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Historiador britânico desvenda os personagens que participaram das batalhas entre brasileiros e argentinos, por volta de 1820
A guerra esquecida do Mercosul
Ricardo Bonalume Neto
especial para a Folha
O historiador inglês Brian Vale conseguiu uma façanha dupla. Pela segunda vez, em seu segundo livro, ele desmonta alguns mitos sobre a história brasileira que são moeda corrente não por
serem politicamente convenientes -como aquelas bobagens que a esquerda obtusa adora sobre a Guerra do Paraguai-
, mas por pura falta de interesse sobre o
assunto dos historiadores locais.
História e as outras ciências humanas
têm moda -e geralmente são modaspolítica e academicamente corretas. Por isso história militar e naval neste país sempre foi feudo dos "milicos".
Não é esse o caso no Reino Unido, onde as criancinhas aprendem desde cedo
sobre a glória do almirante Nelson e sobre como Britânia governou as ondas.
Mas cada vez mais aprendem mais que
isso, à medida que a historiografia se sofistica.
Esse papel da história naval na vida cotidiana dos britânicos ajudou a criar uma
vigorosa historiografia moderna sobre o
tema. Não se trata mais de simplesmente
alardear as glórias da Marinha Real.
A moderna história naval é um misto
de história militar, econômica e social
-e, em alguns casos, foi mesmo "colonizada" pela antropologia e sociologia,
deixando de ser um mero relato de batalhas e campanhas para se tornar uma
história social dos combatentes.
Brian Vale conhece tudo isso -e conhece o Brasil e sua história. Foi no distante 1965 que ele veio ao país enviado
pelo Conselho Britânico. Sua formação
acadêmica em história naval foi perfeita
para ele escrever seu primeiro livro, sobre um assunto que interessa aos dois
países: "Independence or Death - British
Sailors and Brazilian Independence,
1822-1825" ("Independência ou Morte
-Marinheiros Britânicos e
a Independência do Brasil, 1822-1825", Tauris
Academic Studies, Londres e Nova York, 1996).
Vale tornou-se colaborador da História Naval
Brasileira, a história oficial da Marinha do Brasil.
Ele corrigiu vários erros sobre a passagem pelo Brasil do escocês Thomas Alexander Cochrane (1775-1860), décimo
conde de Dundonald, o notável e extremamente mercenário marinheiro que
ajudou a consolidar a independência do
país ao derrotar as últimas e teimosas
forças navais portuguesas.
Brian Vale fez o mesmo agora com a
guerra da Cisplatina, que os brasileiros
sempre preferiram esquecer. Apesar de
os luso-brasileiros terem sido um povo
expansionista, dobrando o território do
país permitido pelo Tratado de Tordesilhas, o Brasil e suas elites sempre gostaram de enfatizar o caráter pacífico, cordial, da civilização brasileira. As guerras
externas lembradas são sempre defensivas: defesa contra Napoleão em 1808,
contra o Paraguai de Solano López, contra as agressões alemãs de 1917 e 1942.
Gosto amargo
Já a Guerra Cisplatina sempre teve um gosto amargo. Para
os historiadores conservadores, era a
triste derrota para os argentinos no campo de batalha de Ituzaingó (ou Passo do
Rosário). Para os mais liberais ou de esquerda, era uma guerra infeliz, tentando-se incorporar ao país a tal província
de língua espanhola (hoje se chama Uruguai) contra a vontade local.
Felizmente para o Mercosul -e para a
paz no continente-, houve um empate
nessa guerra impopular. Nem Argentina
nem Brasil conseguiram incorporar a
província do lado norte do rio da Prata.
Assim como no mesmo ano surgira a
Bélgica como estado-tampão entre a
França e a Holanda, surge o Uruguai como estado-tampão entre as potências
platinas.
A Guerra da Cisplatina foi o capítulo final de uma longa luta entre os expansionismos luso e castelhano no Prata. E
aconteceu logo no final das guerras napoleônicas, quando havia uma grande
quantidade de "mercenários" britânicos
disponíveis, especialmente marinheiros. As aspas
são necessárias; no começo do século 19, ainda era
comum lutar por outro
país que não aquele de
nascença, sem se ter a pecha de "mercenário".
Um rápido exemplo:
um dos maiores heróis navais americanos de todos os tempos, John Paul Jones,
lutou pela independência do país, depois
foi contratado pela marinha russa e morreu em Paris em busca de empregador.
Cochrane foi o primeiro almirante das
marinhas chilena e brasileira e depois lutou pelos gregos contra os turcos antes
de ser reintegrado na Marinha Real.
Não é o caso de agir como crítico de cinema e relembrar as fascinantes campanhas navais que este livro rememora,
contando o final do filme. Mas vale uma
rápida crítica: Vale é descuidado com a
grafia de palavras em espanhol e português. Chamar a batalha de Los Pozos de
Los Pozes é erro feio. Afinal a palavra
"pozos" (poços) se refere ao ancoradouro do porto de Buenos Aires.
A guerra de corso
O livro resgata a
importância que teve a guerra de corso
argentina contra o Brasil. Os corsários
quase chegaram a paralisar o comércio
marítimo do país. Se esta tivesse sido
uma campanha mais bem estudada pela
Marinha ao longo dos anos, o Brasil não
teria sofrido tanto com o "corso" moderno -os submarinos alemães e italianos
que quase isolaram o país do mundo de
1942 em diante.
Vale restaura a reputação do almirante
brasileiro Rodrigo Pinto Guedes, analisando com detalhe o papel desse marinheiro nas lutas do Prata. E aponta a origem da deformação histórica: o clássico
livro do comerciante inglês John Armitage sobre o Brasil de 1808 até 1831, extremamente popular entre historiadores
brasileiros por ser de fácil acesso.
Armitage fala do suposto contraste entre a "incansável atividade" do almirante
argentino, o irlandês William Brown, e a
"aparente apatia" de Guedes. Pura besteira escrita por um comerciante sem o
menor conhecimento de guerra naval,
como Vale deixa claro. "É esse travesti da
verdade que tem sido repetido desde então por historiadores britânicos, argentinos e, de fato, pela maioria dos brasileiros", escreveu Vale.
O resultado disso é que até hoje a Marinha do Brasil não teve um navio sequer
nomeado em homenagem ao notável
Pinto Guedes. E nomes de navios são altamente significativos para uma força
naval e sua visão de sua própria história.
A marinha argentina sempre homenageou o irlandês Brown, que chegou a comandar um navio praticamente sem ter
um argentino a bordo -eram basicamente anglo-saxões.
Já a Marinha do Brasil pôs de lado essa
guerra e preferiu homenagear seus
heróis da guerra do Paraguai, a maioria deles "made in Brazil", esquecendo aqueles da guerra "empatada" dos
anos 1820 -muitos dos quais eram
nascidos no Reino Unido, como John
Pascoe Grenfell, John Taylor e James
Norton. Daí se percebe o porquê do
curioso nome do livro de Vale
-"Uma Guerra entre Ingleses".
Mas nem por serem estrangeiros de
origem eles deixaram de prestar serviços inestimáveis ao Brasil. Grenfell,
assim como Nelson nas guerras contra os franceses, perdeu um braço em
combate contra os argentinos.
Um dos principais historiadores navais do Brasil, o almirante Helio Leoncio Martins, reclama com razão que
esses heróis britânico-brasileiros tenham sido esquecidos, ao mesmo
tempo em que nomes mais polêmicos
tenham sido contemplados com nomes de navios. É o caso das fragatas
Bosísio e Rademaker, cujos nomes
lembram dois ministros da Marinha
pouco conhecidos durante o regime
militar de 64.
Quando se vê que nem Lorde Cochrane foi homenageado pela Marinha
que ajudou a criar, a importância do
livro de Vale fica patente.
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