São Paulo, domingo, 14 de maio de 2000


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Historiador britânico desvenda os personagens que participaram das batalhas entre brasileiros e argentinos, por volta de 1820
A guerra esquecida do Mercosul

Ricardo Bonalume Neto
especial para a Folha

O historiador inglês Brian Vale conseguiu uma façanha dupla. Pela segunda vez, em seu segundo livro, ele desmonta alguns mitos sobre a história brasileira que são moeda corrente não por serem politicamente convenientes -como aquelas bobagens que a esquerda obtusa adora sobre a Guerra do Paraguai- , mas por pura falta de interesse sobre o assunto dos historiadores locais. História e as outras ciências humanas têm moda -e geralmente são modaspolítica e academicamente corretas. Por isso história militar e naval neste país sempre foi feudo dos "milicos". Não é esse o caso no Reino Unido, onde as criancinhas aprendem desde cedo sobre a glória do almirante Nelson e sobre como Britânia governou as ondas. Mas cada vez mais aprendem mais que isso, à medida que a historiografia se sofistica. Esse papel da história naval na vida cotidiana dos britânicos ajudou a criar uma vigorosa historiografia moderna sobre o tema. Não se trata mais de simplesmente alardear as glórias da Marinha Real. A moderna história naval é um misto de história militar, econômica e social -e, em alguns casos, foi mesmo "colonizada" pela antropologia e sociologia, deixando de ser um mero relato de batalhas e campanhas para se tornar uma história social dos combatentes. Brian Vale conhece tudo isso -e conhece o Brasil e sua história. Foi no distante 1965 que ele veio ao país enviado pelo Conselho Britânico. Sua formação acadêmica em história naval foi perfeita para ele escrever seu primeiro livro, sobre um assunto que interessa aos dois países: "Independence or Death - British Sailors and Brazilian Independence, 1822-1825" ("Independência ou Morte -Marinheiros Britânicos e a Independência do Brasil, 1822-1825", Tauris Academic Studies, Londres e Nova York, 1996). Vale tornou-se colaborador da História Naval Brasileira, a história oficial da Marinha do Brasil. Ele corrigiu vários erros sobre a passagem pelo Brasil do escocês Thomas Alexander Cochrane (1775-1860), décimo conde de Dundonald, o notável e extremamente mercenário marinheiro que ajudou a consolidar a independência do país ao derrotar as últimas e teimosas forças navais portuguesas. Brian Vale fez o mesmo agora com a guerra da Cisplatina, que os brasileiros sempre preferiram esquecer. Apesar de os luso-brasileiros terem sido um povo expansionista, dobrando o território do país permitido pelo Tratado de Tordesilhas, o Brasil e suas elites sempre gostaram de enfatizar o caráter pacífico, cordial, da civilização brasileira. As guerras externas lembradas são sempre defensivas: defesa contra Napoleão em 1808, contra o Paraguai de Solano López, contra as agressões alemãs de 1917 e 1942.

Gosto amargo
Já a Guerra Cisplatina sempre teve um gosto amargo. Para os historiadores conservadores, era a triste derrota para os argentinos no campo de batalha de Ituzaingó (ou Passo do Rosário). Para os mais liberais ou de esquerda, era uma guerra infeliz, tentando-se incorporar ao país a tal província de língua espanhola (hoje se chama Uruguai) contra a vontade local. Felizmente para o Mercosul -e para a paz no continente-, houve um empate nessa guerra impopular. Nem Argentina nem Brasil conseguiram incorporar a província do lado norte do rio da Prata. Assim como no mesmo ano surgira a Bélgica como estado-tampão entre a França e a Holanda, surge o Uruguai como estado-tampão entre as potências platinas. A Guerra da Cisplatina foi o capítulo final de uma longa luta entre os expansionismos luso e castelhano no Prata. E aconteceu logo no final das guerras napoleônicas, quando havia uma grande quantidade de "mercenários" britânicos disponíveis, especialmente marinheiros. As aspas são necessárias; no começo do século 19, ainda era comum lutar por outro país que não aquele de nascença, sem se ter a pecha de "mercenário". Um rápido exemplo: um dos maiores heróis navais americanos de todos os tempos, John Paul Jones, lutou pela independência do país, depois foi contratado pela marinha russa e morreu em Paris em busca de empregador. Cochrane foi o primeiro almirante das marinhas chilena e brasileira e depois lutou pelos gregos contra os turcos antes de ser reintegrado na Marinha Real. Não é o caso de agir como crítico de cinema e relembrar as fascinantes campanhas navais que este livro rememora, contando o final do filme. Mas vale uma rápida crítica: Vale é descuidado com a grafia de palavras em espanhol e português. Chamar a batalha de Los Pozos de Los Pozes é erro feio. Afinal a palavra "pozos" (poços) se refere ao ancoradouro do porto de Buenos Aires.

A guerra de corso
O livro resgata a importância que teve a guerra de corso argentina contra o Brasil. Os corsários quase chegaram a paralisar o comércio marítimo do país. Se esta tivesse sido uma campanha mais bem estudada pela Marinha ao longo dos anos, o Brasil não teria sofrido tanto com o "corso" moderno -os submarinos alemães e italianos que quase isolaram o país do mundo de 1942 em diante.
Vale restaura a reputação do almirante brasileiro Rodrigo Pinto Guedes, analisando com detalhe o papel desse marinheiro nas lutas do Prata. E aponta a origem da deformação histórica: o clássico livro do comerciante inglês John Armitage sobre o Brasil de 1808 até 1831, extremamente popular entre historiadores brasileiros por ser de fácil acesso.
Armitage fala do suposto contraste entre a "incansável atividade" do almirante argentino, o irlandês William Brown, e a "aparente apatia" de Guedes. Pura besteira escrita por um comerciante sem o menor conhecimento de guerra naval, como Vale deixa claro. "É esse travesti da verdade que tem sido repetido desde então por historiadores britânicos, argentinos e, de fato, pela maioria dos brasileiros", escreveu Vale.
O resultado disso é que até hoje a Marinha do Brasil não teve um navio sequer nomeado em homenagem ao notável Pinto Guedes. E nomes de navios são altamente significativos para uma força naval e sua visão de sua própria história.
A marinha argentina sempre homenageou o irlandês Brown, que chegou a comandar um navio praticamente sem ter um argentino a bordo -eram basicamente anglo-saxões.
Já a Marinha do Brasil pôs de lado essa guerra e preferiu homenagear seus heróis da guerra do Paraguai, a maioria deles "made in Brazil", esquecendo aqueles da guerra "empatada" dos anos 1820 -muitos dos quais eram nascidos no Reino Unido, como John Pascoe Grenfell, John Taylor e James Norton. Daí se percebe o porquê do curioso nome do livro de Vale -"Uma Guerra entre Ingleses".
Mas nem por serem estrangeiros de origem eles deixaram de prestar serviços inestimáveis ao Brasil. Grenfell, assim como Nelson nas guerras contra os franceses, perdeu um braço em combate contra os argentinos.
Um dos principais historiadores navais do Brasil, o almirante Helio Leoncio Martins, reclama com razão que esses heróis britânico-brasileiros tenham sido esquecidos, ao mesmo tempo em que nomes mais polêmicos tenham sido contemplados com nomes de navios. É o caso das fragatas Bosísio e Rademaker, cujos nomes lembram dois ministros da Marinha pouco conhecidos durante o regime militar de 64.
Quando se vê que nem Lorde Cochrane foi homenageado pela Marinha que ajudou a criar, a importância do livro de Vale fica patente.


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