São Paulo, Domingo, 14 de Março de 1999
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Economistas discutem em "O Fato e o Mito" os efeitos perversos da globalização
Alternativas à crise

OSCAR PILAGALLO
Editor de Dinheiro

Dize-me o que é globalização, e te direi quem és.
"Trata-se da integração natural e inescapável das economias, potencializada pela tecnologia, e que proporciona ganhos para todas as partes." És um neoliberal.
"É um conceito inventado pelos norte-americanos para dissimular a entrada de suas empresas em mercados de outros países." És um desenvolvimentista.
Esses são, respectivamente, o mito e o fato, assim como apresentados no livro "Globalização - O Fato e o Mito", uma coletânea de artigos de vários economistas escritos a partir de um seminário internacional realizado em abril do ano passado no Brasil.
Publicado muito antes da eclosão da crise cambial brasileira -mas quando já parecia inevitável o desfecho, a incerteza limitando-se ao momento da desvalorização-, o livro soa profético.
Globalização, afinal, pressupõe a livre movimentação do capital especulativo, o mesmo que atacou e derrotou o real ao apostar que as deficiências intrínsecas do plano tornariam vulnerável a moeda nacional para além de qualquer possibilidade de defesa.
Mas não é a profecia que torna o livro relevante. O trabalho vale por mostrar que, entre economistas de esquerda, o consenso contra a globalização acaba quando se apresentam alternativas ao modelo.
A opção mais citada é a da regulamentação dos mercados, embora a aplicação de regras não altere a natureza da globalização, devendo no máximo coibir os excessos. De qualquer maneira, quem supervisionaria o processo?
Para Paul Hirst, professor da Birkbeck College, da Universidade de Londres, a coordenação ficaria a cargo de entidades supranacionais. Para Luciano Coutinho, da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), a única coordenação possível é a de bancos centrais.
Hirst argumenta que as próprias nações ricas acabarão vítimas da globalização porque, com a pauperização que impõem ao resto do mundo, a classe média, cujo consumo em massa sustenta o capitalismo moderno, irá quase desaparecer, reduzindo-se a uma elite.
O problema é que essa percepção de risco não parece compartilhada por aqueles que hoje desfrutam dos benefícios da globalização. Não há desejo político nem consenso internacional nesse sentido, duas precondições citadas por Hirst para que a globalização pudesse ser disciplinada.
E, por falar em desejo político, um parênteses: os economistas não enfrentam devidamente a questão da legitimidade obtida seguidamente nas urnas por governos que, quando em campanha, não esconderam dos eleitores a opção pela globalização, o que é, aliás, o caso do Brasil tanto de Fernando Collor como de Fernando Henrique Cardoso.
Luiz Gonzaga Belluzzo, também da Unicamp, não chega a abordar o tema -o que ninguém faz-, mas menciona de passagem que "só a radicalização da democracia é capaz de cumprir as promessas da modernidade" e lamenta que os partidários dessa "democracia radical" (conceito não elaborado pelo autor) tenham sido inábeis ao tentar alertar sobre os riscos. Fecha parênteses.
As alternativas apresentadas pecam por colocar a engenhosidade da fórmula acima da viabilidade política. É o caso da sugestão de Hirst. Constatado que os países recém-industrializados recebem apenas parcela ínfima dos investimentos diretos internacionais, então por que não fomentar investimento privado em países pobres? Sim, mas como convencer as empresas? Os autores não identificam uma fonte de pressão política suficiente para influir nas decisões das principais economias mundiais.
José Luís Fiori, do Instituto de Economia da Universidade Federal do Rio de Janeiro e um dos organizadores do livro, achava, havia praticamente um ano, que a crise financeira internacional seria isolada e controlada -e os fatos posteriores, apesar da "queda" da Rússia e do Brasil, não tiraram a validade de sua análise.
Fiori acredita que o colapso geral do sistema só será evitado se houver uma atuação coordenada não só dos bancos centrais, como defende Coutinho, mas também dos bancos privados. Mesmo assim, não seria uma saída porque a solução, em sua expressão, submeteria a economia mundial aos efeitos perversos de uma paradoxal "estabilização da incerteza".
Sendo, como é, um livro contra a globalização, é natural que entre os economistas mais citados estejam Keynes, que defendia políticas fiscais expansionistas e déficits públicos com o objetivo de estimular o crescimento, e Galbraith, autor da definição crítica de globalização usada, com outras palavras, no início desta resenha.
Algumas menções são apenas lembranças nostálgicas; outras, como a de Belluzzo, propõem a "reinvenção das formas públicas de coordenação, reconhecendo que os padrões da era keynesiana estão desgastados".
Além de provocar o debate sobre globalização, o livro tem o mérito de reconstituir a história recente que levou à crise mundial.
A origem seria o Acordo do Plaza, firmado em 1985, a partir do qual o dólar -que vinha subindo desde 1979, quando os juros dispararam nos Estados Unidos- começou a ser desvalorizado, em decorrência de ação coordenada dos governos dos países ricos.
Com isso, o iene valorizou-se, o que levou o governo do Japão a baixar os juros, fazendo com que os aplicadores deixassem o mercado financeiro e comprassem imóveis e outros ativos. É esse o início da "bolha especulativa", que estourou nos anos 90, provocando a recessão no Japão, que, por sua vez, está na raiz da crise asiática.
Alguns textos, com o objetivo de marcar fortemente uma posição, resvalam na tautologia, o que às vezes dilui o argumento. Mas, por ser o livro uma resposta ao "pensamento único" pró-globalização, trata-se de um mal menor.



A OBRA

Globalização - O Fato e o Mito - Organização de José Luís Fiori, Marta Skinner e José Carvalho de Noronha. Ed. da Universidade Estadual do Rio de Janeiro (r. São Francisco Xavier, 524, CEP 20550-030, RJ, tel. 021/587-7789). 240 págs. R$ 20,00.




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