São Paulo, domingo, 14 de junho de 2009

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+(c)ultura

História oral do punk


Edição lançada na Inglaterra reúne entrevistas e inéditos dos protagonistas do movimento, como Malcolm McLaren e Johnny Rotten

LUDOVIC HUNTER-TILNEY

Apesar de sua brevidade e violência, o punk vem tendo uma vida após a morte desproporcionalmente longa.
O movimento durou apenas alguns anos -uma erupção pustulosa de agitação na década de 1970- , mas gerou e ainda gera um volume enorme de comentários.
O mais recente exemplo é "The England's Dreaming Tapes" [Gravações do Sonho da Inglaterra, ed. Faber, 744 págs., 20, R$ 64], de Jon Savage.
É descrito como feito de "entrevistas, materiais inéditos e extras" de "Sonho da Inglaterra", de Savage, publicado em 1991. Não existe relato melhor sobre o tema, mas o leitor aborda este volume com cautela.
Ele consiste de transcrições das entrevistas feitas pelo autor para "Sonho da Inglaterra", apresentadas em formato simples de pergunta e resposta.
O efeito é um eco áspero da amplitude e riqueza do livro original, no qual Savage comparou a complexa rede de relacionamentos do punk ao "labirinto de toca de coelhos de favelas londrinas nos romances de Dickens".
Comparado com ele, esta sequência de 744 páginas ameaça ser ao mesmo tempo prolixa e parca em conteúdo.
Felizmente, as dúvidas não demoram a ser aplacadas.
Jornalista num semanário musical britânico na época do punk, Savage conseguiu reunir um elenco abrangente de entrevistados quando estava escrevendo "Sonho da Inglaterra", no final dos anos 1980, e as vozes não editadas deles, apresentadas neste novo contexto, animam a época com a força da história oral.

"Merdinha arrogante"
Encontramos Malcolm McLaren lançando farpas contra o vocalista do Sex Pistols, Johnny Rotten ("um merdinha arrogante... vítima da moda musical ... destituído de qualquer senso de rock and roll") e romantizando-se, descrevendo-se como "rebelde".
Mas ele também reconhece que o punk virou uma bola de neve que fugiu de seu controle: "É verdade que promovi "Pretty Vacant" [canção dos Sex Pistols] como ideia, mas ela ganhou vida própria".
Mais tarde, Johnny Rotten -ou John Lydon, nome para o qual reverteu após deixar o grupo- demonstra um grau notavelmente maior de insight em relação a McLaren: "Malcolm gosta de dar a impressão de que é um pouco cafajeste, mas ele é mais movido por suas ideias artísticas que por uma sede de dinheiro."
A raiva era o sangue que injetava vida no punk. "Senti que o punk era realmente o estertor de morte do idealismo hippie -hippies vestidos de buldogues", argumenta um dos entrevistados de Savage, vinculando a insatisfação niilista com os anos 1970 e seus problemas econômicos à geração anterior e mais otimista da reviravolta contracultural.
Mas os antagonismos também eram internos.
Havia cismas no interior de bandas, como foi o caso das lutas de poder internas dos Sex Pistols.
Também entre bandas, já que o Clash oferecia uma visão mais politizada do punk.
E também entre cidades, com Nova York reivindicando a autoria do gênero, que só floresceu realmente quando se espalhou, como um vírus, por Londres.
A abordagem de Savage é inclusiva. Ele cobre figuras envolvidas nas bandas do movimento, na moda, no jornalismo, nas gravadoras e em seus redutos, como Manchester.

Comercial de manteiga
O livro termina com dois momentos dolorosos. Um deles é uma entrevista com a mãe de Sid Vicious, Anne Beverley, uma mulher complexa e geniosa que foi cúmplice na overdose de heroína que matou seu filho em 1979.
À época, ele estava em liberdade condicional, acusado do assassinato de sua namorada, Nancy Spungen.
Ela detalha a vida desastrosa de seu filho com um misto de orgulho e sentimento de culpa (ela cometeu suicídio em 1996, quando os Sex Pistols preparavam uma turnê de reencontro) e confere uma dimensão inesperadamente trágica a Vicious, que virou emblema do caráter autodestrutivo do punk.
O outro momento doloroso acontece no posfácio "Onde eles estão agora?", no qual sabemos que Lydon, o ex-Johnny Rotten, hoje se concentra em sua "carreira na mídia" e faz comerciais de manteiga.
Sua trajetória -de uma criação operária londrino-irlandesa até bicho-papão dos Sex Pistols e então a vendedor de derivados do leite- enquadra à perfeição tanto o potencial quanto os limites da revolução do punk. Este livro mapeia essa trajetória.


Este texto foi publicado no "Financial Times". Tradução de Clara Allain.

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