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Em "Padrões de Intenção", o historiador inglês Michael Baxandall associa a estrutura visual de quadros
de Picasso, Chardin e Piero della Francesca à diversidade do pensamento e da cultura de suas épocas
Uma conversa sobre arte
RICARDO NASCIMENTO FABBRINI
ESPECIAL PARA A FOLHA
Em "Padrões de Intenção", o
historiador inglês Michael Baxandall inscreve, mediante
exemplos, obras de arte em
suas lógicas históricas.
São ensaios de história cultural da
arte, na tradição de autores tão diversos como Lionello Venturi ("O
Século 16, de Leonardo a El Greco"),
Pierre Francastel ("A Realidade Figurativa", Perspectiva) ou Robert
Klein ("A Forma e o Inteligível",
Edusp), que mobilizam as artes, as
instituições, as filosofias ou as ciências visando à criação de um quadro
epistemológico que permita a percepção de uma dada obra em sua
cultura específica.
Sem criar relações mecânicas de
causalidade, o autor associa a estrutura visual das obras à diversidade
de noções de sua época: as "formas
dos quadros" às "formas do pensamento". Baxandall busca, incorporando elementos da filosofia da linguagem e da hermenêutica, as formas que os artistas deram às "intenções" de seu tempo.
Nos ensaios sobre o projeto de
construção da ponte do rio Forth
(1890), de Benjamin Baker, e às pinturas "Retrato de Daniel-Henry
Kahnweiler" (1910), de Pablo Picasso (1910), "Uma Dama Tomando
Chá", de Chardin (1735), e "Batismo
de Cristo" (1440-50), de Piero della
Francesca, o autor utiliza categorias
historicamente pertinentes, sem
medo do "pecado do anacronismo",
evitando a idealização do passado.
Por isso, especifica a percepção particular de cada uma dessas quatro
obras a partir do confronto entre
seus códigos de figuração e os hábitos visuais e cognitivos de sua época.
Baxandall relaciona, por exemplo,
em ensaio cuidadoso, o quadro de
Chardin à tendência empirista na filosofia e na ciência que se difundiu
pela Europa ocidental no século 18.
Mostra que os tratados sobre percepção visual, em particular os estudos sobre ótica baseados em Isaac
Newton e John Locke, possibilitam
uma interpretação dessa pintura nos
termos científicos do período. Destaca, por exemplo, a correspondência entre o conceito de "visão nítida"
("punctum sensibile") apresentado
nesses tratados e o procedimento de
Chardin de focar objetos situados a
diferentes distâncias mediante pontos luminosos.
Esse não é, entretanto, o único modo de refletir sobre esse quadro, pois
Chardin tinha sua atenção voltada
para a história da pintura. É possível
supor assim não apenas seu interesse pela escola holandesa de seu tempo, como repisam os historiadores,
mas também pela pintura italiana do
século 16, que sabidamente admirava. Por isso teria transposto, segundo o autor, as composições em diagonal e os jogos de nitidez e luminosidade das cenas religiosas de, respectivamente, Paolo Veronese
(1528-1588) e Guido Reni (1575-1642) às suas cenas de interior e naturezas-mortas.
No ensaio sobre Picasso, Baxandall, em digressão oportuna, rejeita a
noção de influência, "uma das pragas da crítica da arte", uma vez que
ela inverte o sentido da relação entre
quem age e quem sofre uma ação.
Afirmar por exemplo que Cézanne
influenciou Picasso -utilizando esse vocábulo de "fundo astrológico"- acarreta a eliminação das
nuanças sutis dessa relação. Picasso,
afinal, "recorreu a", "respondeu a",
"prestou atenção em", "apropriou-se" de Cézanne de várias maneiras
ao longo do tempo. No plano historiográfico, foi até mesmo o responsável por deslocá-lo para o centro da
pintura moderna.
Evitando ditar regras metodológicas que enrijeceriam toda a explicação, Baxandall limita-se a sugerir,
baseando-se tanto no bom senso
quanto na tradição clássica, três posturas ao historiador da arte: o "decorum externo"; o "decorum interno"
e a "parcimônia".
Escuta atenta
A primeira postura consiste em se
ater à "legitimidade histórica", à
adequação da obra à "cultura do artista" e, portanto, ao imaginário de
um período. A segunda refere-se à
apreensão da ordem, da coerência
interna da forma artística. A terceira
corresponde à escolha e verificação
de uma hipótese de permuta entre o
artista e sua época -denominada
pelo autor de "troc"- com o objetivo de indicar as "causas históricas"
de uma obra.
Essa crítica inferencial proposta
por Baxandall -como assinala Heliana Salgueiro na introdução à edição brasileira- situa-se entre a "resignação melancólica" diante do
abismo que separa as imagens das
palavras, e o "cuidado metodológico" que visa a transpô-lo.
Para que essa superação seja possível, é preciso que o historiador, conclui o autor, submeta não apenas os
resultados de sua pesquisa mas também os procedimentos que utilizou
para obtê-los a uma "conversazione" -a um diálogo racional, aberto,
baseado na escuta detida das idéias
alheias: "Afinal, se não fosse para
dialogar, por que nos dedicaríamos
a uma atividade tão difícil e insólita
quanto a de falar sobre quadros?".
Numa palavra, trata-se de livro raro: erudito, mas não prescritivo, escrito em prosa clara que assume as
hesitações do pensamento sem perder o prumo: a explicação histórica
dos quadros.
Ricardo Nascimento Fabbrini é professor do departamento de filosofia da
Pontifícia Universidade Católica de SP.
Padrões de Intenção
248 págs., R$ 48
de Michael Baxandall. Trad. Vera Maria Pereira. Companhia das Letras.
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