São Paulo, domingo, 14 de maio de 2006

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Em "Padrões de Intenção", o historiador inglês Michael Baxandall associa a estrutura visual de quadros de Picasso, Chardin e Piero della Francesca à diversidade do pensamento e da cultura de suas épocas

Uma conversa sobre arte

RICARDO NASCIMENTO FABBRINI
ESPECIAL PARA A FOLHA

Em "Padrões de Intenção", o historiador inglês Michael Baxandall inscreve, mediante exemplos, obras de arte em suas lógicas históricas.
São ensaios de história cultural da arte, na tradição de autores tão diversos como Lionello Venturi ("O Século 16, de Leonardo a El Greco"), Pierre Francastel ("A Realidade Figurativa", Perspectiva) ou Robert Klein ("A Forma e o Inteligível", Edusp), que mobilizam as artes, as instituições, as filosofias ou as ciências visando à criação de um quadro epistemológico que permita a percepção de uma dada obra em sua cultura específica.
Sem criar relações mecânicas de causalidade, o autor associa a estrutura visual das obras à diversidade de noções de sua época: as "formas dos quadros" às "formas do pensamento". Baxandall busca, incorporando elementos da filosofia da linguagem e da hermenêutica, as formas que os artistas deram às "intenções" de seu tempo.
Nos ensaios sobre o projeto de construção da ponte do rio Forth (1890), de Benjamin Baker, e às pinturas "Retrato de Daniel-Henry Kahnweiler" (1910), de Pablo Picasso (1910), "Uma Dama Tomando Chá", de Chardin (1735), e "Batismo de Cristo" (1440-50), de Piero della Francesca, o autor utiliza categorias historicamente pertinentes, sem medo do "pecado do anacronismo", evitando a idealização do passado. Por isso, especifica a percepção particular de cada uma dessas quatro obras a partir do confronto entre seus códigos de figuração e os hábitos visuais e cognitivos de sua época.
Baxandall relaciona, por exemplo, em ensaio cuidadoso, o quadro de Chardin à tendência empirista na filosofia e na ciência que se difundiu pela Europa ocidental no século 18.
Mostra que os tratados sobre percepção visual, em particular os estudos sobre ótica baseados em Isaac Newton e John Locke, possibilitam uma interpretação dessa pintura nos termos científicos do período. Destaca, por exemplo, a correspondência entre o conceito de "visão nítida" ("punctum sensibile") apresentado nesses tratados e o procedimento de Chardin de focar objetos situados a diferentes distâncias mediante pontos luminosos.
Esse não é, entretanto, o único modo de refletir sobre esse quadro, pois Chardin tinha sua atenção voltada para a história da pintura. É possível supor assim não apenas seu interesse pela escola holandesa de seu tempo, como repisam os historiadores, mas também pela pintura italiana do século 16, que sabidamente admirava. Por isso teria transposto, segundo o autor, as composições em diagonal e os jogos de nitidez e luminosidade das cenas religiosas de, respectivamente, Paolo Veronese (1528-1588) e Guido Reni (1575-1642) às suas cenas de interior e naturezas-mortas.
No ensaio sobre Picasso, Baxandall, em digressão oportuna, rejeita a noção de influência, "uma das pragas da crítica da arte", uma vez que ela inverte o sentido da relação entre quem age e quem sofre uma ação.
Afirmar por exemplo que Cézanne influenciou Picasso -utilizando esse vocábulo de "fundo astrológico"- acarreta a eliminação das nuanças sutis dessa relação. Picasso, afinal, "recorreu a", "respondeu a", "prestou atenção em", "apropriou-se" de Cézanne de várias maneiras ao longo do tempo. No plano historiográfico, foi até mesmo o responsável por deslocá-lo para o centro da pintura moderna.
Evitando ditar regras metodológicas que enrijeceriam toda a explicação, Baxandall limita-se a sugerir, baseando-se tanto no bom senso quanto na tradição clássica, três posturas ao historiador da arte: o "decorum externo"; o "decorum interno" e a "parcimônia".

Escuta atenta
A primeira postura consiste em se ater à "legitimidade histórica", à adequação da obra à "cultura do artista" e, portanto, ao imaginário de um período. A segunda refere-se à apreensão da ordem, da coerência interna da forma artística. A terceira corresponde à escolha e verificação de uma hipótese de permuta entre o artista e sua época -denominada pelo autor de "troc"- com o objetivo de indicar as "causas históricas" de uma obra.
Essa crítica inferencial proposta por Baxandall -como assinala Heliana Salgueiro na introdução à edição brasileira- situa-se entre a "resignação melancólica" diante do abismo que separa as imagens das palavras, e o "cuidado metodológico" que visa a transpô-lo.
Para que essa superação seja possível, é preciso que o historiador, conclui o autor, submeta não apenas os resultados de sua pesquisa mas também os procedimentos que utilizou para obtê-los a uma "conversazione" -a um diálogo racional, aberto, baseado na escuta detida das idéias alheias: "Afinal, se não fosse para dialogar, por que nos dedicaríamos a uma atividade tão difícil e insólita quanto a de falar sobre quadros?".
Numa palavra, trata-se de livro raro: erudito, mas não prescritivo, escrito em prosa clara que assume as hesitações do pensamento sem perder o prumo: a explicação histórica dos quadros.


Ricardo Nascimento Fabbrini é professor do departamento de filosofia da Pontifícia Universidade Católica de SP.

Padrões de Intenção
248 págs., R$ 48 de Michael Baxandall. Trad. Vera Maria Pereira. Companhia das Letras.



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