São Paulo, domingo, 14 de janeiro de 2001

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CULTURA EM MUTAÇÃO

A era da interatividade

Ex-colaborador de Marshall McLuhan, Derrick de Kerckhove defende que a arte eletrônica pode explicar o modo como a ciência transforma a sociedade contemporânea

Odille Fillion
do "Le Monde"

Ex-colaborador de Marshall McLuhan, diretor do Programa McLuhan na Universidade de Toronto, no Canadá, desde 1984, Derrick de Kerckhove discute na entrevista abaixo as relações entre arte e ciência.
Para Kerckhove, a arte "tem a capacidade de nos explicar o mundo na medida em que ele é transformado pela tecnologia, para que possamos viver plena, individual e coletivamente".

Qual é a relação entre a arte eletrônica e o mundo científico?
Muitos dos chamados artistas eletrônicos são "artistas engenheiros" ou "imagineers", como dizem os anglo-saxões. Para enfrentar as novas tecnologias e serem capazes de expor sua dimensão ou seu impacto humano, eles são obrigados a se iniciar nas ciências e técnicas eletrônicas e numéricas. A arte é em geral desconsiderada pela ciência, tratada como uma aproximação pura e simples. Se costumo evocar os princípios de Frieden ou de John Wheeler, é para reaproximar o tema da incerteza na física daquilo que lhe é associado. A arte poderia colher os benefícios dessa nova incerteza no mundo científico.
Eu acredito que, longe de ser uma aproximação, a arte tem um valor cognitivo fundamental e que, no tempo de vida que nos cabe, a arte tem a capacidade de nos explicar o mundo da maneira pela qual ele é transformado pela tecnologia, para que possamos viver plena, individual e coletivamente.
É interessante, sob essa ótica, comparar as teorias da física com as problemáticas específicas da arte atual, notadamente as da interatividade. A interatividade é uma espécie de condição de participação do usuário que, por ocorrer, modifica o objeto da interação, exatamente como enunciou Werner Heisenberg (1901-1976) em sua lei da física quântica, ou seja, de que nesse domínio todo fenômeno observado sofre os efeitos da observação. Na física quântica, toda relação com a observação humana é "interativa".
Esse papel revelador do artista lhe parece essencial?
Fundamental. Marshall McLuhan, com quem trabalhei por dez anos, foi o primeiro a dizer que o artista é o primeiro intérprete do impacto da tecnologia sobre os seres humanos. Portanto no Instituto McLuhan estudamos o impacto da tecnologia sobre as práticas culturais e constatamos que os artistas perceberam o impacto da tecnologia antes de as empresas o fazerem. No caso da Internet, as empresas superaram os artistas e conquistaram grande avanço quanto à interpretação das possibilidades da Web...
Por que os verdadeiros artistas talvez sejam os programadores?
Por causa disso temos, em Toronto, um grupo de engenheiros que trabalha com artistas a fim de que estes compreendam como funciona a interatividade: um roboticista, um engenheiro, um biólogo, um músico, todos participam do grupo e se tornaram, como Norman White ou David Robeky, artistas praticantes. Nós, desde 1983, temos organizado em caráter regular seminários sobre a relação entre arte e ciência e desempenhamos de maneira bastante convincente um papel de acelerador nesse domínio.
Quais são os objetivos do Programa McLuhan?
Trata-se na verdade de um pequeno centro de pesquisa vinculado à Faculdade de Ciências da Informação, no qual temos diferentes temas de investigação, como o ciberespaço e o governo, arquitetura da Web e arquitetura de redes, aplicativos Linux etc.
Nós desenvolvemos também pesquisas sobre inteligência coletiva e devemos lançar em breve um software de administração de documentos em tempo real, com comentários anexados imediatamente e indexação contínua de conhecimento via Web. Pode-se ler um texto, percorrê-lo, graças a um índice de hipertexto, e não somente fazer comentários a outras pessoas que podem ter acesso a essa mídia, mas também avaliar os comentários e marcar essa avaliação para colocá-la à disposição de outros participantes em tempo real.
O que me parece mais apaixonante é a conectividade entre os seres e a nova dimensão cognitiva, a exteriorização do nosso pensamento: existem campos de observação muito ricos nos quais a arte desempenha papel essencial no momento, sobretudo quanto ao programa McLuhan, que vem passando por um novo período de desenvolvimento especular e deve instalar novas antenas em Nápoles e em Tóquio.
Suas análises permitiram que se tornasse conselheiro de sociedades internacionais, como o grupo multinacional francês Vivendi.
Sim, sei muito bem que os artistas se opõem à globalização porque acreditam que ela terá um efeito acelerador sobre a mundialização. Compreendo que sejam contra a mundialização, mas os artistas deveriam ser os primeiros a entender que a globalização não é só um fenômeno econômico, mas mais fundamentalmente um fenômeno psicológico.
Eles se tornaram numerosos a ponto de nos fazer compreender que a escala mudou. Não estamos mais no mundo criado na Renascença com a invenção da perspectiva. Somos hoje seres globais porque estamos todos integrados à imagem via satélite do planeta que vemos todas as noites na TV como imagem normal. Essa imagem pertence à nossa época tanto quanto a Internet, que nos coloca em interação com o mundo quando e onde queremos. Eu envio perto de 30 mensagens via Internet por dia, e é meu ser que se deposita assim na superfície do planeta.
Temos, ao mesmo tempo, um novo poder de ação e uma nova percepção do mundo. Trata-se de uma etapa psicológica para o homem e será importante concretizá-la por meio de arquiteturas bastante simbólicas. Empresas como a France Télécom podem facilmente criar links que coloquem em relação simultânea por videoconferência todas as cidades do mundo. Criar links dessa natureza, da mesma forma como se criam parques públicos, será muito fácil e nada dispendioso e permitirá um acesso melhor a essa noção psicológica da globalização, noção melhor do que a de uma mundialização econômica global, que assusta, e com razão, a todos.
Ninguém pode ignorar o que se passa na Argélia ou no Afeganistão porque houve uma implosão extraordinária do mundo ao nosso redor. Por isso essa nova espécie de arquitetura global que utiliza a extensão eletrônica dos espaços físicos pode também ajudar os países em via de reconstrução, como a Sérvia e o Timor Leste, a se sentirem mais integrados a uma sociedade comum.
Mas a indústria e, portanto, a mundialização, como o senhor sinalizou, é extremamente rápida e avança por todos caminhos de pesquisa que se possa empreender.
Sim, a indústria é veloz e, por oposição, o corpo discente das universidades desenvolve uma resistência pouco construtiva ao estudo e desenvolvimento de práticas associadas à nova tecnologia. Pode-se perguntar, legitimamente, se não será por meio da indústria que emergirão novas práticas colaborativas e se essas práticas já não foram adotadas pelas novas gerações, o que remete à questão das velhas práticas hierárquicas e rígidas. Em inglês, eu diria "respons-ability" (capacidade de resposta) e "responsibility" (responsabilidade). Isso é difícil de traduzir, mas estou convencido de que as novas tecnologias caminham em companhia de um novo ambiente humano onde a consciência do outro será reforçada.


Tradução de Paulo Migliacci.


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