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Recém-publicado na Inglaterra, "The Romantics", de Pankaj Mishra, consagra a literatura indiana como uma das mais ricas da atualidade
A ambígua visão das coisas
Arthur Nestrovski
especial para a Folha
Pankaj Mishra: o nome vai ficando
cada vez mais familiar a leitores de
periódicos internacionais, como o
"The Times Literary Supplement"
e "The New York Review of Books". Nesses últimos dois anos, ele vem assinando
uma série de ensaios brilhantes, sobre assuntos e autores da Índia. Autores e assuntos reaparecem, agora, e desaparecem na prosa modulada de seu primeiro
romance, "The Romantics", livro que
deve tornar seu nome mais conhecido
ainda e consagra a nova literatura indiana como uma das vertentes mais ricas da
atualidade.
A prosa é aparentemente simples; mas
a simplicidade das aparências é parte
mesmo do que está em jogo, nesse romance votado à visão das coisas. Desde
pelo menos a década de 20 que escritores
indianos vêm se esforçando para criar
um estilo em língua inglesa. Precursores
como Mulk Raj Anand e Raja Rao viam
nessa literatura anglo-indiana uma outra
escola da percepção, antagônica ao indianismo tradicionalista de um poeta como Rabindranath Tagore (Prêmio Nobel
de 1913). A divisão entre linguagem e espírito ganha ali acentos novos, com a intromissão de termos indianos e sânscritos no inglês.
Alpes e Himalaia
O que se acentua
é a divisão, descrita por Rao como uma
"carga dupla" nos ombros do escritor:
"Os Alpes da tradição européia" e "o Himalaia do passado indiano". Para um romancista indiano da atualidade, a carga
só se multiplicou. De mestres modernistas como E.M. Forster ("Passagem para a
Índia") ou Nirad Chaudhuri (homenageado por Mishra, logo após sua morte
em 1999), passando pelo olhar indo-caribenho de V.S. Naipaul e
os pesadelos e comédias
de Salman Rushdie, e chegando até uma geração
mais recente (Vikram
Seth, Rohinton Mistry), o
Himalaia vai ficando cada
vez mais alto -e os Alpes,
mais perto.
Não é por nada que a Índia se tornou uma nação
de destaque no mapa da
literatura atual, merecendo números especiais de revistas prestigiosas como
"The New Yorker" (23/6/ 97) e "Granta"
(Primavera/97) e ostentando fenômenos
de venda como "O Deus das Pequenas
Coisas", de Arundhati Roy. Eis uma literatura escrita da periferia para o centro,
mas diretamente em língua inglesa, e
pensada para ser lida, ao mesmo tempo,
dentro e fora de seu país. Parte do sucesso de "The Romantics" deve-se a essa
consciência, habilmente transferida para
o interior do próprio romance.
O que o personagem principal (marcadamente autobiográfico) vai viver não é
outra coisa senão uma educação para as
ambiguidades dessa cultura dividida -a
nossa, ocidental, tanto quanto a dele. Estranho às tradições da Índia, emocionalmente perdido na cidade sagrada de Benares, Samar vai assimilando aos poucos, também, as estranhezas de duas mulheres européias, não menos perdidas
que ele, mas num outro estilo. Ver e viver
são verbos que não rimam, para o narrador incapaz de saber onde está.
"Agora estava inteiramente por conta
própria", ele reflete, recém-formado na
universidade e recém-chegado a Benares, à espera de um exame para o serviço
público. Nem inteiramente nem muito
menos por conta própria: é o que vai descobrir logo. A descoberta implica abrir
os olhos para o país ao redor, uma versão
gigantesca de atualidades bem conhecidas em outros lugares.
A nova ordem política, dominada por
(o termo é dele) "emergentes", que começam a cruzar a divisão de classes e de
castas, amparados em máfias, e a nova
ordem econômica, com a ascensão fulminante da classe média empresarial, já
foram descritas por Mishra em seus ensaios. Seu romance não tem nada de
panfletário ou sociológico; mas nega-se a
mascarar ou fugir das realidades da Índia, que renovam regressões ancestrais.
O desafio maior é esse: como escrever
para uma sensibilidade literária globalizada, sem
renegar o que há de mais
específica e desconfortavelmente local? "Miséria
social e pessoal, sujeira,
doença, pobreza extrema,
crime, violência" -vai-se
ler aqui, parenteticamente que seja, tudo o que ele
reclama não encontrar
nem nos autores que mais
admira de sua geração (como Amit Chadhuri). Esse compromisso explica, também, sua aversão ao vocabulário do realismo mágico e outras estilizações exóticas.
Contraponto de vozes
Num ensaio abrangente sobre a literatura indiana moderna, Mishra cita com respeito
um comentário de Naipaul, ressaltando
nesse contexto a necessidade de escrever
de um modo "nem exageradamente explicado, nem embelezado, nem simplificado demais". Seu romance, escrito em
ritmo de "andante", equilibra-se num
contraponto de vozes, o que lhe permite
explicar sem exageros e até em alguma
medida simplificar um pouco as coisas,
mas não demais.
De um lado, a inocência do narrador,
chegando à vida adulta e aprendendo a
se sustentar num universo de auto-ilusões e falsidades; de outro, a relativa experiência de suas quase mentoras ocidentais, a vizinha inglesa mais velha,
Mrs. West, e a jovem francesa, Catherine,
menina rica com quem Samar tem um
breve, mas inesquecível caso (triangular,
malfadado). É essa combinação que lhe
abre espaço para escrever sobre a Índia
com olhar estrangeiro e sobre os estrangeiros com olhar indiano.
Mas a própria idéia do que seja "indiano" está em xeque para esse observador
inexperiente, capaz de aprender rápido
sobre os outros, mas nem tão rápido sobre si mesmo. Samar é um grande leitor
de Flaubert; mas não serão dele as ironias devastadoras da descrição, um dos
pontos altos da prosa, nem o sentido
muito flaubertiano, entre acusatório e
carinhoso, do título do livro.
Quem vê esses "românticos", no caso,
não pode ser o próprio narrador, romanticamente a esmo em neblinas milenares,
seja à beira do Ganges ou do Himalaia
(onde ele vai passar sete anos dando aula
numa escola e tentando se curar de Catherine). Também não é ele quem escreve, com tanto gosto, palavras como "ashram", "ghat", "Allahabad" ou "thalis",
entre dezenas de outras, um vocabulário
"estranho em minha boca", que colore
virtuosisticamente o inglês.
Ruas vazias
É ele, sim, quem vê as
"lojas saqueadas..., os fragmentos de vidro quebrado nas ruas vazias e, aqui e ali,
manchas esmaecidas no chão, de sangue
não lavado", em regiões de conflito entre
hindus e muçulmanos; e é ele quem vê o
retorno a Benares, "as casas agora feitas
de tijolos, com a fiação elétrica confusa e
as poças cobertas de lodo, circundadas
pelos defecadores matinais, observando
mansamente o trem que passa". Mas não
pode ser ele quem descreve essas cenas,
na linguagem mansa de um observador
que não se espanta com nada, mas não
barateia nada do que vê.
Há um estranhamento último no livro,
que explica, talvez, sua forma cuidadosamente espraiada, tão próxima de um romance tradicional, mas tão sutil nas maneiras de escapar do conhecido. O livro
cresce para os lados, tanto quanto para a
frente. E todo ele pode ser lido como o
prelúdio de uma outra narrativa, que
não se lê. O que se lê, em retrospecto, só
pode ser o resultado dessa outra história,
que é a formação de um escritor.
"A água me corria pelo pescoço; minhas meias estavam encharcadas; meus
pés, frios. Mas eu me sentia estranhamente calmo", diz o narrador, já no fim,
quando foi capaz de se distanciar do próprio passado e das personagens que o habitavam. É só nesse ponto que pode ver o
que passou. É nesse ponto que começa a
enxergar onde está. É nesse ponto que
encontra uma medida própria, entre
tantas culturas em confronto. É nesse
ponto, de estranhamento e calma, que
começa a escrever o livro que acabamos
de ler. É nesse ponto que ver e viver começam a coincidir; e ele pode voltar para
a Índia, sem nenhum romantismo.
The Romantics
288 págs., 14,99 libras
de Pankaj Mishra. Picador (Grã-Bretanha)
Onde encomendar
Em SP, na FNAC (tel. 0/xx/11/
867-0022), e, no RJ, na Livraria
Leonardo da Vinci (tel. 0/xx/
21/533-2237).
Arthur Nestrovski é professor titular de literatura
na Pontifícia Universidade Católica (PUC-SP), autor de "Ironias da Modernidade" (Ática), entre outros.
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