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Ponto de Fuga
O perfume do tempo
Beckett amou Proust sobre todos os escritores; tantas diferenças parecem separá-los, mas eles se unem no modo de abrir o tempo (como cozinheiros abrindo massa de pastel)
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JORGE COLI
COLUNISTA DA FOLHA
No teatro do Sesc Santana (São Paulo), duas
peças curtas de Samuel
Beckett, com um único ator: "A
Última Gravação de Krapp" e
"Ato sem Palavras 1". Elas se
sucedem sem interrupção.
Sérgio Britto é o intérprete.
Os cenários são de Fernando
Melo da Costa e a direção, de
Isabel Cavalcanti.
É um espetáculo superior,
como bem poucos [e fica em
cartaz até hoje].
A ficção do teatro sofre ali
um sério abalo. "A Última Gravação de Krapp" brota do tempo, que a devora, e ao fazê-lo,
devora-se a si mesmo. Sérgio
Britto traz em si, no seu corpo,
a temporalidade vivida. Adere
plenamente a Krapp, o personagem, ao ponto de lhe conceder a verdade de seus 86 anos.
Krapp caça momentos que se
foram. Busca, do modo que pode, superpor passado e presente, atá-los ao futuro. Come bananas em cada um de seus aniversários, e ouve as palavras
que ele mesmo gravara em fita
décadas antes.
A peça seguinte, "Ato sem
Palavras 1", foi inspirada em
experiências sobre o comportamento dos macacos, experiências que frustram os desejos, até mesmo o desejo de
morte. Nela, o personagem
sem nome permanece Krapp,
já que ambos são o mesmo Sérgio Britto. Se houvesse máscaras, uma poderia ser substituída por outra. Mas o que há é
um rosto, um corpo, plenamente humanos.
Quando, no final de "Ato sem
Palavras 1", Sérgio Britto, sem
camisa, se volta para a plateia,
sua funda perplexidade (de
quem fez o que pôde, de quem
tentou, mas a quem todas as
significações escapam) está ali,
presente, palpável, corpórea,
solitária e desarmada.
A banana e a madeleine
Beckett amou Proust sobre
todos os escritores. Tantas diferenças parecem separá-los,
mas eles se unem nesse modo
de abrir o tempo (como cozinheiros abrindo massa de pastel) e de expô-lo.
O refúgio de Krapp é um
abrigo escuro e incerto (maravilhosos os cenários da montagem no Sesc Santana). Dentro
dele, contínuos trajetos no
tempo se cruzam sem cessar,
superpõem-se e fundem-se.
A voz aprisionada na fita vem
do passado. Ao instalar-se no
presente, ela o torna passado
novamente. É impossível fixá-lo, esse presente, e as gravações
são frágeis expedientes de conservação. Nas duas peças, o
tempo é indistinto: um dia,
uma vida, um minuto mesclam-se sem remédio.
O que significa: "Eu continuo
o mesmo"; "eu mudei"? Se mudei, tornei-me outro, deixei de
ser o mesmo. O que significa
então esse sujeito, "eu"? Como
num jogo de espelhos, os reflexos se multiplicam, e não há
ninguém, a não ser reflexos.
Krapp se desdobra; está no
passado, no presente e mesmo
no futuro, num futuro em que a
ação deve ocorrer, como indica
o autor situando sua peça: "tarde da noite, no futuro". Krapp é
e foi ao mesmo tempo.
Cena muda
O personagem de "Ato sem
Palavras 1" toma uma tesoura
que lhe foi concedida misteriosamente.
Corta uma corda não menos
enigmática. Faz um laço. Paira
a sugestão do suicídio, mas a
morte seria apaziguamento, e
ele foi condenado à vida.
Talvez Beckett não seja um
pessimista, como se diz tanto,
porque nessa expressão, pessimismo, há algo de teatral, de
trágico, em sentidos que não
são os dele. Beckett recusa
qualquer drama que venha
exaltar emoções.
Contra isso, o humor é um de
seus poderosos instrumentos,
que exaspera as angústias e as
retém pelo riso.
Sísifo
Beckett, sobre Proust:
"Ontem não é uma etapa que
teríamos ultrapassado, é uma
pedra de velhos caminhos repisados pelos anos; faz parte irremediavelmente de nós, que a
carregamos conosco, pesada e
ameaçadora."
jorgecoli@uol.com.br
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