São Paulo, Domingo, 14 de Fevereiro de 1999
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A autocrítica da mídia, como em "O Quarto Poder", pode ser um modo de transformar todos em profissionais do consenso
Um grão de vida

Divulgação
Dustin Hoffman e John Travolta em cena do filme 'O Quarto Poder', de Costa Graves


STELLA SENRA
especial para a Folha

"Os direitos do homem não nos farão abençoar o capitalismo. E é preciso muita inocência, ou safadeza, a uma filosofia da Comunicação que pretende restaurar a sociedade dos amigos ou mesmo dos sábios, formando uma opinião universal como "consenso" capaz de moralizar as nações, os Estados e o mercado. Os direitos do homem não dizem nada sobre os modos de existência imanentes do homem provido de direitos. E a vergonha de ser um homem, nós não a experimentamos apenas nas situações extremas descritas por Primo Levi, mas nas condições insignificantes, ante a baixeza e a vulgaridade da existência e de pensamentos-para-o-mercado, ante os valores, os ideais e as opiniões de nossa época. A ignomínia das possibilidades de vida que nos são oferecidas aparece de dentro. Não nos sentimos fora de nossa época, pelo contrário, nós não paramos de estabelecer com ela compromissos vergonhosos. Esse sentimento de vergonha é um dos mais poderosos motivos da filosofia. Não somos responsáveis pelas vítimas, mas diante das vítimas. E não há outro meio senão fazer como o animal (grunhir, cavoucar o chão com os pés, nitrir, entrar em convulsão) para escapar ao ignóbil. O próprio pensamento está por vezes mais próximo de um animal que morre que de um homem vivo, mesmo democrata."
Gilles Deleuze, em "O Que É a Filosofia"

A afrontosa frase do filósofo se presta muito bem como epígrafe a uma evocação do velho tema da função da imprensa no sistema midiático ou, mais precisamente, da sua mais decantada missão, a formação da opinião pública e desse seu tão mimado rebento, o consenso. Tratado numa chave crítica, o tema surgiu no último filme de Costa Gavras, "O Quarto Poder", mas, numa demonstração de que este tipo de postura tem dado o tom, já chegou também às portas das redações e estações de TV, que multiplicam suas colunas de autocrítica, seus programas dedicados à ética jornalística, à auto-observação e ao controle da informação.
A se crer na abundância crítica, dir-se-ia que todo o sistema midiático se encontra sob permanente suspeita. Mas, diante da renitência desses exames de consciência, caberia igualmente perguntar se tanta indagação tem servido para alguma coisa. Ou será que nesse intuito aparentemente inocente não se poderia ver, ao contrário -e acatando a sugestão do filósofo-, uma espécie de safadeza moralizadora tanto do cinema quanto da mídia, que tem feito desse insistente questionamento um dos trunfos de uma decadente cena democrática em que é a frouxidão do consenso que dá o tom?
Evidentemente não está aqui em questão o trabalho de alguns profissionais dedicados, nem tampouco a honestidade ou o escrutínio daqueles que têm se dedicado ao exame da notícia. A questão é bem outra e diz respeito à convergência desse impulso crítico com um movimento idêntico no cinema -já não se contam nos dedos os filmes que criticam a imprensa- e à possibilidade de extrair desse fenômeno uma leitura mais abrangente, menos pontual do que a tão propalada "democratização" da mídia na sua nova fórmula, inspirada no modelo forjado pelo consumo, o "atendimento ao leitor".
O tom corrosivo da epígrafe que abre esse texto não deveria, a bem da verdade, chocar a quem tem o hábito da frequência à informação midiática, tão contaminada pela facilidade e pelo escândalo, nem tampouco a quem assistiu ao filme de Costa Gavras -ou a qualquer um dos seus similares. Neste um homem, desempregado como tantos outros por esse mundo afora, invade o local de onde foi despedido por "contenção de despesas". Tem mulher, filhos, ganha a vida honestamente, não quer fazer mal a ninguém. Apenas "ser ouvido" por quem decidiu seu destino. Mas dessa vez está armado.
Deixando o local após uma reportagem corriqueira, um repórter aproveitador é envolvido na trama. Para voltar ao posto de onde foi proscrito por um poderoso âncora, à guisa de ajuda, assume as rédeas do sequestro ou pelo menos orienta o seu autor sobre os procedimentos mais habituais -já que o atabalhoado guarda mal sabe o que fazer.
Do lado de fora os abutres já se postam. Toda a imprensa, a polícia, o FBI, curiosos, defensores das minorias (por acaso o guarda feriu um colega negro na confusão), todos à espera de um desfecho do qual poderão tirar algum proveito. Enquanto o repórter "orienta" o guarda e obtém a exclusividade da notícia, que logo vira nacional -além do local ser um museu de história natural, está cheio de criancinhas que ficam sequestradas-, o velho âncora entra na disputa para obter a matéria e os jovens executivos da TV controlam milimetricamente os índices de audiência e o apoio do público ao sequestrador, para decidir que rumo dar às suas coberturas.
A história é corriqueira e o seu desfecho mais que previsível: o ex-guarda se mata, o âncora dá o golpe no repórter e lhe toma a matéria, e este assume a má-consciência da categoria, gritando, entre respingos de sangue (sim, a trama lhe confere esse "abatimento" na sua culpa), "fomos nós que o matamos!".
Esta frase... nós ouvimos muitas vezes nos últimos tempos. Escola Base, bar Bodega... quantas vezes não presenciamos -e aderimos a- esse ato de contrição esquálido e sem alcance em relação ao mal desencadeado? Tampouco o filme se preocupa em promover a distribuição social da responsabilidade pelo que está acontecendo. Ao contrário, se algo é partilhado ali é a vaidade, o cinismo, a calhordice, a ambição disfarçada em serviço público que a história espelha, a nulidade dos valores e opiniões de nossa época, que o filósofo tanto lamenta. Mas como invocar "responsabilidade" quando o que se ouve na sala são os risos fora de compasso do público, a sua certeza boçal de que se trata de uma comédia? Quando são estes mesmos espectadores que devotam uma crença religiosa aos casoys, aos chagas, às witte fibes, e que se deixam guiar por tantos bonis, marluces, santos, que afinal "entendem" de opinião?
Afinal -seria o caso de se perguntar também- por que tanto interesse pelo feito do homem e tanto desinteresse por esse grão de vida que se esvai? Será que a cena democrática já se corrompeu a ponto de suprimir a ignomínia do pensamento se postar definitivamente ao lado do animal que morre? Toda a dor com que esse se defronta e toda a sua solidão dizem enfim mais ao pensamento do que o velho e batido arcabouço que formou e sustenta as instituições e as mentes do nosso tempo.
Por mais de uma razão, a inusitada referência do filósofo ao animal que sabe morrer não se encontra aqui fora de propósito. O cenário do filme, o local onde as criancinhas são feitas reféns, é um museu de história natural repleto de esqueletos pré-históricos, de animais empalhados e de traços de uma cultura ancestral que também já foi derrotada e bateu em retirada -a dos índios (retirada à qual não falta referência no filme, por meio da historinha que o guarda conta às crianças).
É justamente nesse espaço destinado à preservação da cultura -e não por acaso em falta de verba-, diante da truculência já superada desses animais enfim liberados da morte, que se dá a encenação do que se poderia chamar de fracasso do processo civilizatório (afinal, aqui um homem implora por trabalho -como tantos outros no mundo todo- e ninguém hesita em convocar todos os poderes de controle que civilização arquitetou, toda a tecnologia que os tempos modernos refinaram -dos fuzis às câmeras- para barrar o seu caminho).
Antes de testemunhar um limiar da vida, esses animais inertes não passam aqui de uma lembrança da luta dos mais fortes contra os mais fracos -daquilo que se chama "seleção natural", que, sob o disfarce da "livre escolha", o mundo de hoje elege em princípio que consagra o domínio dos poderosos sobre os vencidos. Confronto tão mais desigual quanto só os mais fortes detêm aqui a tecnologia -tanto aquela, representada pelas armas, que serve para subjugar um homem e seu desespero, quanto a outra, mais sofisticada, que, sob as vestes do exercício democrático da informação, orienta e conduz as massas.
Mas recapitulemos o filme mais uma vez. Um repórter mantém um homem isolado e, a título de ajuda, tira proveito da situação para obter de volta seu antigo posto. Editores, diretores de TV, jornalistas, grandes patrões negociam entre si, com a polícia, cada um em seu proveito próprio. Já vimos esta história no cinema. Foi há quase 50 anos em "A Montanha dos Sete Abutres", de Billy Wilder, em que um outro coitado ficava preso no desabamento de uma mina no Novo México, enquanto um repórter ganancioso, fingindo ajudá-lo, o mantinha ali até à morte para obter de volta seu emprego num grande jornal.
Era o ano de 1951 e, em vez da pujança da TV, tínhamos ainda o predomínio dos jornais e do rádio. Mas quase todos os personagens já estavam lá: o estagiário deslumbrado que depois se vira contra o repórter seu instrutor, o xerife venal, as corruptas forças locais e até o carnaval armado à porta da mina pelo público curioso e pelos seus pequenos negócios.
A história era inspirada num fato real, e Billy Wilder se valia de toda essa sordidez para efetuar uma crítica impiedosa ao jornalismo norte-americano e à opinião pública como um dos esteios do modelo democrático fundado no país. De quebra, fornecia um retrato espantoso da instauração da cultura de massas, da imbecilização que ela desencadeava e da sua pujança diante da cultura arcaica local, a dos índios, em desprestígio perante os novos ícones do sistema midiático.
Sim, porque em vez de delimitar passivamente a luta pela vida, como o animal no filme de Gavras, o primitivo aqui representava uma oposição e um confronto entre dois mundos, o nativo e o civilizado: os índios viam a montanha como lugar sagrado, enquanto o prisioneiro a via como repositório de tesouros a serem dessacralizados, de mercadorias a serem vendidas à beira da estrada, num tosco ensaio de consumo, que o desembarque midiático virá desenvolver de modo muito mais eficaz.
Na época o filme despertou a ira de seus produtores, que obrigaram a mudar seu título de "The Big Carnival" para "The Ace in the Hole". Também a imprensa reagiu violentamente, boicotou o filme, apesar de ele ser hoje considerado como obra de referência na história do cinema.
Em que pesem as diferenças estéticas entre os dois filmes, uma reação assim vigorosa seria a tal ponto impensável nos dias de hoje, em que a indignação de Wilder, por um lado, e universo amorfo de Costa Gavras, por outro, chegam a parecer tão distantes entre si quanto as duas eras evocadas em ambos os filmes: o mundo primitivo com sua crueza e seus rituais e o mundo contemporâneo com seu espetáculo, sua imposição de visibilidade e sua consagração do consumo.
Com efeito, da década de 50 para cá o processo midiático se transformou tão radicalmente e mudou tão profundamente a face do mundo que se pode falar em duas eras: a expansão midiática banalizou a imprensa e rebaixou tanto a opinião que o que outrora se denominava serviço público e exprimia a dignidade da função da imprensa acabou se tornando praticamente um sistema de "atendimento" ao consumidor. Além disso um outro tipo de trato foi introduzido entre o público e os jornalistas, mediado pela auto-imagem, enquanto os ditames do mercado sobrepujaram qualquer veleidade de "participação".
Do lado do cinema, por sua vez, são dignas de nota a corrosão da narrativa hollywoodiana, a decadência do herói tradicional e dos valores pelos quais ele propugnava. No campo ideológico e cultural, a remodelagem não foi menos violenta com a débâcle do comunismo, a perda de força das ideologias, o enfraquecimento do Estado e, consequentemente, das forças que o enfrentavam.
Nesses termos, não é de se estranhar que o filme de Costa Gavras tenha menos poder de fogo do que o de Billy Wilder e que não desperte as mesmas reações que seu predecessor despertou. Mas, justamente, que tipo de interesse pode despertar um filme nesses moldes? Por que, apesar do seu intuito crítico, ele não traz mais a vergonha de sermos homens, nem instaura a ignomínia num público que se sabe formado por tais "heróis"? Ou, levando ainda a questão para o terreno vizinho da imprensa escrita ou mesmo da TV, por que as colunas ou programas críticos que rebatem a mesma tecla crítica acabam se parecendo com pios atos de contrição e terminam se reduzindo a um mero processo de auto-alimentação?
Diante dessas atitudes contritas -mas nem sempre desprovidas de interesses lucrativos- talvez seja interessante lembrar mais uma vez o filósofo, aqui no prefácio ao livro de Serge Daney -não por acaso o único crítico de cinema que se dispôs, durante anos, a ser também crítico de TV.
Na sua carta, pois se tratava de uma carta ao crítico (1), o filósofo dava conta de pesquisas recentes (eram os anos 80), mostrando que um dos espetáculos mais apreciados consistia em assistir a um programa de TV no estúdio. "Não é questão de beleza nem de pensamento", escrevia então Gilles Deleuze, "mas de estar em contato com a técnica, de tocar a técnica...". Tratava-se, nessas circunstâncias, de uma "formação profissional do olho", da "inserção do espectador na imagem, através do contato com a imagem".
O filósofo com certeza tinha toda a razão em invocar o fetiche da técnica, a presença de toda essa parafernália sofisticada que faz do seu detentor o senhor do mundo. Mas acertava também ao invocar o poder inusitado de inserção do espectador na imagem (do qual os auditórios dos nossos ratinhos, hebes, popoviks, anas marias são apenas uma versão, digamos assim, mais literal).
Estar na imagem, fazer parte dela, eis um modo de partilhar o mundo desses novos heróis, de compartilhar com eles aquele cantinho do estúdio para onde e de onde convergem todas as forças que importam agora. Ninguém melhor que o cinema, tão viciado na ação, para nos colocar ali onde as coisas "estão acontecendo", diante dessa luz que a tudo ilumina e que acaba por cegar os nossos olhos ávidos de tudo ver.
Mas nem só o cinema pode nos oferecer esse narcisismo esdrúxulo e meio às avessas, que não nos dá propriamente a nossa imagem, mas nos faz pertencer à imagem arquitetada pelo outro. Também a televisão e o jornal podem nos elevar até esse mundo da informação, nos tornar "íntimos" dele ao expor as técnicas de elaboração da notícia, ao dissecar impiedosamente os métodos do trabalho jornalístico e ao nos conclamar, assim, a nos tornarmos também tão "profissionais" quanto aqueles investidos dessa função.
Não seria esse o momento de perguntar se essa apropriação, se essa exclusividade, digamos assim, "técnica", de uma crítica que, afinal, cabe a toda a sociedade, não constitui, no fim das contas, um modo de nos integrar definitivamente a esse sistema de auto-alimentação e de acenar com a sua eternização, por meio da possibilidade para sempre aberta de renovação da autocrítica?


NOTA
1.Deleuze, Gilles. "Optimisme, Pessimisme e Voyage - Lettre à Serge Daney", em Daney, Serge. "Ciné-Journal - 1981-1986". Ed. Cahiers du Cinéma, Paris, 1986.


Stella Senra é ensaísta, autora de "O Último Jornalista" (Ed. Estação Liberdade).



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