São Paulo, Domingo, 14 de Março de 1999
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

A harpa e o crocodilo

RÉGIS BONVICINO
especial para a Folha

Ronald Polito, um dos mais promissores talentos da nova geração de poetas brasileiros, e Sérgio Alcides oferecem à língua portuguesa a primeira coletânea de Joan Brossa (1919-1998), poeta e artista plástico catalão, que, em 1949, se tornou amigo de João Cabral de Melo Neto, então cônsul do Brasil em Barcelona. Os tradutores optaram por verter um só volume, os "Poemas Civis", argumentando que nele as questões políticas e estéticas se condensam de forma aguda. Relatam que na primeira edição do livro, de 1961, Brossa foi obrigado a excluir poemas contra o Estado ditatorial, a Igreja e a própria censura. Polito e Alcides estudaram catalão para traduzir as peças, o que é mais um dos méritos deste trabalho pioneiro e cuidadoso, que traz notas e justificativas às traduções e ensaio de fôlego sobre o autor. Outro dos méritos dos tradutores é o de romper com o etnocentrismo e o de procurar poesia renovadora e experimental não nas fontes mais óbvias ou simplesmente exóticas.
Brossa tem origem no surrealismo e nas tradições populares da Catalunha e foi um dos fundadores da revista "Dau al Set", criada em 1948, com Antoni Tàpies e outros, para reunir o mais influente grupo de vanguarda do pós-guerra catalão, resgatando iniciativas do início do século, de Marcel Duchamp e outros. Duchamp é de fato importante na compreensão do processo de composição de Brossa, inclusive no destes "Poemas Civis": o do deslocamento de palavras e frases, numa espécie de "ready-made" verbal, "refuncionalizando", para usar termo de Polito e Alcides, a sintaxe.
Todavia um conjunto de poemas não pode ser avaliado pelas origens históricas do autor ou suas referências, mas pelos seus resultados e pelo que "fala" para o momento, no caso, o brasileiro. A tradução, trazendo o outro, o estrangeiro, reafirma alguma brasilidade e por aqui se irradia. Muitas vezes o entusiasmo dos tradutores não corresponde, para mim, à qualidade dos poemas em catalão ou em português, porque, sim, bem vertidos. Brossa é um dos muitos poetas do século 20 que trabalham com a insuficiência, o que pode se materializar em bons ou maus resultados.
Os maus momentos são aqueles em que o "ready-made" se perde na mera descrição: "A bola vai até o campo contrário,/ intervém o atacante e chuta em vez/ de centrar. Cobram o córner, o/ atacante desvia a bola com a/ cabeça, dispara forte o centroavante/ e bate o goleiro./ Substituam a palavra bola/ por globo terrestre". Outra das questões que se pode discutir na poesia de Brossa é a de seu caráter excessivamente metalinguístico, o que a torna, a meu ver, "out of date". Brossa utiliza a palavra "poema" em quase todos os poemas do livro, o que, no mínimo, fecha e reduz o sentido dos próprios poemas. Leia-se a bela primeira estrofe em seguida aprisionada pela "metalinguagem": "Os pássaros/ têm o corpo coberto/ de penas; bico adunco, dois pés e duas/ asas./ Move este poema um/ arame oculto em seus/ versos". As melhores peças (muito do livro) são aquelas nas quais a mera descrição e a metalinguagem encontram transcendência: "Folhas de menta?/ Flores de laranjeiras?/ Folhas de tabaco?/ Essência de pinho?/ Âmbar?/ E a lua,/ será espelho que vem/ do antigo Egito?".
Brossa pode ser definido como um poeta conceitual, como conceitual foi o grupo "Fluxus", de Nova York, no início dos anos 60. Nesses termos, escapando da página pura (o que era uma de suas metas, diga-se) e migrando para a performance (os poemas como instruções), suas palavras ganham sentidos mais densos: "A persiana pode ser horizontal/ ou vertical; você pode regular sem/ se levantar da cadeira onde está./ Oh sucessão do dia/ e da noite". Embora sem o poder de fábula de um Lorca, Brossa tem seu melhor momento, para mim, em: "O Crocodilo abre/ a boca para engolir o poeta./ Mas o poeta pega a harpa/ e a põe em pé na goela do monstro;/ o crocodilo não pode fechar a boca/ e fica transformado em uma/ harpa viva". Operação de antropofagia, em que as palavras "inúteis" do poeta vencem as utilidades monstruosas desse tempo, cada vez mais, sombrio.



A OBRA

Poemas Civis - Joan Brossa. Tradução de Ronald Polito e Sérgio Alcides. Ed. Sette Letras (r. Maria Angélica, 171, loja 102, CEP 22470-200, RJ, tel. 021/537-2414). 291 págs. R$ 20,00.




Régis Bonvicino é poeta, autor de, entre outros, "Ossos de Borboleta" (Ed 34).



Texto Anterior: Livros: Vanguardas sonoras
Próximo Texto: Lançamentos
Índice


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Agência Folha.