvimento próximo e apaixonado não só da indústria de jogos ou da academia, mas também de parte da imprensa e das pessoas. Até mesmo a rabugenta recusa de Kroll aos jogos provocou uma discussão acalorada e forçou os criadores a refinar seu domínio das características distintivas do meio. Imagine que contribuição uma forma mais robusta de crítica poderia oferecer. Precisamos de críticos que conheçam jogos da forma que Pauline Kael conhecia cinema e que escrevam sobre eles com humor e sabedoria em doses iguais.
Quando "The Seven Lively Arts" foi publicado, o cinema mudo era ainda uma forma experimental, e cada trabalho o levava em uma nova direção. Os primeiros críticos de cinema desempenharam uma função vital em documentar a inovação e especular sobre o seu potencial. Os jogos de computador atravessam agora fase semelhante. Não tivemos tempo de codificar o que os criadores experientes de jogos sabem, e certamente ainda não estabelecemos um conjunto de grandes obras que possam servir como exemplos. Houve verdadeiras realizações criativas no setor de jogos, mas ainda não entendemos quais são e por que elas importam.

Busca épica
Mas os jogos com certeza importam, porque estimulam a imaginação de nossos filhos e os levam em buscas épicas por novos e estranhos mundos. Os jogos importam porque nossos filhos não têm mais acesso a lugares de brincar no mundo real, em um momento em que pavimentamos os terrenos vazios para criar mais casas e em que as ruas aparentemente deixam os pais nervosos. Se as crianças devem ter oportunidades de brincar de uma maneira instigante, que encoraje o desenvolvimento cognitivo e fomente sua capacidade de resolver problemas, elas o farão no ambiente virtual dos jogos.
Os jogos para múltiplos participantes criam oportunidades de liderança, competição, trabalho de equipe e colaboração para os "nerds", e não só para os heróis escolares do futebol americano. Os jogos importam porque formam o equivalente virtual do programa (federal de educação) Head Start e animam as crianças quanto às capacidades dos computadores.
O problema com a maior parte dos jogos contemporâneos não é que sejam violentos, mas sim que sejam banais, formulaicos e previsíveis. Críticas bem ponderadas podem gerar apoio à inovação e à experimentação no setor, da mesma forma que a boa crítica cinematográfica ajuda a concentrar as atenções nos filmes independentes. Críticas inteligentes podem até mesmo contribuir para o debate contra a violência nos jogos.
Até agora, os censores e guerreiros culturais puderam fazer o que desejam, porque praticamente aceitamos sem questionar que os jogos têm valor cultural nulo. Deveríamos em lugar disso considerá-los como uma forma de arte emergente que não simplesmente simula a violência, mas cada vez mais oferece maneiras de compreendê-la e de falar sobre como chegar a um equilíbrio entre essa forma de expressão e a responsabilidade social. Além do mais, a crítica de jogos pode oferecer um meio de fazer com que a indústria de jogos se responsabilize mais pelas suas escolhas. Depois do massacre na escola Columbine (quando dois garotos mataram 11 pessoas e depois se suicidaram), os projetistas de jogos estão lutando para desempenhar suas responsabilidades éticas como nunca antes, procurando formas de apelar às fantasias de poder que não exijam explodir cabeças ou arrancar órgãos. Uma discussão pública séria sobre a nova mídia poderia influenciar construtivamente esse debate, ajudando a identificar e avaliar as alternativas à medida que surgem.
À medida que a arte dos jogos amadurecer, o progresso será conduzido pelas mentes mais avançadas e criativas do setor, aquelas que sabem que os jogos têm potencial para ser muito mais do que vêm sendo, aquelas que reconhecem a possibilidade de atingir um público mais amplo, de ter maior impacto cultural, de gerar conteúdo mais diversificado e eticamente responsável e de criar históricas mais ricas e emocionalmente envolventes. Mas, sem o apoio de um público informado e sem a perspectiva de críticas inteligentes, os criadores de jogos talvez nunca realizem esse potencial.


Henry Jenkins é diretor do programa de Estudos de Mídia Comparados do Massachusetts Institute of Technology.

Tradução de Paulo Migliacci.


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