São Paulo, domingo, 14 de junho de 2009

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O espetáculo da violência


Lutas de gladiadores na Roma antiga eram vistas com naturalidade e tinham grande aceitação social

BORIS FAUSTO
COLUNISTA DA FOLHA

Quais são os temas e os mitos da chamada história antiga que estão mais presentes na nossa imaginação? Saltam aos olhos, entre outros, os jardins suspensos da Babilônia, os amores de Marco Antônio e Cleópatra, as lutas de gladiadores.
Fico aqui com os últimos, por revelarem traços significativos da sociedade romana e por serem um bom exemplo de reelaboração do passado por livros e especialmente pela mídia, em que a fantasia tem um papel considerável.
Lembro o filme "Spartacus" [1960, de Stanley Kubrick], no qual esse líder de uma grande revolta de escravos, encarnado por Kirk Douglas, surge ensanguentado e vencedor na arena.
Ou ainda um filme mais recente, "Gladiador" [2000], dirigido por Ridley Scott, em que as disputas pela sucessão do imperador Marco Aurélio desembocam num gigantesco confronto.
Aliás, a trilha sonora do filme, simbolicamente, sublinhou o espetáculo que antecedeu a partida final da Liga dos Campeões da Europa (2008-09), vencida pelo Barcelona. Entre o mito elaborado em torno das lutas entre gladiadores e a verdade histórica, tanto quanto seja possível apreendê-la, vai uma distância, como revela um pequeno ensaio de Paul Veyne, um dos maiores especialistas na história da Roma antiga.
O ensaio se encontra em seu livro "Sexo e Poder em Roma" [ed. Civilização Brasileira]. O autor refere-se ao espetáculo dos gladiadores como uma instituição única na história universal.

Duelos à espada
Sua origem deriva de um costume comum a muitos povos que os romanos, e só os romanos, transformaram radicalmente. Eram os duelos à espada, em que se envolviam amigos de um grande personagem morto em torno da pira onde se queimava o defunto.
Veyne diz que os gladiadores eram voluntários, aparentemente com uma única exceção.
Quando a justiça punha as mãos num bandido feroz, disposto à luta, convertia a pena de morte numa opção pelo ofício de gladiador.
Esse era um caso de coação, como também estavam nessa circunstância os escravos que se transformavam em gladiadores. Não se tornavam literalmente livres, pois eram vendidos a empresários que muitas vezes os revendiam ou os alugavam a pródigos mecenas. Estes costumavam oferecer a seus convidados, entre outros prazeres, um espetáculo de lutas.
Os escravos gladiadores podiam se transformar em capangas a serviço dos poderosos, aliviando a sua sorte.
Assim, surpreendentemente, quando se sabe que o cristianismo condenou as lutas e foi um dos responsáveis por sua desaparição, ainda no ano 367, o papa Dâmaso contratou gladiadores para enfrentar um antipapa. O futuro são Marcelo, quando bispo, empregou também gladiadores para atacar um templo pagão.

Homossexuais
Mas, na "classe" dos gladiadores, havia gente que fizera uma opção, com toda liberdade. Era o caso de membros de famílias ilustres, fascinados pelos riscos e pela brutalidade do espetáculo.
Era o caso ainda de homossexuais dotados de força que ingressavam nas escolas de gladiadores, atraídos pela companhia masculina e que, de alguma forma, demonstravam na arena sua virilidade.
A cena do espetáculo é por nós conhecida. Não se trata de uma luta em que um dos combatentes é morto pelo outro, como uma espécie de nocaute das lutas de boxe levado às últimas consequências.
A morte antecipada frustrava as multidões ou o propiciador do espetáculo, que podia ser o imperador.
Era também impossível decepcionar os espectadores com uma desistência simultânea dos combatentes, pois ela levava ambos à morte.
Duelando com suas espadas, corpo bem protegido por longo tempo, um dos contendores acabava dando-se por vencido.
Por que razão? Por entrar em pânico diante de um adversário superior ou por estar grogue e certo de que levar o combate até o fim equivaleria a uma sentença de morte.
Quem sabe os espectadores o poupassem com uma decisão ditada pela simpatia, e não por sentimentos piedosos, sentenciando que ele deveria ser mantido vivo e não enforcado, à espera de uma próxima luta?
Apoiando-se nos cálculos do arqueólogo Georges Ville, Veyne assinala um percurso cronológico curioso.

Sadismo
Com o correr do tempo, o desfecho das lutas entre gladiadores tornou-se mais e mais sangrento: no século de Augusto, no início da era cristã, um gladiador era enforcado, em média, após dez lutas; um século depois, no tempo de Marco Aurélio, a morte sobrevinha no terceiro ou quarto combate.
As lutas eram um espetáculo de massa, em que o sadismo e o poder de decidir da multidão, sujeita à concordância do mecenas do espetáculo, figuravam como elementos centrais. Elas eram vistas com naturalidade.
Os gladiadores constituíam uma mercadoria preciosa e um tribuno ilustre como [o orador e filósofo romano] Cícero, por exemplo, especulava na bolsa de compra e venda de gladiadores. Poetas como Horácio, filósofos como Sêneca iam, de vez em quando, ao Coliseu.
Mesmo o imperador filósofo Marco Aurélio comparecia às lutas, pois pensava que a ausência seria uma desfeita ao prazer da multidão romana.
Em seu diário, não condenou os duelos, considerando-os apenas tediosos: "É quase sempre a mesma coisa".
Seria absurdo concluir que nossa civilização é menos brutal do que a daqueles tempos. O sangue corre hoje sem a função específica de espetáculo, em escala bem mais considerável, dado o avanço da tecnologia e o crescimento do número de habitantes do planeta.
Auschwitz, explosões atômicas produzindo milhares de mortos, massacres de civis, atos terroristas são exemplos que não demandam maiores explicações. Filtrados pela mídia, eles se convertem em espetáculos de horror e atração.


BORIS FAUSTO é historiador e preside o Conselho Acadêmico do Gacint (Grupo de Análise da Conjuntura Internacional), da USP. É autor de "A Revolução de 30" (Companhia das Letras).


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