São Paulo, domingo, 14 de abril de 2002

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O INÍCIO DA HISTÓRIA


Herdeiro da Escola dos Annales, o francês Jacques le Goff explica seu Dicionário Temático do Ocidente Medieval", que sai no Brasil no dia 22, rebate Fukuyama e diz que o progresso é uma necessidade humana


Alcino Leite Neto
de Paris

Quem falou em fim da história? Ela está apenas começando, segundo o historiador francês Jacques Le Goff. "Desde que o Homo sapiens sapiens existe, desde que civilizações e mais civilizações foram construídas e decaíram, passou-se muito pouco tempo, comparado aos milhões de anos sem história... Ainda estamos no início", diz ele.
Le Goff, 78, é um dos mais importantes medievalistas vivos. É autor de obras fundamentais, como "São Luís" (ed. Record), "O Nascimento do Purgatório" e "A Civilização do Ocidente Medieval", entre outras, que modificaram para sempre nossa compreensão da Idade Média.
É também um dos principais herdeiros da Escola dos Annales, fundada em 1929 por Marc Bloch e Lucien Febvre, em torno da revista "Anais de História Econômica e Social". Contra a narrativa histórica tradicional que se praticava, de eventos e heróis, o grupo dos Annales priorizou a pesquisa de tipo científica e interdisciplinar, feita na longa duração dos acontecimentos, movidos não pela vontade de indivíduos excepcionais, mas "por mecanismos econômicos, relações sociais, formas de discurso", nas palavras de Roger Chartier.
Uma obra de imenso fôlego organizada por Le Goff e Jean-Claude Schmitt está saindo agora no Brasil. Trata-se do "Dicionário Temático do Ocidente Medieval" (Imprensa Oficial do Estado/Edusc, tradução coordenada por Hilário Franco Jr.).
Em dois volumes (R$ 160,00 a caixa), a obra é constituída de 82 verbetes escritos por 68 historiadores, incluindo os organizadores, de diferentes nacionalidades.
Os verbetes não seguem a forma breve dos textos dos dicionários comuns. São verdadeiros ensaios que examinam temas-chave da Idade Média, como "Deus", "diabo", "cavalaria", "guerra e Cruzada", "islã", "escolástica". Abrem-se também à descrição do modo de vida medieval, como "alimentação", "indivíduo", "sexualidade" e "violência". Le Goff assina oito preciosos ensaios: "além", "centro/periferia", "maravilhoso", "sonhos", "rei", "tempo", "trabalho" e "cidade".
"Para os ocidentais, mesmo se é inconsciente, mesmo se não sabemos muito bem o que é a Idade Média, sentimos, ao estudá-la, que ela é o nosso nascimento, a nossa origem", afirma Le Goff na entrevista a seguir, feita em seu apartamento, em Paris, na qual ele fala ainda da "cruzada" do presidente Bush contra o terrorismo e da predominância do capitalismo no Ocidente.
O sr. escreve no prefácio do "Dicionário Temático do Ocidente Medieval" que a "Idade Média que nós propomos é ao mesmo tempo próxima e distante". O que há de mais próximo entre nós e esse período histórico?
Para os ocidentais, mesmo se é inconsciente, mesmo se não sabemos muito bem o que é a Idade Média, sentimos, ao estudá-la, que ela é o nosso nascimento, a nossa origem. Durante muito tempo, os ocidentais consideraram que os seus ancestrais eram os gregos e romanos. Hoje, não encontraríamos, mesmo entre historiadores da Grécia e da Roma Antigas, quem fizesse tal aproximação. Antes de mais nada, os homens da Idade Média fizeram uma síntese da razão e da fé. Depois, criaram a maior parte da cidade onde nós vivemos. Fora isso, foram os fundadores das universidades.
O "maravilhoso" é um dos artigos que o sr. assina no "Dicionário". Como esse sentimento medieval impregna as navegações e a descoberta da América, já na aurora dos tempos modernos?
O maravilhoso é uma noção que me parece extremamente importante para a Idade Média. Ela foi frequentemente confundida, e é até hoje, com o milagroso. O maravilhoso, porém, não é milagre. Ele pode ser realizado por santos ou por Deus -porque é Deus ele mesmo quem faz ou permite que se faça alguma coisa de maravilhoso- mas também por poderes ou personagens que não são propriamente santos, como o mago Merlin, um grande produtor de maravilhas. Por outro lado, há também as maravilhas da natureza. A Idade Média não tem verdadeiramente o sentimento da natureza, isso é alguma coisa que se desenvolverá mais tarde. Mas ela tem a profunda convicção de que a natureza, considerada por ela como uma mulher dotada de poderes, é criadora de maravilhas. Os homens da Idade Média, à exceção de alguns grupos, não são homens do mar, mas da terra. Há, bem entendido, pescadores nas costas, ainda que o peixe consumido na Idade Média seja essencialmente de água doce. De maneira geral, esses homens têm medo do mar. Então, as maravilhas do mar são aterrorizantes. O mar é um grande reservatório de monstros, que não vêm da observação, obviamente, porque não existem, mas da inserção na experiência humana da leitura bíblica, o Leviatã, Jonas etc. Depois, há o maravilho que consiste em escapar do naufrágio, graças às intervenções dos santos. Quando se chega a Colombo e outros inventores da América, a mentalidade já mudou. Quero dizer, sim e não. Porque uma grande fonte de maravilhas para os ocidentais na Idade Média é o Oriente, em particular a Índia. E há uma matéria que se deseja ao mesmo tempo por cobiça e por seu caráter maravilhoso, que é o ouro. Assim, da Idade Média, o maravilhoso americano herda a fascinação pelo Oriente e pelo ouro. O maravilhoso americano se concentrou sobre o ouro, o Eldorado.
Posso estar enganado, mas não encontrei referências no "Dicionário" ao povo que hoje chamamos de portugueses. Eles não eram importantes na Idade Média?
Não era objetivo do "Dicionário" fazer aparecerem especialmente os portugueses nem outros povos. Mas penso que eles não eram muito visíveis, estavam mais ou menos dissolvidos no conjunto dos cristãos da Península Ibérica. De outra parte, você sabe, Portugal se formou tardiamente como Estado independente, no século 13. Há no livro uma visão global dos hispânicos, sem que tenha distinguido os portugueses.
Como esse povo resolveu afrontar o medo do mar e empreender as navegações?
Houve, primeiramente, um certo número de progressos técnicos a partir do século 13. Esse progresso correspondia a necessidades anteriores, não foi criado exatamente para ir à América. Graças a eles, se conseguiu um certo domínio do mar, que provocou uma modificação mental. Os homens passaram a ter menos medo. Quando chegamos ao século 16, o medo do mar já tinha se enfraquecido bastante.
Além disso, a partir do século 14, começou a surgir uma nova percepção do espaço. Ele não é mais reduzido ao Mediterrâneo e ao mar do Norte. A idéia de explorar o resto do mundo coloca então o Atlântico na linha de frente. Ora, quem está melhor situado para fazer estas explorações? Os portugueses. De outra parte, os portugueses souberam desenvolver estudos que armaram de conhecimentos aqueles que se lançaram ao mar. A hora do Atlântico havia chegado, e a de Portugal. De resto, os ingleses, os franceses e os italianos, em geral, se contentavam com o que tinham no mar do Norte e no Mediterrâneo. Os portugueses não tinham nada disso. Seria preciso que eles encontrassem um outro espaço, e o fizeram.
Algo da Idade Média voltou à consciência dos homens há alguns meses, quando o presidente Bush falou em fazer uma "cruzada" contra o terrorismo. Como o sr. considerou tal expressão?
Uma catástrofe. Além do que, as verdadeiras cruzadas cristãs da Idade Média foram elas mesmas uma catástrofe, seja para o Ocidente, seja para o Oriente.


Constato que, onde se colocou na frente Deus ou a religião, a violência e o ódio foram reforçados


Houve um gasto enorme de riquezas, que produziu um grande empobrecimento do Ocidente. Fora isso, elas criaram um ódio nos muçulmanos, que é explorado até hoje, coisa que na minha compreensão não é racional, fundamentada, mas é assim. Fico muito desconfiado quando se usa essa palavra: cruzada. Aliás, sou muito hostil a todos os movimentos que se apresentam como movimentos religiosos. Constato, infelizmente, que no curso da história, lá onde se colocou na frente Deus ou a religião, a violência e o ódio foram reforçados. Condeno completamente esse vocabulário de Bush da luta do bem contra o mal.
As palavras dele demonstraram que o mito das cruzadas ainda está vivo na imaginação ocidental, não?
Creio que sim. Chega-se a empregar a palavra para ações positivas, como cruzada contra o álcool, contra o tabaco. Mas por que empregá-la? Por que não dizer simplesmente "combate"? Um combate não coloca Deus em causa. Se Deus existe, não compete ao homem se envolver em suas ações. Ele seria grande o suficiente para fazer o que quer. De modo que a definição de delitos como "cruzadas" introduz imediatamente a intolerância, uma hostilidade de tipo religioso, que se vê sobretudo nos monoteísmos. Infelizmente, é um fato que se pode constatar: o de que o monoteísmo engendra a intolerância.
A que o sr. atribuiu a resistência histórica dos monoteísmos na cultura?
Não sei. Aquilo de que estou persuadido é que o homem tem necessidade do sagrado. Isso se vê o tempo todo na história. Os monoteísmos foram um momento da história religiosa da humanidade numa era bastante vasta, mas há uma resistência de outras formas religiosas ou pararreligiosas. Penso que a aspiração do homem ao sagrado não se manifesta fundamentalmente pela prática e pelas crenças propriamente monoteístas, mas pode se exprimir por seitas. Eu não amo as religiões, mas há racionalidade nelas. Nas seitas, não há. As seitas para mim são totalmente condenáveis. Sou um partidário da tolerância, mas não creio que deva haver tolerância para com as seitas. Entre as seitas, me incomoda sobretudo a Igreja da Cientologia, que considero totalmente perniciosa. É escandaloso que, em nome da liberdade da religião, a cientologia seja protegida pelos Estados Unidos e mesmo, um pouco, pela ONU. Não é no nível das crenças que eu combato as seitas, pois a liberdade de crer faz parte dos direitos do homem.
O que combato é sua estrutura e sua prática, que estabelecem uma dominação completa sobre seus membros, seja do orçamento, seja da família. É uma despersonalização dos homens e das mulheres, um anti-humanismo.
O sr. acompanha Max Weber na tese de que o protestantismo favoreceu a cultura do capitalismo?
Não, não creio nisso. Tenho uma enorme admiração por Max Weber, ele é um grande espírito, mas penso que aí, precisamente, ele se enganou. Primeiro, por uma questão de fato. O que ele define como espírito capitalista, que atribui à influência do protestantismo, já aparece antes, no século 13. Os grandes comerciantes do século 13 e mesmo um certo número de teólogos escolásticos têm já esse espírito capitalista. Depois, não penso que haja, no nível teórico, da natureza do sistema econômico e do pensamento, uma relação profunda e inevitável entre protestantismo e capitalismo. Foi por razões muito diferentes que o capitalismo se instalou primeiramente nos países protestantes.
Eu distinguiria, como já fez um economista francês antes, dois tipos de capitalismos: o anglo-saxão, com a Inglaterra relacionada aos EUA, e o europeu. Uma das diferenças é que esse capitalismo europeu teve uma influência católica mais perceptível e pensa que o sistema econômico deva ser corrigido por práticas relevantes -em termos religiosos, pela caridade; em termos políticos, por medidas sociais. É surpreendente ver como atualmente as discussões sobre a construção européia reavivam essa preocupação. O sistema proposto pela Comissão de Bruxelas para a União Européia, e para o qual nós nos encaminhamos, é evidentemente um sistema liberal, para não dizer capitalista, mas uma maioria, não direi todos, defende que esse liberalismo econômico deva ser assistido por medidas sociais.
O sr. imagina um "além do capitalismo"? Sairemos desse sistema econômico algum dia?


Fico surpreendido com o fato de que o capitalismo não tenha sido bem-sucedido fora da civilização ocidental


Não sei. Há coisas que, tenho que reconhecer, o historiador não sabe. O historiador não conhece o futuro (risos). Além disso, a história é cheia de acasos. Não diria que ela é cheia de liberdade, porque há um certo grau de determinismo na história, mas como previr o que depende do acaso? Agora, eu fico efetivamente surpreendido com o fato de que o capitalismo não tenha sido bem-sucedido fora da civilização ocidental. Nem na Ásia nem na África, mesmo se o modelo capitalista permanece dominante nesses países, como na China, por exemplo. Os chineses não conseguiram realizar um outro modelo do que pensam ser o progresso econômico que não fosse o progresso capitalista.
Então, quero dizer com efeito que, historicamente, o capitalismo parece bastante ligado à evolução do Ocidente e não vejo outro modelo no horizonte. É um pouco o que ocorre no domínio da história. Eu vejo o domínio da concepção ocidental de história. É por isso que não se encontram verdadeiros historiadores indianos, africanos, se os há. Seria muito interessante que houvesse o nascimento e o desenvolvimento de uma maneira não-ocidental de fazer a história. Porque eu penso que a história, seja enquanto fenômeno que escapa ao homem, seja enquanto sistema de explicação da evolução feita pelos homens, se enriqueceria se tivesse mais de um modelo.
O que há em outras civilizações é a predominância da memória sobre a história, em particular nas populações africanas. É a história transmitida oralmente pela literatura e pela arte, pelas lendas e a genealogia. Isso é uma maneira diferente de fazer a história, mas não se pode fazer dela um objeto de ciência, nem mesmo uma matéria de ensino. Então, não é verdadeiramente uma outra história.
Compara-se vulgarmente a dominação americana sobre o mundo, hoje, com a do Império Romano. O sr. vê mais similitudes ou diferenças entre esses dois impérios?
Vejo mais as diferenças. Os romanos de fato conseguiram fazer uma coisa que os americanos não alcançaram: eles transformaram os habitantes de seu império em cidadãos romanos. Há um acontecimento que considero um dos maiores da história e do qual se fala pouco, que é o Edito de Caracala (212 d.C.), que levou a cidadania romana a todos os habitantes do império. Já no primeiro século da era cristã, o próprio São Paulo, que era judeu, claro, se dizia antes de tudo um cidadão romano.
Não quero dizer que seja culpa deles, mas os americanos estão num mundo em que a americanização deve forçosamente parar num certo momento. Pode haver uma americanização dos meios, que é aliás grande, pois os produtos culturais seduzem muita gente. Com sua potência militar ou econômica, eles dominam muito Estados, mas não estão numa situação que lhes permita fazer das pessoas que dominam verdadeiros americanos. Isso é ao mesmo tempo bom e ruim. É bom, porque as pessoas conservam o que se chama hoje de sua identidade. É ruim, porque isso impede que essas pessoas se tornem membros inteiros da democracia americana, que é, apesar de seus enormes defeitos, uma democracia.
A idéia de "fim da história", de Francis Fukuyama, voltou recentemente às discussões. O que o sr. pensa disso?
É uma besteira. É a forma contemporânea do velho fantasma sobre o fim dos tempos. Fantasmas milenaristas que impregnaram as doutrinas mais racionais e progressistas, como o marxismo -que é cheio de milenarismo. São ideologias que estimam que vão dar a última palavra e trazer a resposta a tudo. Assim, não é preciso procurar e pesquisar o novo. O marxismo crê que a instauração de uma sociedade sem classes colocará fim ao conflito que alimenta habitualmente a história. E, na visão de Francis Fukuyama, é a idéia de que, depois da democracia, não se pode ir mais longe. Isso foi desmentido pela própria história, não? Vê-se que nem o marxismo nem a democracia nem as religiões conseguiram parar a história. Ela continua.
O homem progride dentro da história?
O progresso é uma idéia tardia na história mundial. Ela não existia antes do século 18. O século 19 foi o da dominação da idéia de progresso, em particular tecnológico, industrial e político. Depois, veio o terrível século 20, duas guerras mundiais, o Holocausto, os gulags, o que se passa na África, e deixamos de acreditar no progresso. Mas eu penso que o progresso é ao mesmo tempo um fato e uma necessidade fundamental do espírito humano. É preciso aceitar que ele pode se manifestar num domínio, mas não em outro, que pode haver progresso e em seguida regressões. O que há são progressos limitados, que podem ser muito importantes. O domínio mais surpreendente de progresso é a medicina e também a biologia. Aí, os progressos foram essenciais, com o aumento do tempo de vida dos homens e da mortalidade infantil nos países desenvolvidos etc.
O que devemos fazer é melhor circunscrever o progresso e fixar a ele objetivos mais modestos, porque, de fato, nós estamos ainda no começo da história. Veja: houve um enorme período de existência do universo sem que existisse o homem. Depois, o homem chegou. Foram necessários milhões de anos para que chegássemos ao Homo sapiens sapiens, que, parece, somos nós. Desde que o Homo sapiens sapiens existe, desde que civilizações e mais civilizações foram construídas e decaíram, passou-se muito pouco tempo, comparado aos milhões de anos sem história... A história quanto tempo tem? Alguns três milênios. Por consequência, estamos no início da história. Certamente, ainda haverá progresso, e mesmo enorme, e nós não podemos lastimar que ele não ocorra, porque estamos apenas no começo.
É como uma criança que lamentasse por não poder dirigir um automóvel. Que ela espere! (risos) Que nós esperemos até que sejamos maiores!



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