São Paulo, domingo, 14 de junho de 2009

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Ponto de Fuga

O perfume do tempo



Beckett amou Proust sobre todos os escritores; tantas diferenças parecem separá-los, mas eles se unem no modo de abrir o tempo (como cozinheiros abrindo massa de pastel)

JORGE COLI
COLUNISTA DA FOLHA

No teatro do Sesc Santana (São Paulo), duas peças curtas de Samuel Beckett, com um único ator: "A Última Gravação de Krapp" e "Ato sem Palavras 1". Elas se sucedem sem interrupção. Sérgio Britto é o intérprete. Os cenários são de Fernando Melo da Costa e a direção, de Isabel Cavalcanti.
É um espetáculo superior, como bem poucos [e fica em cartaz até hoje].
A ficção do teatro sofre ali um sério abalo. "A Última Gravação de Krapp" brota do tempo, que a devora, e ao fazê-lo, devora-se a si mesmo. Sérgio Britto traz em si, no seu corpo, a temporalidade vivida. Adere plenamente a Krapp, o personagem, ao ponto de lhe conceder a verdade de seus 86 anos.
Krapp caça momentos que se foram. Busca, do modo que pode, superpor passado e presente, atá-los ao futuro. Come bananas em cada um de seus aniversários, e ouve as palavras que ele mesmo gravara em fita décadas antes.
A peça seguinte, "Ato sem Palavras 1", foi inspirada em experiências sobre o comportamento dos macacos, experiências que frustram os desejos, até mesmo o desejo de morte. Nela, o personagem sem nome permanece Krapp, já que ambos são o mesmo Sérgio Britto. Se houvesse máscaras, uma poderia ser substituída por outra. Mas o que há é um rosto, um corpo, plenamente humanos.
Quando, no final de "Ato sem Palavras 1", Sérgio Britto, sem camisa, se volta para a plateia, sua funda perplexidade (de quem fez o que pôde, de quem tentou, mas a quem todas as significações escapam) está ali, presente, palpável, corpórea, solitária e desarmada.

A banana e a madeleine
Beckett amou Proust sobre todos os escritores. Tantas diferenças parecem separá-los, mas eles se unem nesse modo de abrir o tempo (como cozinheiros abrindo massa de pastel) e de expô-lo.
O refúgio de Krapp é um abrigo escuro e incerto (maravilhosos os cenários da montagem no Sesc Santana). Dentro dele, contínuos trajetos no tempo se cruzam sem cessar, superpõem-se e fundem-se.
A voz aprisionada na fita vem do passado. Ao instalar-se no presente, ela o torna passado novamente. É impossível fixá-lo, esse presente, e as gravações são frágeis expedientes de conservação. Nas duas peças, o tempo é indistinto: um dia, uma vida, um minuto mesclam-se sem remédio.
O que significa: "Eu continuo o mesmo"; "eu mudei"? Se mudei, tornei-me outro, deixei de ser o mesmo. O que significa então esse sujeito, "eu"? Como num jogo de espelhos, os reflexos se multiplicam, e não há ninguém, a não ser reflexos.
Krapp se desdobra; está no passado, no presente e mesmo no futuro, num futuro em que a ação deve ocorrer, como indica o autor situando sua peça: "tarde da noite, no futuro". Krapp é e foi ao mesmo tempo.

Cena muda
O personagem de "Ato sem Palavras 1" toma uma tesoura que lhe foi concedida misteriosamente.
Corta uma corda não menos enigmática. Faz um laço. Paira a sugestão do suicídio, mas a morte seria apaziguamento, e ele foi condenado à vida.
Talvez Beckett não seja um pessimista, como se diz tanto, porque nessa expressão, pessimismo, há algo de teatral, de trágico, em sentidos que não são os dele. Beckett recusa qualquer drama que venha exaltar emoções.
Contra isso, o humor é um de seus poderosos instrumentos, que exaspera as angústias e as retém pelo riso.

Sísifo
Beckett, sobre Proust: "Ontem não é uma etapa que teríamos ultrapassado, é uma pedra de velhos caminhos repisados pelos anos; faz parte irremediavelmente de nós, que a carregamos conosco, pesada e ameaçadora."


jorgecoli@uol.com.br


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