São Paulo, Domingo, 14 de Março de 1999
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POESIA
Há cem anos nascia Francis Ponge, um dos mais célebres poetas franceses do século 20
As palavras e as coisas

LEDA TENÓRIO DA MOTTA
especial para a Folha

Há um século, em 27 de março de 1899, no mesmo formidável ano em que vinham ao mundo Borges e Henri Michaux, o poeta Francis Ponge nascia em Montpellier, no sul da França. No velho Languedoc, que é inseparavelmente um "país", como dizem os franceses referindo-se ao interior, e uma língua, a língua do país, a que se refere o "hoc" latino. O que não deixa de ser poeticamente fatalizante para Ponge.
Já que, pela sua longa obra afora, ele não acabará nunca mais de perseguir tão fino ajuste quanto esse entre as palavras e as coisas. Não cessará nunca mais de pretender uma expressão fiel a seu objeto. Não voltará nunca mais de sua "Viagem por Cratília", para lembrar o volume famoso de Gerard Genette sobre o diálogo platônico que, segundo ele, Genette, programa, como um arquitexto, as estratégias de motivação da linguagem poética na modernidade. Originando-se aí todas aquelas sempre vãs tentativas de ajuste entre a realidade e a realidade verbal, a serviço das quais se põem as alquimias do verbo. Também conhecidas como floresta de símbolos. Tem tudo a ver com isso, desde os títulos, que encaminham dois manifestos em sentido contrário, ambos ironicamente peremptórios, os dois mais conhecidos livros de Ponge (até agora sem tradução em português do Brasil, excetuadas algumas peças esparsas): "Le Parti Pris des Choses" (O Parti Pris das Coisas) e "La Rage de l'Expression" (A Raiva da Expressão) (1). A esses dois, de 1942 e 1952, respectivamente, somam-se, em 1988, o ano da morte, cerca de 15 outros volumes, de gênero decididamente não identificado -nem prosa, nem poesia, nem prosa poética- e de inclinação ensaística, como a de Borges.
Conjunto cheio de abismos interiores ou não-limites entre a realidade e o fantástico, que desemboca, como em Borges, resguardados os imaginários, diferentemente obsessivos, num mundo-livro. De objetos retóricos, embora também virtuosisticamente retratados, como no poema "Les Hirondelles" (As Andorinhas): "Cada andorinha incansavelmente se precipita -infalivelmente se exerce- na assinatura, segundo a espécie, dos céus" (2).
Se há enquadramento possível para a raridade desse universo de objetos mais para banais e em permanente tensão com seus nomes, se há gênero que dê conta da especialidade dessa poética em reivindicado e total desalinho com o que se faz em volta, se há rubrica que envolva o desconcerto, o sorriso cético, a surpresa que ela quer e consegue produzir, teríamos que lhe aplicar, junto com Ponge, a designação de "proêmes".
Por "proemas" devendo-se entender, primeiro, uma fatura assumidamente contrapoética, e assim tendencialmente dissertativa, que é uma das mais impressionantes operações de derrubada do verso neste século, movida contra Valéry, Claudel e, principalmente, Breton e companhia, para só citar os melhores inimigos. Diga-se de passagem que não se verifica em Ponge, ao contrário do que acontece com Yves Bonnefoy, nenhum surto de surrealismo juvenil.
Mas "proême" é, segundo, uma prerrogativa de inacabamento, que faz ainda da saída prosaica, como se ela não bastasse, simples intróito, exórdio, prelúdio... Todas significações possíveis para "proêmio", velho termo da esfera da retórica, a que a palavra-valise do poeta, em sua estridência proposital, e suspensão provocadora, também alude. Pondo a obra toda em estado de eterno esboço.
Acrescente-se a isso, junto com o desprezo pelas temáticas elevadas -coração, amor, espírito, pátria-, o descarte da pose inteligente -"as idéias não são o meu forte", insiste Ponge, por toda parte, mas principalmente em "Métodos", seu único livro traduzido por aqui (3). E ter-se-á a medida da solidão, digna dos muito grandes, em meio à qual evolui o autor de "Proêmes". Como traduzir: paixão, capricho, ímpeto, gana de exprimir-se?
Ele segue como um ilustre desconhecido, trabalhando, aliás, entre pares ilustres, na editora Gallimard, por um bom tempo, o que não deixa de lembrar Borges, ainda uma vez, em sua biblioteca de Buenos Aires. Até que as coisas se modifiquem ligeiramente, nos anos 60, quando acontece uma primeira reunião da obra, numa coletânea em três tomos, intitulada "Le Grand Recueil", em que entram "Méthodes", "Pièces", "Lyres". Modificação que se aprimora nos anos 70, quando é redescoberto pelo grupo "Tel Quel", especialista em outsiders. Refratário a toda espécie de burburinho, Ponge, entretanto, não tardará em afastar-se de Philippe Sollers e do movediço discurso "telquelien".
As primeiras publicações, em revista, são dos anos 20. A primeira reunião, em "Douze Petits Écrits", de 1926, passa despercebida, salvo uma recepção do filósofo Bernard Groethuysen. Se não encontra ressonância entre a gente da literatura, Ponge cai, desde sempre, nas graças da filosofia. Assim, não só Groethuysen, mas Sartre, Henri Maldiney, Jacques Derrida e, mais recentemente, a helenista Barbara Cassin têm trabalhos sobre sua obra, a exemplo do belíssimo "Signéponge", de Derrida. Esse tipo de acolhida confirma a extravagância do poeta, podemos pensar. Porque prova que ele só está em família quando não está. E o fato é tão mais digno de nota quanto a tábula rasa a partir da qual Ponge se dedica a seus objetos repele inclusive a filosofia. Que também para ele é um ramo da literatura (da literatura fantástica, dizia Borges), e não dos que ele mais aprecia.
A prova: as reprovações nos concursos de ingresso à Faculdade de Filosofia e École Normale Supérieure. Literalmente incapaz de falar em público ou sob emoção -outro bom presságio, se é certo que o poeta é aquele que não encontra suas palavras, como dizia Valéry-, são hoje eventos-fetiche entre os iniciados os episódios de 1918 e 1919, quando, afásico diante das bancas examinadoras, Ponge é barrado na porta de entrada dessas grandes escolas, feitas para gente de melhor desempenho. Pois temos aí a demonstração prática da grande pane de linguagem de cuja existência depende a boa literatura. Sem falar que nasce desse estado por assim dizer espetacular de insuficiência retórica a proposta tão pongiana de uma retórica por poeta, senão por poema, senão por objeto, encontrável no livro "Proêmes" (1938).
Sempre longe de casa, o poeta frequenta intensamente, desde os anos 60, os pintores da Escola de Paris (Picasso, Braque, Giacometti), o que lhe valerá "L'Atelier Contemporain" (1977) e, apesar do nome enganoso, "Lyres" (Liras, 1961), volume de "salonnier", de comentador de exposições de artes plásticas, na linha nobre de Diderot e Baudelaire.
Ponge morre em seu "país", em Bar-Sur-Loup, no mesmo sul provençal, em 6 de agosto de 1988.


Notas:
1. Mas está pronta uma excelente tradução do "Parti Pris", que talvez ainda saia neste ano, escrita a várias mãos, sob a coordenação de Michel Peterson, antigo professor de literatura francesa na Universidade Federal do Rio Grande do Sul e especialista no poeta. Trabalham nela Inacio Antonio Neis, da mesma universidade, Carlos Loria e Adalberto Müller Júnior;
2. Do volume "Pièces" (1961);
3. Francis Ponge, "Métodos", tradução de Leda Tenório da Motta, Imago, 1997.


Leda Tenório da Motta é doutora em literatura francesa e professora da Pontifícia Universidade Católica (PUC/SP). É autora, entre outros, de "Catedral em Obras" (Ed. Iluminuras).



Onde encomendar Está saindo na França o primeiro volume das obras completas de Francis Ponge. "Oeuvres Complètes", tomo 1 (Ed. Gallimard, "Bibliothèque de la Pléiade", 1.312 págs., 51,83 euros), pode ser encomendado na Livraria Francesa (r. Barão de Itapetininga, 275, São Paulo, tel. 011/231-4555) ou, pela Internet, na Alapage (www.alapage.com).



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