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A harpa e o crocodilo
RÉGIS BONVICINO
especial para a Folha
Ronald Polito, um dos mais promissores talentos da nova geração
de poetas brasileiros, e Sérgio Alcides oferecem à língua portuguesa a primeira coletânea de Joan
Brossa (1919-1998), poeta e artista
plástico catalão, que, em 1949, se
tornou amigo de João Cabral de
Melo Neto, então cônsul do Brasil
em Barcelona. Os tradutores optaram por verter um só volume, os
"Poemas Civis", argumentando
que nele as questões políticas e estéticas se condensam de forma
aguda. Relatam que na primeira
edição do livro, de 1961, Brossa foi
obrigado a excluir poemas contra
o Estado ditatorial, a Igreja e a
própria censura. Polito e Alcides
estudaram catalão para traduzir as
peças, o que é mais um dos méritos deste trabalho pioneiro e cuidadoso, que traz notas e justificativas às traduções e ensaio de fôlego sobre o autor. Outro dos méritos dos tradutores é o de romper
com o etnocentrismo e o de procurar poesia renovadora e experimental não nas fontes mais óbvias
ou simplesmente exóticas.
Brossa tem origem no surrealismo e nas tradições populares da
Catalunha e foi um dos fundadores da revista "Dau al Set", criada
em 1948, com Antoni Tàpies e outros, para reunir o mais influente
grupo de vanguarda do pós-guerra catalão, resgatando iniciativas
do início do século, de Marcel Duchamp e outros. Duchamp é de fato importante na compreensão do
processo de composição de Brossa, inclusive no destes "Poemas
Civis": o do deslocamento de palavras e frases, numa espécie de
"ready-made" verbal, "refuncionalizando", para usar termo
de Polito e Alcides, a sintaxe.
Todavia um conjunto de poemas
não pode ser avaliado pelas origens históricas do autor ou suas
referências, mas pelos seus resultados e pelo que "fala" para o
momento, no caso, o brasileiro. A
tradução, trazendo o outro, o estrangeiro, reafirma alguma brasilidade e por aqui se irradia. Muitas
vezes o entusiasmo dos tradutores
não corresponde, para mim, à
qualidade dos poemas em catalão
ou em português, porque, sim,
bem vertidos. Brossa é um dos
muitos poetas do século 20 que
trabalham com a insuficiência, o
que pode se materializar em bons
ou maus resultados.
Os maus momentos são aqueles
em que o "ready-made" se perde
na mera descrição: "A bola vai até
o campo contrário,/ intervém o
atacante e chuta em vez/ de centrar. Cobram o córner, o/ atacante
desvia a bola com a/ cabeça, dispara forte o centroavante/ e bate o
goleiro./ Substituam a palavra bola/ por globo terrestre". Outra das
questões que se pode discutir na
poesia de Brossa é a de seu caráter
excessivamente metalinguístico, o
que a torna, a meu ver, "out of
date". Brossa utiliza a palavra
"poema" em quase todos os poemas do livro, o que, no mínimo,
fecha e reduz o sentido dos próprios poemas. Leia-se a bela primeira estrofe em seguida aprisionada pela "metalinguagem":
"Os pássaros/ têm o corpo coberto/ de penas; bico adunco, dois pés
e duas/ asas./ Move este poema
um/ arame oculto em seus/ versos". As melhores peças (muito
do livro) são aquelas nas quais a
mera descrição e a metalinguagem
encontram transcendência: "Folhas de menta?/ Flores de laranjeiras?/ Folhas de tabaco?/ Essência
de pinho?/ Âmbar?/ E a lua,/ será
espelho que vem/ do antigo Egito?".
Brossa pode ser definido como
um poeta conceitual, como conceitual foi o grupo "Fluxus", de
Nova York, no início dos anos 60.
Nesses termos, escapando da página pura (o que era uma de suas
metas, diga-se) e migrando para a
performance (os poemas como
instruções), suas palavras ganham
sentidos mais densos: "A persiana
pode ser horizontal/ ou vertical;
você pode regular sem/ se levantar
da cadeira onde está./ Oh sucessão
do dia/ e da noite". Embora sem o
poder de fábula de um Lorca,
Brossa tem seu melhor momento,
para mim, em: "O Crocodilo
abre/ a boca para engolir o poeta./
Mas o poeta pega a harpa/ e a põe
em pé na goela do monstro;/ o crocodilo não pode fechar a boca/ e
fica transformado em uma/ harpa
viva". Operação de antropofagia,
em que as palavras "inúteis" do
poeta vencem as utilidades monstruosas desse tempo, cada vez
mais, sombrio.
A OBRA
Poemas Civis - Joan Brossa.
Tradução de Ronald Polito e Sérgio Alcides. Ed. Sette Letras (r.
Maria Angélica, 171, loja 102, CEP 22470-200, RJ, tel. 021/537-2414). 291 págs. R$ 20,00.
Régis Bonvicino é poeta, autor de, entre outros, "Ossos de Borboleta" (Ed 34).
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