São Paulo, Domingo, 14 de Março de 1999
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LIVROS
Augusto de Campos reúne artigos sobre os principais compositores do século 20
Vanguardas sonoras

JOÃO BATISTA NATALI
da Reportagem Local

Augusto de Campos parte de uma constatação intrigante: o século 20 adaptou-se com relativa facilidade aos critérios necessários para entender uma tela de Mondrian ou um poema de Ezra Pound. Não fez o mesmo, no entanto, com a música de Webern, Boulez ou Cage, equivalentes, na linguagem sonora, desse grupo de artistas revolucionários que o ensaísta qualifica muito propriamente de "inventores".
A coletânea de ensaios "Música de Invenção" é um passeio ao mesmo tempo indignado e instrutivo pela produção desse grupo de criadores de novas estruturas da sonoridade. Os textos de Augusto de Campos não são inéditos. Muitos foram originariamente publicados pelo Mais!. Reunidos numa só brochura, entretanto, eles enriquecem com uma visão unitária esse conjunto da vanguarda artística, praticamente ignorada pelo mercado discográfico e quase ausente das salas de concerto.
Augusto de Campos, e é um de seus atrativos, nada tem da frigidez acadêmica. É um crítico apaixonado, de um engajamento partícipe -é autor da tradução para o português do ciclo de poemas em cima dos quais Arnold Schoenberg compôs "Pierrot Lunaire".
Pontos como esse no currículo lhe dão autoridade para eventualmente disparar contra Mário de Andrade, Otto Maria Carpeaux ou Camargo Guarnieri, que, a seu ver, se perderam em atalhos e se afastaram do essencial.
Uma essencialidade, em verdade, difusa. Bartok, Virgil Thomson, Charles Ruggles, Varèse ou Stravinski não foram compositores que convergiram para formas semelhantes de estruturação do som. Mas é como se, a partir dessa diversidade, existisse em comum um projeto estético vagamente fincado na idéia de modernidade, com suas sucessivas ondas de renovação que o pós-modernismo -e Augusto de Campos não entra nessa discussão- esterilizou.
Alguns dos compositores se destacam pela frequência de aparição e por uma certa reverência que o autor dos ensaios lhes devota. É o caso de Eric Satie e Anton Webern.
Para os medianamente iniciados, Satie é um nome em que se concentram iconoclastias diversas, por sua permeabilidade ao dadaísmo e ao exotismo no título de algumas de suas peças ("Prelúdios Flácidos para um Cão"). Mas Augusto de Campos não se detém em constatações de formalismos musicais ao trazer à tona de seu texto esse fascinante personagem. Ele também o deixa falar. "Ravel recusa a Legião de Honra, mas toda a sua obra a aceita", disse ele sobre seu mais ilustre contemporâneo musical. Ou ainda: "Não basta recusar a Legião de Honra, o essencial é não merecê-la".
Em outro momento sobre o compositor francês, Augusto de Campos afasta-se prudentemente da visão estereotipada do gênio tardiamente compreendido. Dá a palavra a outro vanguardista, o norte-americano John Cage, que em 1948 afirmara em conferência, no Black Mountain College, que Webern e Satie estavam certos, e quem estava errado era Beethoven, cuja influência tinha sido nefasta para a música.
É também verdade que Cage foi, a seu modo, uma espécie de dadaísta tardio, com a música por vezes concebida de forma a pôr em pé de igualdade a produção de sons e a histriônica mise-en-scène necessária para produzi-los.
Mas há ainda Webern. Um dos textos de Augusto de Campos intitula-se, sem maior pudor, "Ouvir Webern e Morrer". O livro opera um recorte na identidade artística do compositor, dissociando-o dos atonalistas de Viena com os quais nasceu e aos quais permaneceu umbilicalmente associado.
Webern é a extrema condensação inventiva, com apenas 31 obras produzidas em 37 anos de vida criativa, todas elas passíveis de serem percorridas em somente três horas de audição. Se foi, a exemplo de Alban Berg, também discípulo de Schoenberg, foi mais com a geração do pós-Guerra -a partir do curso de harmonia dado em Paris por Olivier Messiaen- que dois dos mais brilhantes integrantes do grupo, Boulez e Stockhausen, enxergaram em Webern a plataforma a partir da qual poderiam dar novos passos.
Há por fim em "Música de Invenção" comentários discográficos a quente, com uma cuidadosa comparação entre versões de diferentes intérpretes. Há ainda uma tentativa de historicizar no Brasil o repertório tratado, datando primeiras audições, recenseando os primeiros intérpretes e por vezes notando a reação do público.
Trata-se, em suma, de um conjunto de textos de temperatura elevada, uma espécie de sucessão de panfletos apaixonados em que a defesa dos compositores se abastece de uma sempre invejável erudição. É um livro que estimula a pulsão de encomendar uma batelada inicial de uma dúzia de CDs para recuperar o tempo que, para a arte, nunca está definitivamente perdido.



A OBRA

Música de Invenção - Augusto de Campos. Ed. Perspectiva (av. Brigadeiro Luís Antônio, 3.025, CEP 01401-000, SP, tel. 011/885-8388). 274 págs. R$ 30,00.




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