São Paulo, domingo, 14 de maio de 2000


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Recém-publicado na Inglaterra, "The Romantics", de Pankaj Mishra, consagra a literatura indiana como uma das mais ricas da atualidade
A ambígua visão das coisas

Arthur Nestrovski
especial para a Folha

Pankaj Mishra: o nome vai ficando cada vez mais familiar a leitores de periódicos internacionais, como o "The Times Literary Supplement" e "The New York Review of Books". Nesses últimos dois anos, ele vem assinando uma série de ensaios brilhantes, sobre assuntos e autores da Índia. Autores e assuntos reaparecem, agora, e desaparecem na prosa modulada de seu primeiro romance, "The Romantics", livro que deve tornar seu nome mais conhecido ainda e consagra a nova literatura indiana como uma das vertentes mais ricas da atualidade. A prosa é aparentemente simples; mas a simplicidade das aparências é parte mesmo do que está em jogo, nesse romance votado à visão das coisas. Desde pelo menos a década de 20 que escritores indianos vêm se esforçando para criar um estilo em língua inglesa. Precursores como Mulk Raj Anand e Raja Rao viam nessa literatura anglo-indiana uma outra escola da percepção, antagônica ao indianismo tradicionalista de um poeta como Rabindranath Tagore (Prêmio Nobel de 1913). A divisão entre linguagem e espírito ganha ali acentos novos, com a intromissão de termos indianos e sânscritos no inglês.

Alpes e Himalaia
O que se acentua é a divisão, descrita por Rao como uma "carga dupla" nos ombros do escritor: "Os Alpes da tradição européia" e "o Himalaia do passado indiano". Para um romancista indiano da atualidade, a carga só se multiplicou. De mestres modernistas como E.M. Forster ("Passagem para a Índia") ou Nirad Chaudhuri (homenageado por Mishra, logo após sua morte em 1999), passando pelo olhar indo-caribenho de V.S. Naipaul e os pesadelos e comédias de Salman Rushdie, e chegando até uma geração mais recente (Vikram Seth, Rohinton Mistry), o Himalaia vai ficando cada vez mais alto -e os Alpes, mais perto. Não é por nada que a Índia se tornou uma nação de destaque no mapa da literatura atual, merecendo números especiais de revistas prestigiosas como "The New Yorker" (23/6/ 97) e "Granta" (Primavera/97) e ostentando fenômenos de venda como "O Deus das Pequenas Coisas", de Arundhati Roy. Eis uma literatura escrita da periferia para o centro, mas diretamente em língua inglesa, e pensada para ser lida, ao mesmo tempo, dentro e fora de seu país. Parte do sucesso de "The Romantics" deve-se a essa consciência, habilmente transferida para o interior do próprio romance. O que o personagem principal (marcadamente autobiográfico) vai viver não é outra coisa senão uma educação para as ambiguidades dessa cultura dividida -a nossa, ocidental, tanto quanto a dele. Estranho às tradições da Índia, emocionalmente perdido na cidade sagrada de Benares, Samar vai assimilando aos poucos, também, as estranhezas de duas mulheres européias, não menos perdidas que ele, mas num outro estilo. Ver e viver são verbos que não rimam, para o narrador incapaz de saber onde está. "Agora estava inteiramente por conta própria", ele reflete, recém-formado na universidade e recém-chegado a Benares, à espera de um exame para o serviço público. Nem inteiramente nem muito menos por conta própria: é o que vai descobrir logo. A descoberta implica abrir os olhos para o país ao redor, uma versão gigantesca de atualidades bem conhecidas em outros lugares. A nova ordem política, dominada por (o termo é dele) "emergentes", que começam a cruzar a divisão de classes e de castas, amparados em máfias, e a nova ordem econômica, com a ascensão fulminante da classe média empresarial, já foram descritas por Mishra em seus ensaios. Seu romance não tem nada de panfletário ou sociológico; mas nega-se a mascarar ou fugir das realidades da Índia, que renovam regressões ancestrais. O desafio maior é esse: como escrever para uma sensibilidade literária globalizada, sem renegar o que há de mais específica e desconfortavelmente local? "Miséria social e pessoal, sujeira, doença, pobreza extrema, crime, violência" -vai-se ler aqui, parenteticamente que seja, tudo o que ele reclama não encontrar nem nos autores que mais admira de sua geração (como Amit Chadhuri). Esse compromisso explica, também, sua aversão ao vocabulário do realismo mágico e outras estilizações exóticas.

Contraponto de vozes
Num ensaio abrangente sobre a literatura indiana moderna, Mishra cita com respeito um comentário de Naipaul, ressaltando nesse contexto a necessidade de escrever de um modo "nem exageradamente explicado, nem embelezado, nem simplificado demais". Seu romance, escrito em ritmo de "andante", equilibra-se num contraponto de vozes, o que lhe permite explicar sem exageros e até em alguma medida simplificar um pouco as coisas, mas não demais. De um lado, a inocência do narrador, chegando à vida adulta e aprendendo a se sustentar num universo de auto-ilusões e falsidades; de outro, a relativa experiência de suas quase mentoras ocidentais, a vizinha inglesa mais velha, Mrs. West, e a jovem francesa, Catherine, menina rica com quem Samar tem um breve, mas inesquecível caso (triangular, malfadado). É essa combinação que lhe abre espaço para escrever sobre a Índia com olhar estrangeiro e sobre os estrangeiros com olhar indiano. Mas a própria idéia do que seja "indiano" está em xeque para esse observador inexperiente, capaz de aprender rápido sobre os outros, mas nem tão rápido sobre si mesmo. Samar é um grande leitor de Flaubert; mas não serão dele as ironias devastadoras da descrição, um dos pontos altos da prosa, nem o sentido muito flaubertiano, entre acusatório e carinhoso, do título do livro. Quem vê esses "românticos", no caso, não pode ser o próprio narrador, romanticamente a esmo em neblinas milenares, seja à beira do Ganges ou do Himalaia (onde ele vai passar sete anos dando aula numa escola e tentando se curar de Catherine). Também não é ele quem escreve, com tanto gosto, palavras como "ashram", "ghat", "Allahabad" ou "thalis", entre dezenas de outras, um vocabulário "estranho em minha boca", que colore virtuosisticamente o inglês.

Ruas vazias
É ele, sim, quem vê as "lojas saqueadas..., os fragmentos de vidro quebrado nas ruas vazias e, aqui e ali, manchas esmaecidas no chão, de sangue não lavado", em regiões de conflito entre hindus e muçulmanos; e é ele quem vê o retorno a Benares, "as casas agora feitas de tijolos, com a fiação elétrica confusa e as poças cobertas de lodo, circundadas pelos defecadores matinais, observando mansamente o trem que passa". Mas não pode ser ele quem descreve essas cenas, na linguagem mansa de um observador que não se espanta com nada, mas não barateia nada do que vê.
Há um estranhamento último no livro, que explica, talvez, sua forma cuidadosamente espraiada, tão próxima de um romance tradicional, mas tão sutil nas maneiras de escapar do conhecido. O livro cresce para os lados, tanto quanto para a frente. E todo ele pode ser lido como o prelúdio de uma outra narrativa, que não se lê. O que se lê, em retrospecto, só pode ser o resultado dessa outra história, que é a formação de um escritor.
"A água me corria pelo pescoço; minhas meias estavam encharcadas; meus pés, frios. Mas eu me sentia estranhamente calmo", diz o narrador, já no fim, quando foi capaz de se distanciar do próprio passado e das personagens que o habitavam. É só nesse ponto que pode ver o que passou. É nesse ponto que começa a enxergar onde está. É nesse ponto que encontra uma medida própria, entre tantas culturas em confronto. É nesse ponto, de estranhamento e calma, que começa a escrever o livro que acabamos de ler. É nesse ponto que ver e viver começam a coincidir; e ele pode voltar para a Índia, sem nenhum romantismo.



The Romantics
288 págs., 14,99 libras de Pankaj Mishra. Picador (Grã-Bretanha)
Onde encomendar
Em SP, na FNAC (tel. 0/xx/11/ 867-0022), e, no RJ, na Livraria Leonardo da Vinci (tel. 0/xx/ 21/533-2237).



Arthur Nestrovski é professor titular de literatura na Pontifícia Universidade Católica (PUC-SP), autor de "Ironias da Modernidade" (Ática), entre outros.


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