São Paulo, domingo, 14 de maio de 2000


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+ cinema
Único brasileiro a ganhar a Palma de Ouro de melhor filme em Cannes, Anselmo Duarte teria provocado um ataque de ciúmes no cineasta Orson Welles, que se apaixonara por sua noiva quando estava no Rio no início dos anos 40 para produzir um musical
Gosto pelo imprevisível

Rogerio Sganzerla
especial para a Folha

Cinema é um ofício que permite realizar tudo. Mesmo o (que parece) impossível, a arte das aparências enganosas, conferindo aparência de realidade aos sonhos mais quiméricos e mirabolantes invenções do espírito. Isso ocorre desde a criação do espetáculo cinematográfico por George Meliès, há um século, quando se fazia tudo com nada (ao contrário da era do asneirol), pois tinham imaginação para usar a serviço da sétima arte. E hoje?
Permanece, no entanto, a grande aula de um cinema maior praticado durante três ou quatro décadas por um dos nossos monstros sagrados. Seu exemplo vivo de grandeza deve servir como matéria de reflexão para que não se cometam tantas vezes os erros do passado. Valorize-se o realizador, o autor, o projeto (e não os modelos da moda). São poucos os diretores profissionais nesse país de contrastes.
Como tudo começou? O destino jogou duro com uma obra sem exemplo nem seguidores.
Devido ao seu pronunciado gosto pelo imprevisível, produziu sequências majestosas e colossais movimentações de massa. Sua prestidigitação dos meios de reprodução do real se deve a propósitos honestos de interpretação das coisas nossas, sendo a um só tempo nobre e popular.
Ainda capaz de imantar a multidão, merece o reconhecimento e o apoio que se faz necessário numa arte industrial como o cinema. Enfim, não há nada a acrescentar; é preciso realizar o impossível, passando por todas as ilusões que podem produzir prestidigitação. Na tela (e cheia de ação contínua). A arte era a razão de sua vida; sem ela não poderia explicar a que veio a este mundo imundo. A arte e um par de coxas monumentais chamadas Lolita, o "furacão de Santos", com quem abandonou a Paulicéia e formou par constante, arrancando aplausos nos clubes santistas. Ao chegarem ao Rio, estava desempregado e as contas no hotel não permitiam adiamentos. Anúncios de emprego eram os menos convidativos possíveis. Assim, aquela página de jornal logo o atraiu: "Precisa-se de bailarinos". Onde era? No Cassino da Urca. Duas horas depois, chega a pé ao local, pois não tinha dinheiro para a condução. E sem a fantasia, uma exigência do anúncio. Onde arranjar dinheiro ou crédito para comprá-la? Anselmo tinha que tentar a sorte. Felizmente, ela estava à sua espera na pessoa de Lolita, seu par de outros Carnavais. Ela já fazia parte do elenco contratado, pois conquistara a simpatia do empresário, que era nada mais nada menos do que Orson Welles, que planejava rodar um musical no Rio em 1942.

Maxixe com elegância
Dançaram um número de maxixe com elegância e agilidade. Mesmo sem a indumentária exigida, foi admitido.Tudo começava a dar certo, porém cedo se mostrou o reverso da medalha. O americano dava em cima da dançarina e, para dobrar sua resistência, bancava no jogo da roleta. Lolita jogava alto, e as fichas não faltavam. Quem não juntaria de boa vontade aquela mulher belíssima à sua coleção? Percebendo que tinha em Anselmo um rival, Welles mordia-se de ciúmes ao vê-lo sair todos os dias depois dos ensaios de braços dados com a garota sorridente e feliz. Welles se apaixonou, mas Lolita negaceava todas as suas investidas. Quem faturava era o ex-escriturário. O carro da produção costumava apanhá-lo no Catete, mas, em vez de rumar à Urca, abalou para o Alto da Boa Vista. Dentro, dois brutamontes, seguranças ou leões-de-chácara do cassino tinham caras de poucos amigos. E revelaram ter sido contratados pelo gringo para lhe darem uma boa surra em lugar ermo, ameaçando novas represálias se continuasse a procurar Lolita. Daquela data em diante, já estava dispensado. E que não aparecesse mais na Urca. Anselmo tentou e conseguiu levá-los na conversa. Condoídos pela sorte do rapaz ou irritados com a brincadeira do americano, desistiram da empreitada. Não iam mais surrá-lo. Bastava o passeio e pronto. Com sua imaginação à solta, convenceu seus raptores a darem ao fato um desenlace sem maldade, mas desmoralizante para o gringo. Dali mesmo telefonou e relatou o rapto, sugerindo que aparecesse lá com o empresário. Lolita relutou a princípio, pois temia más consequências para Anselmo, que acabou a convencendo a vir devidamente acompanhada. Fingindo se dobrar às suas investidas, Lolita saiu a passeio com o empresário. Rodaram muito, até que se viram no local escolhido. Muito bem, pensou, era só saltar para um breve romance na mata. Welles já estava ansiosamente satisfeito, esfregando as mãos de contentamento. Mas, ao desembarcar, sumiu-lhe o sorriso das faces. Lá estava o rival, fagueiro e despreocupado, ladeado pelos capangas, abrindo flores enquanto calmamente assoviava.

Desfecho rocambolesco
Um desfecho cômico, mas frustrante. Essa passagem, relatada pelo único ganhador brasileiro da Palma de Ouro em Cannes (em 1962, por "O Pagador de Promessas"), que foi, em seus 80 anos, homenageado na entrega do Grande Prêmio Cinema Brasileiro, em Petrópolis, no dia 12 de fevereiro, tem sabor de uma película barata, narrada com pendor rocambolesco e desfecho empolgante, ou cômico, se quiserem.
Meio século depois, a garota perdida na noite paulistana, o ator e diretor conclui que Lolita tinha mesmo provocado uma paixão avassaladora em Welles, cujo ciúme pelo noivo também ciumento seria uma das razões do descontrole emocional, contribuindo para o escandaloso episódio no Hotel Copacabana.
Logo em seguida, teria Welles jogado os móveis da sala do apartamento na calçada da avenida, onde uma pequena multidão urrava (como sempre): "Joga mais".
Existem quatro ou cinco versões para o fato, mas, segundo Anselmo, essa é a verdadeira explicação para a ciumeira, sua paixonite aguda e outros escândalos, culminando com o arquivamento definitivo do material, embora totalmente rodado.
Lolita o transformou. É algo muito suave e indecifrável o grande movimento que se opera num coração que começa a amar. Aquele filme, construído sob um trocadilho como a Igreja Católica para James Joyce, nascido de um mal-entendido no famigerado DIP (Departamento de Imprensa e Propaganda), se desfez em horas, após o estranho acidente ocorrido na Barra da Tijuca em 18/5/42. A partir daí, Welles nunca mais foi o mesmo. E tudo isso faz o homem tanto antes quanto depois do dilúvio universal do nosso cinema.


Rogerio Sganzerla é cineasta, diretor de "O Bandido da Luz Vermelha", entre outros.


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