São Paulo, Domingo, 14 de Março de 1999
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MEMÓRIA
O filólogo Antonio Houaiss, que morreu no último dia 7, aos 83, dedicou-se por inteiro à defesa da língua portuguesa
Uma vida quase completa

Frederico Rozário/Folha Imagem
Antonio Houaiss, que traduziu o "Ulisses", de Joyce, para o português


JOSÉ MARIO PEREIRA
especial para a Folha

A morte arrebatou-nos Antonio Houaiss sem que ele pudesse ver realizado seu grande sonho profissional: o dicionário da língua, abrangente e inovador, para o qual se preparou a vida inteira e que ficou inacabado (em razão, também, de outros contratempos, desde a falta de financiamento, no início do trabalho, até o que se poderia caracterizar, eufemisticamente, como "as complexidades de temperamento" de certo acadêmico -que no velório falava maravilhas dele, mas que todos sabiam ter-lhe causado, nos últimos anos, momentos de irritação e tristeza).
Sua tradução do "Ulisses", de James Joyce, provocou louvações, mas também polêmicas. Aplaudida por uns, criticada por outros, Houaiss incorporou, nas edições seguintes, as sugestões que lhe pareceram oportunas. Na tradução das 260.430 palavras da obra maior do irlandês, trabalhou em média seis horas por dia, durante um ano. Redigiu primeiro à mão -cerca de duas horas para cada página. Depois fez uma cópia à máquina, que sofreu mais três revisões até ir para o prelo.
Sobre o "Ulisses", disse em entrevista a Olympio Monat (em "Cadernos Brasileiros", março-abril de 1966): "Toda a linguagem ali é rítmica. Na tradução procurei conservar, sempre que possível, esse ritmo. (...) Quando o autor utiliza uma só palavra, utilizo também uma só. Literalmente entendo que toda tradução deve ser dialetal e literal. (...) O maior obstáculo que encontrei foi no caso de polissemias, isto é, quando um vocábulo inglês tem dois ou mais sentidos e quando esses dois sentidos são válidos para o contexto. Nesses casos tentei acumular os sentidos através de vocábulos compostos que o original não tinha. (...) Para cada neologismo criei um correspondente em português". E arrematava, prevenindo os críticos: "Toda tradução é uma "interpretatio'".
Sua mais reveladora entrevista, do ponto de vista intelectual, foi a que deu à revista "José" (novembro-dezembro de 1976). Respondendo a questões formuladas por Pedro Paulo de Sena Madureira, Margarida Salomão e Sebastião Uchoa Leite, fez afirmações corajosas. Sobre Guimarães Rosa, em quem via um "Joyce às avessas", foi categórico: "O leque, digamos assim, da problemática joyciana se abre para a frente. O leque da problemática de Guimarães Rosa se abre para trás. Ele é arcaizante, conservador e reacionário. E isso na própria criação neológica, na própria estruturação linguística". E arrematava: "Em Guimarães Rosa abundam palavras empregadas uma única vez, palavras que criou e não repetiu, e aqui entra o ponto a meu ver básico -o de que são palavras tão inúteis que ele mesmo não as empregou outra vez. São palavras "ad hoc", feitas para aquele instante".
Grande enciclopedista, fez a "Mirador Internacional" e a "Delta", patrocinada por Abraão Koogan, amigo dileto por mais de 30 anos. No escritório da Mirador, no número 40 da rua São José, reuniam-se na década de 70 os grandes intelectuais brasileiros do momento, tais como Otto Maria Carpeaux, o sociólogo Alberto Passos Guimarães, o escritor Francisco de Assis Barbosa e o jurista Evaristo de Moraes Filho.
A afeição de Antonio Houaiss pelo vocábulo inusitado e precioso, que às vezes nublava a compreensão, deu motivo a piadas. Uma delas conta que, quando saiu "Seis Poetas e um Problema", o crítico Agripino Grieco saiu-se com essa: "Os seis poetas eu ainda não sei quem são, mas o problema só pode ser o Houaiss, o estilo do Houaiss". Dizem também que a carreira de editorialista no "Correio da Manhã" começou a declinar quando ousou escrever "linfa potável" -em lugar de "água"- num editorial.
Houaiss ajudou a formar competentes profissionais, entre eles o editor Pedro Paulo de Sena Madureira, hoje na Siciliano, para quem o dicionarista foi "a universidade que não cursei"; incentivou Ivan Junqueira a traduzir T.S. Eliot e acompanhou de perto Ivo Barroso verter 30 sonetos de Shakespeare. Penso que Houaiss nunca se recuperou inteiramente das injustiças sofridas no Itamaraty, que culminaram na cassação. Às vezes podia ser cáustico. Não suportava nem ouvir o nome do economista e diplomata Roberto Campos e durante anos fez reservas a Merquior, cuja carreira no Itamaraty fora igualmente marcada pelo sucesso.
Agredido verbalmente durante anos pelo ex-amigo Paulo Francis, Houaiss nunca respondeu. Elegante, apreciava os vinhos e a boa mesa. No restaurante Rio Minho, no centro do Rio, muitas vezes ia para a cozinha pôr em prática suas receitas. Gostava de receber, e os jantares no belo apartamento da avenida Epitácio Pessoa, na Lagoa, eram disputados.
Descendente de libaneses maronitas, com as mulheres era um galanteador, fazendo jus à ascendência árabe. Monat descreveu-o assim na abertura da entrevista acima referida: "O homem é de baixa estatura. O homem é nervoso. O homem é mercurial, rosto triangular, magro, algo semítico, de belos olhos acinzentados, límpidos, penetrantes".
Em 1996, Houaiss promoveu um encontro meu com Guilherme Figueiredo, de que resultou a publicação de "A Bala Perdida" (1998). Num dos últimos bilhetes, em letra miúda e trêmula, datado de 16 de novembro de 1998, falava-me do livro de memórias do amigo e pedia notícias de Jesualdo Corrêa, do qual eu editara "Pelas Trilhas do Oriente" -e de quem havia lido partes de um ensaio em andamento sobre o "Finnegans Wake" (1939), de Joyce.
A morte que o levou na manhã do último dia 7 já o rondava havia tempos. Pouca gente conheci que tratasse hospital e cirurgia com tamanha naturalidade. Uma vez almocei com ele e depois caminhamos até o seu escritório, então na rua Erasmo Braga, centro do Rio. Quando nos despedimos, disse-me : "Bem, até daqui a um mês, porque vou me internar hoje". Um tanto perplexo, perguntei: "Pra quê?". Respondeu-me: "Uns quistos que teimam em retornar e que já me levaram ao hospital inúmeras vezes".
Durante anos seu companheiro quase diário foi Francisco de Assis Barbosa, com quem preparou uma importante edição do "Eu", de Augusto dos Anjos, e também a obra completa de Lima Barreto. Chegavam sempre juntos, às quintas-feiras, à Academia Brasileira de Letras -instituição da qual Houaiss se tornou presidente em 1995 e onde sua primeira iniciativa foi garantir a cesta básica para os funcionários.
Antonio Houaiss foi um ser gregário, que prezava as convocações da sociedade e da vida pública. Verdadeira máquina de trabalho, esgrimia como poucos a arte da conversação e consumiu-se por inteiro em defesa da língua e de seus ideais. Um quase príncipe árabe, com tudo o que isso significa de finesse e também, algumas vezes, de irredutibilidade. Talvez não tenha conseguido realizar a obra para a qual estava capacitado. Mas quem o consegue, em plenitude?


José Mario Pereira é jornalista e editor da Topbooks.



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