São Paulo, Domingo, 14 de Março de 1999
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BRASIL 500 D.C.
Filósofa, que está lançando "A Nervura do Real", estréia em seção que reúne intelectuais brasileiros
Marilena Chaui passa a escrever na Folha

RICARDO MUSSE
especial para a Folha

Um dos traços mais destacados da trajetória de Marilena Chaui, que estréia nesta semana na seção "Brasil 500 d.C", publicada no Mais! (leia seu primeiro artigo nesta página), é sua preocupação com a responsabilidade do intelectual. Responsabilidade para com seus pares e com o departamento de filosofia da USP -onde se graduou e defendeu o mestrado-, demonstrada por seu retorno da França, após a promulgação do AI-5 e antes do término de sua bolsa de estudos, especialmente para preencher parte dos claros deixados por uma série de cassações; para com os alunos, que encontraram em seus cursos uma forma de resistir, nesse período de medo, delações e mortes; para com o país, manifesta na sua atuação pública durante a luta contra o regime militar e, posteriormente, ao assumir os ônus de uma participação política (foi secretária de Cultura na gestão de Luiza Erundina), sem se deixar corromper pelas benesses do poder.
Seus escritos, dos textos de circunstâncias aos livros mais planejados, tampouco omitem essa preocupação. Um dos alicerces de sua crítica da ideologia e da dominação, tema recorrente em sua obra, anunciado de chofre na apresentação de seu primeiro livro, "Ideologia e Mobilização Popular", é o pressuposto de que "pensar e produzir representações são momentos da praxis tanto quanto as ações efetivamente realizadas pelos agentes sociais". Assim, Marilena Chaui concede às palavras e aos textos um peso e uma importância, em suma, uma responsabilidade, que muitos intelectuais prefeririam não ter.
Naqueles anos de "abertura política" e luta contra a ditadura, a crítica da ideologia desdobra-se em esclarecimentos teóricos e em aplicações concretas. A explicitação da ideologia como uma lógica de ocultação do real, contraposta à crítica, sua negação determinada, modalidade de conhecimento da sociedade que remete do aparecer ao ser social, substituiu a cisão althusseriana entre ideologia e ciência, estabelecendo novas coordenadas metodológicas para toda uma geração de pesquisadores.
Ponto alto desse projeto é a análise da competência como ideologia levada a cabo em "Cultura e Democracia" (Moderna, 1981). Já os objetos dessa crítica abarcam desde o pensamento conservador ("Apontamentos para uma Crítica da Ação Integralista Brasileira", Paz e Terra, 1978) a certas matrizes da esquerda brasileira, norteadoras de projetos como o Iseb e o CPC (em "Seminários. O Nacional e o Popular na Cultura Brasileira", Brasiliense, 1983), salientando traços comuns como o "pensamento autoritário" e a "ideologia verde-amarela".
A intenção pedagógica e a vocação iluminista inerentes a essa preocupação manifestaram-se na publicação de uma série de livros de divulgação, entre eles "O Que É Ideologia" (Brasiliense, 1980). Nos anos 90, com o retorno da filosofia ao segundo grau -causa pela qual se empenhara a vida toda-, vieram os livros destinados à iniciação em filosofia, "Introdução à História da Filosofia" (Brasiliense, 1994), "Convite à Filosofia" (Ática) e "Espinosa" (Moderna, 1995). No campo da história da filosofia, a preocupação de Chaui com a luta contra a dominação transparece já na própria escolha dos objetos: La Boétie (num posfácio de 1982 ao "Discurso da Servidão Voluntária"); Espinosa, Voltaire, Merleau-Ponty, em "Da Realidade sem Mistérios ao Mistério do Mundo" (Brasiliense, 1981).
Em "A Nervura do Real" (Companhia das Letras), que será lançado nesta semana, encontramos não apenas uma interpretação original e integral da obra de Espinosa e uma história dos azares de sua recepção, mas também uma nova maneira compreender a história da filosofia. Chaui dá um passo adiante em relação à "explicação estrutural de textos", mostrando como a história é interna à obra, o que exige, para uma explicação adequada dos objetos da história da filosofia, o recurso às várias vertentes da história -política, social, da ciência, da arte, da filosofia.


Ricardo Musse é professor do departamento de filosofia da Unesp (Universidade Estadual Paulista) e um editores da revista "Praga".



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